Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Marcos 10.2-12
Leituras: Gênesis 2.18-24 e Hebreus 1.1-4; 2.5-12
Autora: Kurt Rieck
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 07/10/2012
1. Introdução
Façamos uma viagem no tempo. Quando foi escrito Gênesis 2? Alguns teólogos afirmam que o texto pertence à tradição javista, ou seja, que teria sido escrito na época davídico-salomônica (1.000 antes de Cristo). No Evangelho de Marcos, Jesus faz referência ao texto de Deuteronômio 24, escrito por volta de 650 anos antes de Cristo. Esse diálogo de Jesus a respeito do divórcio aconteceu pelos anos 30 depois de Cristo, que, por sua vez, foi registrado por volta do ano 70 d.C. O livro de Hebreus pertence aos anos 80 d.C. E nós lemos esses textos no ano de 2012. Quanto conhecimento e quanta cultura se acumularam ao longo desses anos! O livro de Hebreus aponta para a autoridade e o senhorio de Jesus: “… aquele, por cuja causa e por quem todas as coisas existem…” (Hb 2.10). O evangelho previsto para este domingo fala do casamento e do divórcio. Jesus aponta em seu argumento para o texto de Gênesis. Com autoridade, Ele discutiu com os fariseus, apontando para a origem de todas as coisas.
Essas palavras que orientam o matrimônio deixaram de ser relevantes com o passar dos anos?
O tempo passa, mas a lógica da natureza é a mesma. Jesus quer o bem e tem em vista a felicidade da humanidade, que se dá na estabilidade do casamento. Somos criação de Deus. Fazemos parte do pensamento de Deus.
2. Exegese
Esse evangelho é gerado por uma pergunta formulada pelos fariseus, que, na versão de Almeida (Revista e Atualizada), assim se apresenta: “É lícito ao marido repudiar sua mulher?”. Na versão da Nova Tradução na Linguagem de Hoje, a pergunta está assim formulada: “De acordo com a nossa lei, um homem pode mandar a sua esposa embora?”.
Os fariseus eram distinguidos por seu fervor religioso. “Observavam as leis de Moisés com a maior meticulosidade, bem como as regras acrescentadas pela tradição, isto é, pelos rabinos, cuja maioria pertencia a seu partido” (J.J. von Allmen, Vocabulário Bíblico). Indagavam Jesus para observar se Ele iria contradizer a lei mosaica.
Está em jogo a lei escrita em Deuteronômio 24.1: “Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio …”. Como interpretá-la?
Durante os séculos I antes e depois de Cristo, havia duas escolas rivais que se destacavam na interpretação do Antigo Testamento: a de Hilel e a de Shamai. A escola de Shamai entendia que o termo “indecente” referia-se a uma mulher que havia cometido o adultério. A escola de Hilel interpretava a palavra “indecente” de forma liberal, podendo ser qualquer motivo fútil relacionado à mulher, como falar muito alto ou não saber cozinhar. Ter encontrado outra mulher mais bonita também poderia ser razão para o divórcio. Afirma-se que, no tempo de Jesus, as relações matrimoniais eram instáveis.
A resposta dos fariseus confirmava a possibilidade do divórcio.
A resposta de Jesus dá-se em dois argumentos. Primeiro, ele alega que o motivo de Moisés ter permitido o divórcio estava na “dureza do coração”. A insensibilidade provoca a separação. O pecado humano é que proporciona o divórcio, cria as desavenças, gera a falta de amor, incapacitando a pessoa a se doar uma para a outra. O relacionamento conjugal está em risco sempre que uma das partes age de forma egoísta.
Num segundo argumento, Jesus aponta para a criação. Refere-se aos textos de Gênesis 1.27 e 2.24. A vontade de Deus dá-se na criação do homem e da mulher, que se atraem. O casamento é uma aliança, um pacto de vida a dois, o qual gera compromisso e promove vida para ambos. “Deixar” pai e mãe é tornar público o desejo do casal, constituindo uma nova família. Presente de Deus para o casamento é o ato sexual, fonte de prazer e de alegria, que torna o casal uma só carne. Dois tornam-se um. A relação sexual age profundamente na psique de ambos. O ato sexual aproxima o casal. Assim sempre foi e assim continuará sendo.
