Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Marcos 1.9-15
Leituras: Gênesis 9.8-17; 1 Pedro 3.18-22
Autor: Eloir Enio Weber
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 01/03/2009
1. Introdução
A primeira impressão não foi a que ficou. Que bom!
Preciso dizer que minha primeira impressão foi a de um texto com muitos assuntos e que seria muito difícil traçar uma linha de pensamento sem se perder nos diferentes aspectos do mesmo. O texto de pregação (Mc 1.9-15) é uma junção de três episódios narrados sobre a vida de Jesus: o batismo, a tentação e o início do ministério. Portanto um texto em que o pregador precisa ter cuidado para não disparar em todas as direções e a comunidade sair se perguntado: “Sobre o que mesmo o pastor quis falar hoje?”.
Mas, como falei no início, a primeira impressão não se manteve, pois o texto revelou uma unidade e uma linha de pensamento bem interessante, que nos quer tomar pela mão e auxiliar a proclamar o evangelho de Cristo neste primeiro domingo da Quaresma. Os textos de leitura indicados convergem para o texto da pregação.
Gênesis narra o fim do dilúvio, em que Deus faz um acordo com Noé, sua família e todos os animais da Terra. O arco-íris é o sinal desse acordo. A luta contra o poder do mal exigiu de Deus medidas drásticas. O dilúvio é uma amostra disso. No entanto, nada se compara ao que Deus fez pela humanidade e pela criação toda, fazendo o último e eterno acordo com a criação ao tornar-se humano em Cristo, cujo início do ministério é retratado pelo texto do evangelho e que, ao morrer na cruz, derramou seu precioso sangue para nos libertar. O período da Quaresma que estamos iniciando quer exatamente apontar para esse evento central da fé: a cruz e a ressurreição.
O tema central de 1 Pedro é o evento da cruz. Cristo morreu por nós para nos salvar e redimir dos pecados. Ele ressuscitou para que nós também pudéssemos ter a esperança da nova e eterna vida. Faz referência ao dilúvio e compara a água do mesmo ao Batismo: assim como o dilúvio varreu (não de forma definitiva) o pecado, a água do Batismo quer nos lavar, tornar-nos limpos diante de Deus e nos salvar.
O início do ministério de Jesus aponta para o objetivo de Deus em Cristo: chamar ao Batismo, ao arrependimento, para nos salvar por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo, pois o “tempo está cumprido”. Temos, portanto, o cerne do evangelho para anunciar neste primeiro domingo da Quaresma.
2. Exegese
2.1 – O Evangelho de Marcos
Inicialmente, o Evangelho de Marcos não ganhou a importância teológica e literária que ele realmente tem. Isso aconteceu porque nele há pouco material exclusivo, ou seja, que não apareça em Mateus e Lucas.
No entanto, a partir do século XIX, ganhou força a tese de que o Evangelho de Marcos é o documento bíblico mais antigo que possuímos sobre a vida e a obra de Jesus. A idéia de que ele foi básico para os escritos de Mateus e Lucas despertou um grande interesse por estudá-lo.
Marcos não dá muita importância às questões biográficas de Jesus. Para ele, o que realmente importa é anunciar com convicção que Jesus, o Cristo, é o Filho de Deus. Isso ele deixa bem claro na afirmação de fé do primeiro versículo: “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus”.
2.2 – O texto
No Evangelho de Marcos, Jesus está sempre se deslocando, sempre caminhando. Não é diferente na perícope em estudo: parte dela acontece na Judéia e outra na Galiléia.
O texto, na verdade, é a junção de três episódios: o batismo de Jesus no rio Jordão, a tentação de Jesus no deserto e o início da pregação de Jesus na Galiléia.
À primeira vista, parece ser muito difícil estabelecer uma unidade entre os três episódios. Aquilo que os une é que através deles Marcos quer mostrar a preparação e o início do ministério de Jesus. Tem, outrossim, a intenção central do Evangelho de Marcos: informar e proclamar desde o início que Jesus realmente é o Filho de Deus (alguns exemplos: 1.11; 1.24; 3.11; 8.29; 15.39).
