Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 1.9-15
Leituras: Gênesis 9.8-17 e 1 Pedro 3.18-22
Autora: Nádia Cristiane Engler Becker
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 22/02/2015
1. Introdução
O texto de Gn 9.8-17 traz o relato da aliança selada por Deus com Noé, sua descendência e todos os seres viventes. Deus estabelece o arco-íris como sinal de uma aliança unilateral, que ele solenemente sela com Noé, de que nunca mais tornará a destruir a criação por meio das águas. Não é uma aliança selada a pedido de Noé. A iniciativa é de Deus. Deus empenha sua palavra e coloca o arco-íris como lembrança para si mesmo de que “as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne” (v. 15b).
O texto de 1Pe 3.18-22 deixa transparecer que a humanidade permaneceu tão má e pecadora quanto antes do dilúvio. Porém Deus manteve a promessa feita em Gênesis. O castigo não recaiu sobre a humanidade, como nos tempos de Noé, mas foi assumido por Cristo na cruz do Calvário. Aqui Pedro afirma que a água, que no dilúvio foi usada por Deus como instrumento de castigo e morte, agora, pelo batismo, torna-se veículo de vida, graça e salvação. O batismo é a nova aliança que Deus sela com a humanidade. Novamente a iniciativa de selar essa aliança é de Deus e não do ser humano.
Mc 1.9-15 é o texto previsto para a pregação neste 1º Domingo na Quares- ma. É um texto curto, mas riquíssimo em conteúdo. Ele apresenta três partes distintas: 1) batismo de Jesus nas águas do Jordão, a vinda do Espírito Santo sobre Jesus e a declaração de Deus de que Jesus é seu Filho querido, que lhe dá muita alegria; 2) a tentação de Jesus; 3) o início de seu ministério público.
2. Exegese
Diferentemente de Mateus e Lucas, que iniciam o relato da história de Jesus com sua genealogia e nascimento, Marcos não traz detalhe algum sobre isso. O Evangelho de Marcos inicia com o relato breve do ministério de João Batista. Esse chamava ao arrependimento e batizava nas águas do Jordão como sinal do perdão dos pecados. Anunciava a vinda de Jesus e o batismo com o Espírito Santo. Para Marcos, basta dizer que aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu (v. 7) e vos batizará com o Espírito Santo (v. 8). É assim que Jesus surge no evangelho. De modo surpreendente, coloca-se entre as pessoas, “na fila”, para receber o batismo junto com aqueles e aquelas que estavam arrependidos de seus pecados e desejavam receber o batismo como selo do perdão recebido. Jesus coloca-se junto a essas pessoas como se ele mesmo tivesse necessidade de arrependimento e perdão. Marcos não questiona a busca de Jesus. Simplesmente relata que ele foi batizado por João Batista no rio Jordão (v. 9). Subentende que para ele estava claro que o mesmo Jesus que agora se põe humildemente na posição de pecador que necessita do batismo de arrependimento para ser perdoado é aquele que três anos mais tarde assume, de novo, a posição de pecador e humildemente toma sobre si a cruz para pagar pelos pecados de toda a humanidade. “Em Cristo não havia pecado. Mas Deus colocou sobre Cristo a culpa dos nossos pecados […]” (2Co 5.21a). Jesus assume o papel de pecador no começo e no fim de seu ministério terreno, na mais profunda humildade e obediência a Deus.
Conforme o v. 10, os céus se rasgam! O caminho que havia sido trancado pelo pecado da desobediência e impedia o acesso à árvore da vida (Gn 1.24) está novamente aberto por meio da obediência humilde de Jesus. O projeto de salvação da humanidade começa a se concretizar. Poder salvar a humanidade, a quem tanto ama, enche o Criador de satisfação, e ele afirma: Tu és o meu Filho querido e me dás muita alegria! (v. 11).