Fica claro que, para Jesus, a união matrimonial é muito maior do que o simples cumprimento de leis e normas. Nada mais íntimo do que tornar-se uma só carne física, psíquica e espiritualmente. A santidade do casamento faz parte da intenção divina na criação. O divórcio ocorre quando se dá a ausência do amor incondicional. A presença do amor de Deus no matrimônio sempre fortalecerá o laço conjugal.
Para o evangelista Marcos, o divórcio e o novo casamento são algo impossível. No entanto, no texto paralelo que encontramos em Mateus 19.3-9, o divórcio torna-se possível em caso de adultério.
O assunto é palpitante, e os discípulos queriam, em seu círculo privado, continuar falando com Jesus a respeito. Ele finaliza qualificando ser adultério mandar seu cônjuge embora e casar com outro. Isso vale tanto para o marido como para a esposa. O sexto mandamento é fundamental para o equilíbrio pessoal, familiar e social.
Sugiro que leiam o texto de Ivoni Richter Reimer, escrito no Proclamar Libertação 28, página 326. Trata-se de uma referência importante.
3. Meditação
Jesus caminhava, pensava, falava e era questionado. Pensamentos movem o mundo. As boas-novas de Jesus movem o cristianismo. O evangelho lido trata de perguntas que dizem respeito ao cotidiano, entre eles o relacionamento matrimonial.
O título que se dá para esse texto na versão de Almeida (Revista e Atualizada) é: “A questão do divórcio”. Na Nova Tradução na Linguagem de Hoje, é: “Jesus fala sobre o divórcio”. Embora a reflexão se origine em questões negativas, entendo que podemos inverter a chamada e apontar para a santidade do casamento. Assim daria um novo título: “A felicidade do casamento”.
A realidade na qual Jesus viveu não era tão diferente da nossa. Relativizar a lei para legitimar atitudes egoístas sempre foi uma prática comum. Assim é o exemplo das escolas de Hilel e de Shamai. Aliás, em nossos dias, os Dez Mandamentos nem mais são considerados pela grande maioria da população. Falar de casamento até que a morte vos separe parece até uma piada. Troca-se de parceiros assim como se troca de camisa. O “eu” está cada vez maior, e o “nós” está diminuindo.
Somos pessoas influenciáveis. Contou-me um amigo nascido em Portugal que ele ficou muito impressionado com as mudanças que aconteceram nas vilas e aldeias de seu país de origem. No ano de 1975, aconteceu o ingresso das novelas da televisão brasileira. A vida familiar pacata e singela foi influenciada, entre outros, pelos padrões impostos pela “telinha”. Estrutura familiar estável toma formas caóticas, alterando padrões éticos e morais, bem assim como demonstrado nas novelas. As pessoas tomam por verdade aquilo que lhes é dito e imposto. As massas são manipuláveis tanto pela propaganda como pelos programas. As pes-soas ingenuamente se deixam levar, com baixa capacidade crítica. E isso as afeta na relação conjugal.
Não faz muito, surgiu entre os jovens o conceito do ficar. Essa brincadeira não é inócua. Num dia se fica com um, noutro dia se fica com outro, ou ainda se fica com muitos em uma mesma noite, e sempre sem compromisso. Vive-se uma geração egoísta. Fidelidade, nem pensar. Os estragos já estão sendo colhidos. Assim se cria uma geração que não quer compromisso.