V. 9-11 – Jesus e João encontram-se às margens do rio Jordão. O motivo do encontro: o batismo de Jesus. A iniciativa do encontro parte de Jesus, que veio de Nazaré, na Galiléia. Interessante observar que o ritual que João fazia para as pessoas era o batismo do arrependimento. Mas Jesus não buscou arrependimento no ritual de João. Ele não procurou João porque precisava do batismo para voltar a Deus. Jesus é justo, sem pecado e colocou-se de forma livre e espontânea ao lado e junto dos pecadores. Ele veio como quem está decidido a dar-se em resgate pelos pecadores, por aquelas pessoas que buscam em João o batismo do arrependimento, porque sentem a necessidade de mudança de rumo. Jesus veio para salvar.
Ao sair da água, Jesus viu os “céus rasgarem-se”. Céu aberto dá a conotação de que a divindade de Deus está à vista. Em Jesus Cristo, Deus revela sua santidade, seu amor. Cristo levanta-se contra o mal, e o céu fica aberto.
Jesus é batizado, o Espírito desceu como pomba e Deus falou. Temos aí a ação da Trindade. No seu ministério, Jesus não está só. Ele age em sintonia e harmonia com o Pai e o Espírito Santo. Jesus é “apresentado” no Evangelho de Marcos junto com a Trindade. No ministério de Jesus, Deus torna-se visível, presente e concreto. Aquele que é apresentado no batismo não é somente o Jesus histórico, que viveu mais ou menos 33 anos. Ali está também o Deus que criou, recria e mantém toda a espécie de vida e o Deus que permanece e dá a fé às pessoas pelos séculos dos séculos. Na união trinitária estabelecida pelo amor é dito: “Tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo”. O ministério de Jesus não é ação isolada; vem alicerçado, aprovado, apoiado e outorgado pelo Pai e pelo Espírito Santo.
V. 12-13 – Jesus é levado pelo Espírito ao deserto, onde permanece quarenta dias. É tentado por Satanás e pelas feras; e é cuidado pelos anjos.
Nesse texto, chama a atenção o fato de que o Evangelho de Marcos, ao contrário dos outros sinóticos, omite ou ignora o relato detalhado das três tentações.
O deserto simboliza um lugar de necessidades, secura, falta de vida. Remete também à caminhada do povo de Deus pelo deserto, fazendo uma ponte entre a libertação na Antiga Aliança e a libertação definitiva na Nova Aliança. Isso é ratificado pelo período de permanência no deserto: quarenta dias. Israel, no entanto, fracassou na prova. Jesus manteve-se fiel à sua missão.
Satanás e as feras são poderes contrários ao poder de Deus. A referência às feras traz à memória o ideal messiânico, proclamado pelos profetas, de um retorno à paz duradoura por meio e na companhia de Deus. Os anjos cuidando de Jesus expressam a presença da proteção divina nesse momento de deserto, a saber: tentação, fraqueza, necessidade e, por que não dizer, sentimento de desamparo.
V. 14-15 – Esse texto traz as primeiras palavras ditas por Jesus no Evangelho de Marcos. Elas apresentam a chave para interpretar todo o seu ministério. Consiste basicamente em chamar ao arrependimento porque o tempo se cumpriu e o reino está próximo. Em Jesus, Deus entrega-se totalmente. O reino começa a ganhar corpo a partir do amor de Deus, que provoca uma transformação radical na vida das pessoas. No entanto, ele se concretiza com a morte, ressurreição, ascensão e volta de Cristo. Em Cristo, esse reino já está inaugurado e é realidade entre nós.
3. Meditação
A perícope convida-nos a olhar para a preparação e o início do ministério de Jesus. O batismo, a passagem pelo deserto e as primeiras palavras ditas por Jesus indicam a direção para nós.
Estamos começando o período da Quaresma. Viver a Quaresma é uma bênção. Iniciar esse tempo é graça. É oportunidade dada pelo amor de Deus. Esse período do ano litúrgico quer aproximar-nos do Deus que nunca nos abandona; pelo contrário, sempre nos acompanha com seu olhar carinhoso e cuidadoso.
Quantas vezes temos vivido sem prestar muita atenção à penitência, ao jejum e à oração? Quantas vezes perdemos os frutos espirituais desse tempo sem sequer nos dar conta deles? Como podemos realmente celebrar a Páscoa sem observar a Quaresma? Como podemos regozijar-nos plenamente na ressurreição, tendo evitado participar da morte de Jesus? Sim, precisamos morrer com Cristo, através dele e nele. Somente assim estaremos prontos para reconhecê-lo – ressuscitado.
Há tanto em nós que precisa morrer: falsos apegos, avareza e ira, impaciência e mesquinhez. Somos egocêntricos, preocupamo-nos demais conosco mesmos, com a carreira, futuro, nosso nome e nossa fama. Reconheçamos: somos ridículos – isto é triste e lamentável.