A vinda do Espírito Santo sobre Jesus nesse momento não indica a concessão de algo novo, de algo que já não estivesse em e com Jesus antes. Jesus foi concebido pelo Espírito Santo. A vinda do Espírito sobre Jesus no momento do seu batismo e a voz dos céus são apenas a confirmação externa e o testemunho público que empoderam Jesus para o ministério terreno. A salvação da humanidade é missão do Deus Triúno. Assim como no princípio da criação o Espírito pairava sobre as águas, agora, no princípio da nova criação, o Espírito paira sobre Jesus. Em Jesus tudo se faz novo.
Nos v. 12 e 13, Marcos relata de modo muitíssimo breve a tentação de Jesus. Não traz nem de perto a riqueza de detalhes apresentada pelos paralelos de Mateus e Lucas. Para ele, basta dizer que Jesus foi tentado por Satanás, que havia feras, mas também anjos que serviam Jesus. É essencial dizer que, assim como todo ser humano, Jesus enfrentou tentações. A resistência à tentação revela a decisão de Jesus pelo caminho da humildade e da obediência. Ele não apenas foi entregue, ele também se entregou: “Em obediência à vontade do nosso Deus e Pai, Cristo se entregou para ser morto a fim de tirar os nossos pecados e assim nos livrar deste mundo mau” (Gl 1.4). O texto remete novamente ao princípio da criação de Gênesis e à tentação. Diferentemente de Adão (de toda a humanidade), Jesus, quando tentado, não pecou.
Conforme o v. 14, o ministério de Jesus inicia com a pregação do evangelho, da boa notícia. Antes de qualquer coisa, convém falar do amor, da graça e da misericórdia de Deus.
De acordo com o v. 15: O tempo está cumprido! O reino de Deus está próximo! De acordo com Kümmel, o povo judeu esperava que, com a irrupção do Reino, o poder de Deus se tornaria visível. Jesus dá a entender que, através da sua ação, a salvação esperada para o fim dos tempos já está se concretizando no presente. A pregação de Jesus aponta que já agora Deus estabelece seu Reino e que, por essa razão, já é possível participar da ação salvífica de Deus, aderindo com fé a essa proclamação de Jesus.
Deus inicia seu projeto de salvar a humanidade perdida por meio daquele que agora é a encarnação e o porta-voz dessa notícia. Junto com o chamado ao arrependimento está o chamado à fé, a crer no evangelho. A boa notícia anunciada por Jesus não traz alegria externa ou superficial. Ela convida à reflexão da própria vida, ao reconhecimento dos próprios pecados, ao arrependimento. Convida a viver de um modo diferente, crendo no único que pode oferecer perdão, paz, alegria verdadeira e o reino de Deus.
O texto da pregação é construído de maneira a nos ajudar a entender que, pelo batismo, renascemos como novas criaturas. Morremos, junto com Cristo, para o pecado (Rm 6.1ss), para que, assim como Cristo foi ressuscitado, também nós vivamos uma nova vida de humildade e obediência. Porém também subentende que “o velho homem, mesmo afogado, permanece sendo um bom nadador”. Ou seja: a inclinação ao pecado permanece viva em nós, e as tentações são constantes. Por mais que exista o desejo de sermos obedientes a Deus, falhamos. Daí o chamado ao arrependimento e para crer no evangelho. Esse é o caminho do reino de Deus.
3. Meditação
O calendário litúrgico marca o início da Quaresma. A cada ano, essa desafia cristãos e cristãs a trilhar com Jesus o caminho da paixão, refletindo a própria vida, reconhecendo que o sofrimento e a morte de Jesus na cruz foram necessários para a nossa salvação. Quaresma é tempo de refletir sobre o infinito amor de Deus e sobre a infinita miséria humana sem a graça de Deus. É tempo que convida, em especial, para duas coisas às quais o ser humano resiste: reconhecer os próprios pecados e arrepender-se deles.