Jesus não ignora o divórcio. O divórcio nunca é fruto do bem. Por amor ninguém se separa. Ele só acontece por ter havido um acúmulo de erros não resolvidos. Há situações insustentáveis, e nesse caso o divórcio é o menor entre dois males. Não que Jesus concordasse com o divórcio, mas, sim, ele diz que o divórcio acontece “por causa da dureza do coração” das pessoas. O desentendimento, a falta de atenção, as relações egoístas também sempre estarão em jogo no relacionamento conjugal. Isso faz parte da natureza humana. Essa natureza é transformada e inspirada no amor incondicional revelado em última instância na cruz de Cristo.
A nossa igreja realiza a bênção matrimonial de divorciados, porque acredita que também os divorciados têm a chance de refazer a sua história. Ninguém está condenado para a infelicidade matrimonial pelo resto da vida.
Aliança gera comprometimento, que saberá lidar com as dificuldades. Ao olhar para a aliança recebida na bênção matrimonial, lembrará que ela está acima das circunstâncias.
O ato público da bênção matrimonial torna-se um momento de consagração. De joelhos, no altar de Deus, há uma entrega da vida pessoal de cada um dos nubentes. Consagrada a vida para Deus, há a consagração da vida de um para o outro. Com reverência e humildade, recebe-se a bênção que procede do Trino Deus. Isso torna o matrimônio cristão um ato santo. Nunca esquecendo que é o amor incondicional, provindo de Deus por intermédio de Jesus Cristo, que torna o amor matrimonial um ato divino. O exercício da espiritualidade é fundamental para o crescimento matrimonial. O amor humano é limitado. O amor divino é incondicional. Ao alimentar-se do amor divino, o casal terá a inspiração necessária para manter a santa união matrimonial.
Há um fundamento lançado desde a criação que promove a célula mater da sociedade. Inicia com uma profunda amizade, desenvolve-se para um relacionamento de amor incondicional e torna-se uma entrega de corpo e alma. Nessa dimensão, encontramos a estabilidade de um relacionamento sadio. De uma relação amorosa, respeitosa e carinhosa brota a segurança do casamento. Assim é possível descrever um quadro ideal, que sabemos ser raro, mas possível.
Mas o adultério continua sendo praticado. Quem não respeita aquele que lhe é mais caro, com quem se tornou uma só carne, perde a credibilidade em demais segmentos de sua existência. Aquele que trai seu cônjuge antes de qualquer coisa traiu a si mesmo, corrompendo o seu caráter.
O perdão que Cristo propõe na cruz é também para os erros cometidos no matrimônio. O arrependimento e o perdão são elementos da cura divina para os relacionamentos rompidos. Acolher essa graça pode converter o caos em harmonia.
E não esqueçam: ninguém se separa por amor. É nesse ponto que Jesus insiste, valorizando o matrimônio, tornar-se uma só carne, não permitindo que o enlace se torne vulgar.
4. Imagens para a prédica
É tempo de anunciar o belo, o rico, o extraordinário que está na constituição de uma família equilibrada e estável. Valorize a obra do Criador, que fez o homem e a mulher para tornar-se uma só carne. Fale do casamento. Sublinhe a importância da bênção matrimonial e do significado da consagração que se dá nesse ato.
A construção do bom entendimento está na sutileza dos pequenos detalhes. Ter sempre uma atitude positiva, uma palavra de amor, um gesto de carinho fará com que o matrimônio seja fortalecido.
Causa um grande impacto fazer à comunidade as duas seguintes perguntas: Vocês sabem qual é o local mais próximo do céu? O lar. Você sabe qual é o lugar mais perto do inferno? O lar. Tudo depende do que fazemos nele.
Partilho uma lenda que se conta na Índia sobre a criação do homem e da mulher, apresentada por Walter Trobisch em seu livro “Amor, sentimento a ser aprendido”.
Quando acabou de criar o homem, o Criador reparou que tinha usado todos os elementos concretos. Nada mais havia de sólido, maciço ou duro para criar a mulher.
