Um mandamento fora do lugar
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 10.17-31
Leituras: Amós 5.6-7 e Hebreus 4.12-16
Autor: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/10/2015
1. Introdução
Amós 5 evoca a justiça de Javé contra os que exploram os empobrecidos e apresenta o caminho para a vida: buscar Javé e amar o bem. E Hebreus 4 afirma que a palavra de Deus, viva e eficaz, manifesta todas as fraquezas e pecados ocultos, de modo que a única salvação para nós é confiar na graça e na misericórdia de Deus.
A relação entre os textos parece ser que não adianta tentarmos enganar Deus a respeito das nossas práticas, especialmente no tocante ao modo como tratamos os empobrecidos. Tudo há de vir à tona pela força da Palavra, e, mais dia menos dia, teremos todos de prestar contas diante de Deus. Fica sugerido que, no episódio do “jovem rico”, parte do problema estava na maneira como ele se relacionava com os empobrecidos.
2. Exegese
Caminho: A dinâmica do Evangelho de Marcos é marcada pelas muitas referências topográficas e cronográficas. No entanto, essas devem ser entendidas mais teológica do que cartográfica ou cronologicamente. A referência ao caminho emoldura a perícope maior, que vai do v. 17 (“… pondo-se Jesus a caminho [gr.: hodós]…”) ao v. 52 (“… e seguia Jesus estrada [grego: hodós] afora”). A teologia peripatética de Jesus é, portanto, a teologia do caminho que transcende o Templo e as sinagogas, que eram as instâncias estabelecidas e reconhecidas da instituição religiosa de então.
Correu um homem: Talvez, por essa referência, tenha-se deduzido, desde data remota, que se tratava de um “jovem”, pois se sabe que na cultura semita dos tempos bíblicos era considerado vergonhoso que um homem maduro, principal- mente se de alta posição social, se pusesse a correr. Na parábola do ilho pródigo, em Lucas 15, o fato de que o pai teria corrido ao encontro do ilho perdido é mais um dos elementos que escandalizaram os ouvintes de Jesus. No caso da corrida ao sepulcro de Jesus, na madrugada do domingo da ressurreição, quem chega primeiro é João, sabidamente o mais jovem dos discípulos, provavelmente porque teria corrido até lá, enquanto os mais velhos, como Pedro, teriam caminhado a passos largos. De todas as formas, o texto grego (eis) refere-se, simplesmente, a “um”, “algum”, “alguém”, de quem o redator do evangelho não julgou relevante registrar o nome.
Ajoelhando-se: Há comentaristas que dizem tratar-se de uma maneira comum de reverenciar importantes e reconhecidos mestres. No entanto, há versões, como a pérsica e a etiópica, que traduzem por “e o adorou”.
Bom Mestre: “Bom”, em grego agathos, também significa “perfeito”, “íntegro”. “Mestre”, em grego didaskalos, é um instrutor, professor, doutor e equivale ao aramaico rabi. O interlocutor de Jesus dá, ao que parece, dúbia conotação à sua abordagem, com um tratamento que parece oscilar entre o que se dá a uma personalidade civil importante ou o que se dá a uma divindade.
A isso Jesus responde com uma pergunta: “Por que me chamas bom? Ninguém é bom (perfeito) senão um, que é Deus” (v. 18), mostrando que o jovem está se traindo pelas palavras. Se ele não reconhece Jesus como Deus, ele não deveria empregar aqueles termos nem prostrar-se daquela maneira.
Que farei: Acostumado às exigências legais da religião dos fariseus, parece a esse homem razoável que se possa garantir a vida eterna por meio da prática ou do cumprimento de algum preceito, talvez de um que porventura lhe tenha escapado no processo de instrução religiosa.
Herdar: Este termo parece contradizer o precedente “que farei”, pois, se é herança, não há necessidade de esforço ou mérito. Muito provavelmente tenha aprendido a respeito de que a vida eterna não se adquire mediante indústria humana e que se trata de um dom gratuito do Pai celeste a seus filhos e filhas. Outra possibilidade é pensar que as riquezas que esse cidadão possuía tenham sido obtidas por herança de seus antepassados, de modo que, um tanto contraditoriamente, tenha arquitetado uma compreensão das coisas de Deus como equivalentes à sua própria experiência, de modo que a vida eterna também lhe possa ser outorgada como herança.
Vida eterna: Evidentemente, não se tratava de um saduceu, pois os saduceus não criam em uma vida após a morte. Para esses, a maneira de viver para sempre seria por meio da descendência. Daí provavelmente vem a obsessão por deixar filhos e a tragédia que era para alguém ser estéril.