Por isso viver a Quaresma é uma bênção. Iniciar esse tempo é graça. É oportunidade dada pelo amor de Deus. É um convite para que nos renovemos, restabeleçamos a paz, partilhemos o pão e a esperança e caminhemos iluminados e amparados na Palavra e nos sacramentos que nos trazem o Cristo vivo, que venceu as tentações no deserto e na cruz para nos possibilitar o reino.
Deixemo-nos, portanto, tocar por esse chamado ao arrependimento, à novidade de vida que as primeiras palavras de Jesus no Evangelho de Marcos nos fazem.
4. Imagens para a prédica
A sequência que encontramos no início de Marcos tem uma boa lógica quanto à fundamentação teológica para a pregação.
* Jesus é anunciado por João (texto anterior, ou seja, até o v. 8);
* Jesus é batizado e nesse batismo percebemos a unidade do Trino Deus;
* Jesus é tentado no deserto;
* Jesus é protegido por anjos nesse contexto de provação;
* Jesus inicia seu ministério chamando ao arrependimento e anunciano que o tempo está cumprido.
Vejamos: anúncio, batismo (Trindade), tentação, proteção e anúncio. O início do Evangelho de Marcos dá-nos um bom roteiro para animar as pessoas na fé. Fecha-se um ciclo que não tem fim em si mesmo, funciona como espiral e quer nos alcançar.
Nós, como cristãos, também estamos nesse ciclo. Alguém antes de nós já recebeu esse anúncio, levou-nos ao Batismo (Trindade). Ao longo da vida somos tentados, no entanto protegidos, por mais que venhamos a cair nessas tentações, e isso nos fortalece para nosso testemunho. Este tempo de Quaresma que estamos iniciando é especial para nosso testemunho de fé.
Vamos pensar em quantas cargas as pessoas que estão em nossa celebração trazem. Quantos estão com a consciência pesada por não ter resistido a algumas tentações da vida? E estão sedentas (desérticas) por uma palavra que lhes diga que há perdão mediante o arrependimento. Que a Palavra aponta o pecado, mas não massacra o pecador. Pessoas que necessitam ser lembradas de seu Batismo e da proteção divina nos desertos vivenciais. Certamente a pregação para este primeiro domingo da Quaresma pode ser muito especial para muitas pessoas sedentas.
5. Subsídios litúrgicos
Penso que a liturgia no tempo da Quaresma deve estar repleta de convites para a libertação. Esse deveria ser o caminho para o todo da celebração.
ANTÍFONA QUARESMAL (em responsório por dois grupos)
1. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo.
2. Tem piedade de nós.
1. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, colocamo-nos em oração.
2. Inclinamos toda a nossa vida diante de ti.
1. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, toca-nos com o teu amor.
2. E em tua graça permite que participemos desta refeição de pão e vinho.
1. Torna-nos semelhantes a ti diante das tentações da vida.
2. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, queremos compartilhar o pão e o vinho como tu fizeste com teus discípulos quando antecipaste a doação de tua própria vida na cruz.
1. Dádiva única e definitiva para todos os filhos de Deus.
2. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, Páscoa que se faz presencial em teu corpo e sangue.
1. Corpo que é dado por nós, sangue da Nova Aliança derramado para a nossa salvação.
2. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, adoramos e bendizemos a ti porque em tua entrega experimentamos os feitos poderosos de Deus.
1. Lembra-nos que tu tiraste o teu povo da escravidão e da dor, guiando-o pelo deserto a um lugar de esperança e plenitude.
2. Jesus Cristo, Cordeiro de Deus, que tiras o pecado do mundo, dános a santidade que nos compromete com os desertos dos seres humanos que sofrem.
1. Que não desanimemos na fé.
2. Que não larguemos a esperança.
1. Que não percamos a comunicação com o teu corpo, que é a igreja.
2. Que não fraquejemos no anúncio e no serviço.
1 e 2. Que do topo da soberba e da auto-suficiência olhemos para o exemplo de Cristo, fazendo-se servo, lavando os nossos pecados. Amém.
Autoria: Carlos Enrique Garcia
Tradução e adaptação: Eloir E. Weber
Bibliografia
DELORME, J. Leitura do Evangelho Segundo Marcos. 3. ed. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1982.
BÍBLIAS: Jerusalém, Pastoral e Bíblia de Estudo Almeida.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).