Depois de pensar muito tempo, o Criador tomou a redondeza da lua, a flexibilidade da trepadeira e o farfalhar da grama, a finura da cana e o desabrochar das flores, a leveza das folhas e a serenidade dos raios do sol, as lágrimas das nuvens e a instabilidade do vento, a timidez dum coelho e a vaidade dum pavão, a maciez da penugem dum pássaro e a dureza dum diamante, a doçura do mel e a crueldade dum tigre, o crepitar do fogo e o frio da neve, a tagarelice dum papagaio e o cantar dum rouxinol, a astúcia duma raposa e a fidelidade duma leoa. Misturando todos esses elementos não sólidos, o Criador fez a mulher e a deu ao homem.
Depois de uma semana, o homem voltou e disse: “Senhor, a criatura que me deste faz a minha vida infeliz. Ela fala sem cessar e atormenta-me de tal maneira que não tenho descanso. Ela insiste em que eu lhe dê atenção o dia inteiro, e assim as minhas horas são desperdiçadas. Chora por qualquer motivo e leva uma vida ociosa. Vim devolvê-la porque não posso viver com ela”.
O Criador disse: “Está bem”. E tomou-a de volta.
Depois de uma semana, o homem voltou ao Criador e disse: “Senhor, minha vida é tão vazia desde que eu trouxe aquela criatura de volta! Eu sempre penso nela, em como dançava e cantava, como me olhava, como conversava comigo e depois se achegava a mim. Ela era agradável de se ver e de acariciar! Eu gostava de ouvi-la rir. Por favor, dá-me de volta!”
O Criador disse: “Está bem”. E a devolveu.
Mas três dias depois, o homem voltou e disse: “Senhor, eu não sei – não posso explicar, mas depois de toda a minha experiência com essa criatura, cheguei à conclusão de que ela me causa mais problema do que prazer. Peço-te, toma-a de novo! Não posso viver com ela!”
O Criador respondeu: “Mas também não pode viver sem ela!” E virou as costas ao homem e continuou o seu trabalho. O homem, desesperado, disse: “Como é que eu vou fazer? Não consigo viver com ela e não consigo viver sem ela!”.
Precisamos levar em consideração que esse exemplo é um escrito feito sob a ótica do homem. Bem se pode fazer uma lenda semelhante escrita sob a ótica da mulher. A vivência conjugal carece ser aprendida.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia:
Neste momento te buscamos, Senhor. Tu vens ao nosso encontro e nos ofereces comunhão. Queremos reconhecer a tua presença entre nós e expressar a nossa gratidão por nos dares a possibilidade de constituir um lar e repartir a vida. Senhor, de ti precisamos aprender a amar. Rogamos que o teu Espírito Santo nos faça compreender a grandeza do amor incondicional. Amém.
Confissão de pecados:
Queremos ter um momento de silêncio e pensar:
Há algum motivo que prejudica a minha relação conjugal?
Como está o meu relacionamento com os filhos?
Tem algum motivo que prejudica a minha paz com Deus?
Senhor, não te canses de me moldar, a fim de que eu prossiga no aprendizado do amor.
Santa Ceia:
Na Ceia, alimentamo-nos de Jesus. Ele se torna materialmente parte de nós. Ele nos limpa por dentro e por fora. Queremos que o nosso matrimônio seja movido por Cristo, sendo Ele a fonte que nos alimenta. No altar de Deus, repartindo a Ceia instituída pelo nosso Senhor Jesus, reiteramos o desejo de nos aceitar e nos perdoar, movidos por Cristo. Cálice é a marca de um acordo, de um pacto. Esse pacto nos faz lembrar o matrimônio e a consagração realizada na presença do Trino Deus. A Ceia é a festa do corpo de Cristo, na qual inúmeros casais e famílias celebram a unidade que provém da fé.
Bibliografia
BARCLAY, William. Marcos – El Nuevo Testamento Comentado. Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1974.
TROBISCH, Walter. Amor, sentimento a ser aprendido. São Paulo: ABU Editora, 1970.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).