Mandamentos: Em grego entolē = prescrição, preceito, mandamento. Conquanto a tradição rabínica tenha expandido os preceitos religiosos para além dos limites do bom senso, quando um hebreu se referia de maneira genérica aos “mandamentos”, o que vinha à mente eram aqueles conferidos a Moisés no monte Sinai, chamados os Dez Mandamentos. Esses dez eram sabidos de cor por toda criança hebreia desde tenra idade, e isso era (e ainda é) uma das exigências para a cerimônia do Bar-Mitzvá (que significa, literalmente, “filho do mandamento” ou “filho da palavra”), que marca a passagem da infância para a maioridade religiosa dos meninos judeus. Tanto o “jovem rico” como Jesus sabiam bem e de cor esses mandamentos.
Não defraudarás: “Defraudar” significa apropriar-se de algo de maneira indébita. É muito estranho que Jesus, ao recitar a Lei, tenha inserido uma que não fazia parte da lista dos “Dez Mandamentos”. O mesmo relato em Mateus e Lucas, redigidos posteriormente ao de Marcos, tratam de corrigir esse suposto equívoco, talvez pensando que a fonte que inspirou Marcos estivesse mal informada: Jesus nunca erraria ao citar os Dez Mandamentos. No entanto, a ideia de que Jesus tivesse inserido, sutil e intencionalmente, o “não defraudarás” entre os maiores mandamentos, aplicando-os, justamente, a um jovem que tinha muitas propriedades, parece ser bastante instigante. O campo semântico remete-nos a Miqueias 2: “Ai daqueles que, no seu leito, imaginam a iniquidade e maquinam o mal! À luz da alva, o praticam, porque o poder está em suas mãos. Se cobiçam campos, os arrebatam; se casas, as tomam; assim, fazem violência [defraudam, roubam] a um homem e à sua casa, a uma pessoa e à sua herança” (v. 1 e 2). Estaria Jesus, conforme a redação da comunidade de Marcos, insinuando que as propriedades desse “jovem rico” foram obtidas fraudulentamente?
Tudo isso tenho observado: Se o que foi sugerido acima procede, o “jovem rico” fez de conta que não era com ele.
Fitando-o: Em grego, emblepō = “observar fixamente” e “discernir clara- mente”. Literalmente, “olhar em”, “olhar para dentro”. A força dessa expressão sugere que Jesus olhou para dentro, penetrou com os olhos e perscrutou a alma daquele “jovem”, discernindo-lhe o coração.
Amou-o: A primeira ideia que nos viria é que Jesus o repreenderia por saber de sua flagrante má conduta. No entanto, somos surpreendidos com o relato que nos revela a reação amorosa de Jesus. Em lugar de condenar, acusar, humilhar publicamente o seu interlocutor, Jesus amou-o incondicionalmente (agapaō).
Uma coisa te falta: Vai, vende, dá: Jesus parece empenhar-se por revelar com ternura e gentileza esse jovem a ele mesmo, dando-lhe a conhecer o quão orgulhoso, vaidoso, presunçoso, mesquinho, individualista e arrogante ele era. E dá-lhe a oportunidade de olhar para além de seu próprio umbigo. Em lugar de “obter”, “herdar”, “receber”, Jesus lhe propõe “ir”, “vender”, “dar”. E o convoca a redirecionar seu olhar, habitualmente direcionado para a riqueza, para que, pela primeira vez, atente para os pobres e se ocupe de assisti-los na sua pobreza.
Então, vem e segue-me: Esta expressão constituiu-se em “termo técnico” nos evangelhos, sendo representativo da vocação para o discipulado. Teria esse jovem perdido a oportunidade de ser o 13º apóstolo?
Porém, contrariado com esta palavra, retirou-se triste: “Contrariado”, do grego stygnazō = coberto por névoa ou nuvens ou sombras, tristeza. Lá se foi o “jovem rico” assombrado pela palavra (logos).
Dono de muitas propriedades: Literalmente, “porque tinha muitas possessões”. Isso é o que o “jovem” pensava de si, mas Jesus demonstrou que, na verdade, ele é quem era possuído por seus bens.
Jesus, olhando ao redor: Depois de olhar para dentro do “jovem”, Jesus dirige seu olhar a todos os que estavam ao seu redor (periblepō).
Dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas: Jesus não diz que é impossível, mas que é, de fato, muito difícil. Há nos evangelhos um ou dois casos de pessoas, supostamente ricas, que “deixaram tudo” para segui-lo. É o caso do coletor de impostos Levi ou Mateus (conquanto haja discussão se ele era um coletor do alto ou do baixo escalão). Também é o caso de Zaqueu, que depois do encontro eucarístico com Jesus decide restituir a todos os que por ele porventura tivessem sido defraudados.
Os discípulos estranharam essas palavras: Literalmente, os discípulos ficaram desconcertados, desorientados, aturdidos, como se as palavras de Jesus os tivessem atingido com um golpe que os deixara tontos.