De modo geral, quando se trata de pecado, existe um sentimento de auto-justificação e a compreensão de que “existe gente bem pior do que eu”. A cultura da corrupção, da infidelidade, do “jeitinho”, que marca a nossa sociedade em todos os níveis sociais, torna o pecado justificável: afinal, “todo mundo faz”. Assim, o médico pode cobrar por fora por procedimento no SUS. O policial pode receber propina para encobrir o tráfico e o contrabando. O cidadão pode pagar pro- pina para não ser multado. O empresário pode sonegar impostos. O leite pode ser temperado com água, soda cáustica e ureia. O combustível pode ser “batizado” com água. Documentos falsos podem ser adquiridos. Rapazes, moças, homens e mulheres podem ser desleais e infiéis em seus relacionamentos. Famílias podem jogar quilos de alimento na lata do lixo e desperdiçar centenas de litros de água. Em contrapartida, existe um moralismo hipócrita que ataca e condena “Brasília” pela corrupção. O cisco no olho alheio sempre é muito grande.
As tentações são constantes na vida de todos e todas nós. E falar de pecado é um grande desafio do qual ministros e ministras muitas vezes se esquivam. Não me refiro a falar de pecado de modo genérico, e sim da necessidade de trazer a reflexão para o chão da vida cotidiana da comunidade, dizendo de modo claro, a partir da Palavra, o que é pecado. Apenas o confronto com o próprio pecado leva à consciência da necessidade do perdão. E sem essa consciência a cruz de Cristo será apenas um ornamento em nossas igrejas, casas e pescoços. Não há pecado justificável. Mas todo pecado é perdoável pela graça de Deus. Por isso requer arrependimento e confissão.
A consciência do pecado pode levar à autojustificação ou ao arrependimento. Esse termo é facilmente associado ao sentimento de remorso, que faz o peito e a consciência doerem, mas que não leva necessariamente à mudança de atitude. Poderíamos dizer que remorso é o sentimento de tormento, de lamento pela consciência de um ato pecaminoso ou culpável que se praticou. Remorso vem junto com arrependimento, mas esse é mais do que sentimento. Arrependimento requer humildade, requer abandono de atitudes de arrogância e superioridade, pecados que, aliás, foram apontados e condenados por Jesus em diversas ocasiões. Arrependimento leva à ação, à mudança das atitudes. Não é apenas um lamentar de algo errado que se fez. É traduzido por Werner G. Kümmel como “meia-volta” e designa uma “mudança de rumo, abandono do caminho falso e um trilhar decidido no caminho certo”. Ou seja, arrependimento implica comprometer-se a viver a vida de um modo diferente, sem repetir os mesmos erros à exaustão. Na prática, isso quer dizer que, mesmo que o arrependimento em si seja doloroso e difícil, dele pode nascer uma nova realidade, mais feliz, construída com atitudes mais assertivas. Isso, ao mesmo tempo, é profundamente libertador à medida que assimilamos que não precisamos nos autojustificar, mas que podemos entregar toda a nossa miséria nas mãos amorosas de Deus e receber dele o seu perdão gracioso. Esse é o desafio de viver como nova criatura que renasceu pelas águas do batismo.
No batismo, Deus mais uma vez toma a iniciativa de vir ao encontro do ser humano. Pela sua graça, ele nos chama pelo nome, torna-nos seus filhos e suas filhas e, como tais, herdeiros do seu reino pela fé em Jesus. No batismo, ele nos concede o Espírito Santo. Pelo evangelho e pelo agir do Espírito Santo em nossas vidas, Deus cria em nós a fé e capacita-nos para enfrentar as tentações.