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus: Há muitas suposições sobre essa expressão, que não merecem ser detalhadas aqui. Basta-nos a intuição da comparação. É humanamente impossível um camelo passar pelo fundo de uma agulha.
Quem pode ser salvo? A deduzir da comparação elaborada por Jesus, ninguém pode humanamente se salvar.
Jesus, porém, fitando neles o olhar: O mesmo olhar penetrante dirigido anteriormente por Jesus ao “jovem rico” é agora dirigido a seus seguidores.
Para os homens é impossível; contudo, não para Deus, porque para Deus tudo é possível: A vida eterna não pode ser obtida por meio de ações ou por méritos humanos. É impossível para o homem ou a mulher salvarem-se. Mas não é impossível para Deus salvá-lo e salvá-la.
Eis que nós tudo deixamos e te seguimos: Essa reação da parte dos discípulos parece muito com a do “jovem” que não aceitou a revelação de si mesmo, que Jesus lhe oferecia. Também os seguidores de Jesus têm dificuldade para dar o salto da fé. É como se dissessem: “E nós? Merecemos herdar a vida eterna porque deixamos tudo?”
Ninguém há que tenha deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou mãe, ou pai, ou filhos, ou campos por amor de mim e por amor do evangelho, receba, já no presente, o cêntuplo de casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, a vida eterna: Jesus parece render-se à lógica dos discípulos, mas, afinal, reafirma a lógica do reino, segundo a qual para receber é preciso deixar, para ganhar é preciso doar, para encontrar é preciso perder.
Muitos primeiros serão últimos; e os últimos, primeiros: A lógica invertida do reino exalta os humildes e depõe os soberbos, farta de bens os famintos e despede vazios os ricos. No reino, os mais desprezados e desprezíveis têm a primazia e constituem o alvo primeiro do amor incondicional de Deus.
3. Meditação e imagens para a prédica
Sugiro à pregadora e ao pregador a leitura de todo o capítulo, que culmina com a cura do cego Bartimeu, e considere os inúmeros paralelos entre os dois episódios: o do “jovem rico” e o do cego.
O primeiro é anônimo, o outro é conhecido por seu nome de família (filho de Timeu). Um é rico e tem muitas posses, o outro é mendigo e só possui uma capa. Um se encontra com Jesus no caminho, o outro jaz à beira do caminho (marginalizado). O primeiro não enfrenta qualquer barreira ou dificuldade para se aproximar, enquanto Bartimeu é repreendido e hostilizado pela multidão de seguidores de Jesus. O modo de tratamento empregado pelo primeiro é “bom (Deus) mestre (homem)”, e o utilizado por Bartimeu é “Jesus (homem), filho de Davi (Messias)”. O jovem pergunta a Jesus “o que farei?”, mas com Bartimeu é Jesus quem pergunta “o que queres que eu te faça?”. O jovem não abriu mão das suas posses; enquanto Bartimeu “lançando de si a capa, levantou-se e foi ter com Jesus”. O jovem queria a vida eterna (espiritual), e Jesus dá-lhe uma tarefa material: “vende tudo o que tens…” Bartimeu queria tornar a ver (material), e Jesus lhe dá a salvação, dizendo-lhe “a tua fé te salvou” (espiritual). Jesus diz ao jovem “vem e segue-me”, mas ele foi embora triste; a Bartimeu Jesus disse “vai”, mas ele “seguia a Jesus estrada fora”.
4. Auxílios litúrgicos
Oração:
Ó Deus eterno, rendemos-te graças porque te revelas a nós no caminho e porque, no diálogo franco, tu também revelas a nós o que nós realmente somos. Reconhecemos nosso egoísmo, orgulho, vaidade, mesquinhez e arrogância de achar, presunçosamente, que podemos fazer alguma coisa para merecer a vida eterna. Por essa razão, pedimos-te que a tua Palavra venha até nós neste dia e nos assombre, nos inquiete e nos desafie a superar a lógica materialista dos nossos dias, para que, por tua graça, abracemos a vida plena do teu reino. Nós também te suplicamos que, assim como fizeste no passado com aqueles e aquelas a quem encontraste no caminho e à margem do caminho, nos olhes com a mesma ternura e nos dirijas o mesmo olhar amoroso e manso. Dá-nos a disposição para também nós darmos o passo decisivo da fé e, tudo deixando, ir ter contigo para ser cura- dos da nossa cegueira e libertos daquilo que nos possui. Que possamos seguir-te estrada afora e servir-te na prática da justiça e da solidariedade para com todos, especialmente com os que mais precisam. Por Jesus, Filho de Davi, amém!
Bibliografia
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.
ZAQUEU e o jovem rico. Rogate, São Paulo, v. 15, n. 144, p. 2-4, ago. 1996.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).