4. Imagens para a prédica
É marcante no texto o v. 11: E do céu veio uma voz que disse: Tu és o meu Filho querido e me dás muita alegria! Jesus, por causa de sua humildade e obediência, é chamado de Filho querido, que dá muita alegria ao Pai. A imagem do ilho obediente que alegra pai e mãe (ou desobediente, que lhes causa tristezas) é bastante palpável para qualquer família em qualquer contexto. Iniciar a pregação com um breve diálogo sobre o assunto pode ser bem interessante. A ideia é caminhar com a comunidade de modo a despertar a reflexão de que, pelo batismo, todos e todas nós fomos tornados filhos e filhas de Deus. Vale perguntar: Como temos sido como filhos de Deus? Damos alegrias ao nosso Pai Celestial? Ou nossas atitudes, pensamentos e palavras antes lhe têm causado tristeza e sofrimento?
5. Subsídios litúrgicos
A partir da reflexão do texto, sugiro o seguinte escopo para a pregação: Pelo batismo, Deus nos torna seus filhos e suas filhas e nos concede o dom do Espírito Santo. Por meio dele somos capacitados a viver como filhos e filhas que dão alegrias ao Pai Celeste. Como filhos e filhas também somos fortalecidos/as para: a) enfrentar as tentações; b) viver uma vida de arrependimento; c) e crer no evangelho.
Costura para a confissão de pecados:
Muitas vezes dizemos: “Sabe como é… a carne é fraca. Eu não consegui resistir à tentação”. O apóstolo Paulo desmente essa nossa afirmação, dizendo, em 1Co 10.13, que ninguém será tentado além das suas forças, de modo que não seja capaz de resistir: “As tentações que vocês têm de enfrentar são as mesmas que os outros enfrentam; mas Deus cumpre a sua promessa e não deixará que vocês sofram tentações que vocês não têm forças para suportar. Quando uma tentação vier, Deus dará forças a vocês para suportá-la, e assim vocês poderão sair dela”. De acordo com essa palavra, não existe “não conseguir resistir à tentação”. O que existe, na verdade, é não querer. Reconhecendo isso, confessemos os nossos pecados!
Oração de intercessão:
M: Intercedemos, Senhor, pelas lideranças que são tentadas pelo poder a se sentir superiores às demais pessoas e a usar esse poder para fazer o que é mau, para que se tornem humildes e obedientes a ti.
C: Dá que resistam à tentação!
M: Intercedemos, Senhor, pelas lideranças políticas que são tentadas pela riqueza a pegar e a desviar dinheiro que não lhes pertence em detrimento do bem de toda uma nação, para que governem com temor a ti e amor ao povo.
C: Dá que resistam à tentação!
M: Intercedemos, Senhor, pelas lideranças políticas que são tentadas a fazer uso de armas e de guerras para assegurar seu poder e domínio, para que compreendam que a força mais poderosa é a do amor.
C: Dá que trabalhem pela paz!
M: Intercedemos, Senhor, por cada um e uma de nós que diariamente se encontram diante da possibilidade de escolher entre o bem e o mal, entre obedecer aos teus mandamentos ou desprezá-los.
C: Pela tua palavra, orienta as nossas decisões!
M: Pelo agir do teu Espírito, dá-nos a capacidade de resistir às tentações. Conscientiza-nos, Senhor, de que não é porque muitas pessoas fazem o que é mau aos teus olhos que nós também podemos fazê-lo. Ajuda-nos a resistir à tentação de roubar, subornar, caluniar, cobiçar bens e também os cônjuges de nossos semelhantes.
C: Faze de nós filhos e filhas queridas que te deem muita alegria!
M: Ajuda-nos, ó Pai, a resistir à tentação de nos omitir em situações de injustiça e de endurecer nossos corações diante daquelas pessoas que necessitam de nós e do nosso apoio.
C: Ajuda-nos a tomar a iniciativa de ir ao encontro de quem sofre, assim como Jesus fez!
M: Isso te pedimos em nome de Jesus, que assim como nós foi tentado, mas resistiu, e nos ensinou a orar: Pai nosso…
Bibliografia
KÜMMEL, Werner Georg. Síntese teológica do Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).