Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Marcos 10.35-45
Leituras: Isaías 53.4-12 e Hebreus 5.1-10
Autora: Manoel Bernardino de Santana Filho
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/10/2012
1. Introdução
O Evangelho de Marcos é, provavelmente, o mais antigo dos chamados evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas). É um relato simples e objetivo. Seus ensinamentos concentram-se na pessoa de Jesus em seus ditos e feitos, na procura por sua identidade. O autor de Marcos tem a finalidade de responder a pergunta: Quem é Jesus?
A tradição cristã atribui a autoria do evangelho a João Marcos, primo de Barnabé (Cl 4.10), o mesmo que causou estremecimento nas relações entre Paulo e Barnabé por ocasião da segunda viagem missionária do apóstolo. Nesse caso, o autor não é uma testemunha ocular dos eventos por ele apresentados. Desde o século 2 A.D. que a autoria de João Marcos é confirmada pelo testemunho de Papias, Clemente de Alexandria, Irineu, Orígenes e outros. No entanto, esses autores sempre ligam o nome de Marcos ao apóstolo Pedro.
Durante muito tempo, Marcos foi desprezado pelos estudiosos do Novo Testamento por sua estrutura sucinta sem o detalhamento encontrado em Mateus e Lucas. Um dos motivos principais para essa atitude deve-se ao fato do evangelho não apresentar as narrativas de infância de Jesus. Ao contrário dos outros textos sinóticos, Marcos começa com a vida pública de Jesus sem nenhum preâmbulo.
Essa tendência mudou a partir dos últimos dois séculos, que elevou o segundo evangelho ao status de mais antigo dos sinóticos. Coube a Marcos estabelecer uma nova forma de contar a história de Jesus, deixando de lado as narrativas orais e inaugurando o evangelho escrito.
A teologia de Marcos gira em torno do assim chamado “segredo messiânico”, que se caracteriza pela tensão entre o segredo e a manifestação do Senhor. É o próprio Jesus quem impõe o “segredo” por meio de certa precaução e pedagogia tanto com o povo em geral como em relação aos discípulos em particular.
Há em Marcos a necessidade de perguntar pela identidade de Jesus (Mc 8.27). Os discípulos foram atraídos por sua personalidade, mas a compreensão que eles têm é suspeita. Por isso Jesus precisa fazer um segundo convite com uma base nova: no primeiro convite, quem chamava era aquele que é maior do que João Batista (1.7); no segundo convite, Ele é cossofredor (9.12). O que Ele vai inaugurar é um messianismo de serviço (Mc 8.29-33). Isso aproxima-o da figura do Servo Sofredor do Segundo Isaías (53.4-12).
O texto de Hebreus (5.1-10) mostra o ofício sacerdotal do Messias-Servo. Para oferecer sacrifício, o sacerdote precisava ser misericordioso. Tinha que se condoer com aqueles que vinham até ele em busca de mediação. O autor da Carta aos Hebreus diz-nos que Jesus, como o sumo sacerdote do Antigo Testamento, enquanto Sumo Sacerdote do novo povo de Deus, ofereceu o sacrifício de si mesmo. Toda a sua trajetória de vida foi um caminho de sofrimento e sacrifício (Fl 2.5-6). No Getsêmani, lutou pelos seus em oração e sacrificou sua própria vontade. Em Hebreus, sua humanidade é destacada. Como ser humano, foi aperfeiçoado pelo sofrimento. Foi obediente ao Pai até o fim. Mas essa obediência não foi ganha sem esforço. Ele a aprendeu exercitando-a no sofrimento.
2. O texto
Marcos apresenta Jesus e seus discípulos avançando para Jerusalém. Fica clara a determinação para o início e o prosseguimento da viagem. Ched Myers, em seu comentário sobre Marcos, apresenta a estrutura do evangelho com dois prólogos: o primeiro inicia com o texto de 1.1-20; o segundo prólogo é apresentado em 8.27-9.13. É como se fossem dois livros, cada um com sua estrutura e iniciando com um convite para o discipulado.
O primeiro prólogo inicia logo após Ele herdar o ministério de João Batista e chamar alguns a quem Ele elegeu para segui-lo. São pessoas das mais distintas classes. Mas Ele não chegou se apresentando, não entregou um cartão de visitas, não declarou seus projetos, não disse aonde iria. Só disse que começaria algo novo com eles. Desafiou-os a mudar o rumo de suas vidas.
Em Israel, havia duas tendências sobre o Messias. Na primeira, o Messias é visto como o vitorioso Leão de Judá, a raiz de Davi. Seu messianismo político o levará à vitória final contra todos os reinos. Segundo a visão apocalíptica de Daniel, “seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído” (7.14b). No entanto, havia outra compreensão na linha do Servo de Javé. Segundo Gerhard von Rad, desde o século 7 a.C. já se aliava a figura do Servo com o profeta, cuja imagem havia evoluído na direção do mediador que sofre. No entanto, a interpretação judaica deixa por resolver a questão se o Servo representa um indivíduo, cuja manifestação se daria num determinado tempo ou antes é símbolo de todo o povo de Israel em sua história. O Segundo Isaías faz essa interpretação coletiva (49.3), que se contrapõe a uma interpretação individual (42.1). No primeiro caso, sua função principal é governar; no segundo, é profética. Nesse caso, sua pregação denuncia sofrimento e humilhação.
3. Exegese
O pedido que fazem Tiago e João mostra que os discípulos ainda estão surdos diante das predições de Jesus. O Senhor havia predito a perseguição e a morte em Jerusalém (Mc 8.30-32). Mas eles estavam convencidos de que seu líder haveria de vencer; portanto já pensam na administração do novo regime. Sentar-se à direita e à esquerda pode ser uma alusão ao Salmo 110.1 ou a lugares de vitória no banquete messiânico. De qualquer forma, é uma reivindicação política.
O pedido é ambicioso. Sem dúvida, Tiago e João eram muito jovens quando vieram a Jesus com esse pedido. Para Mateus, que possui uma recordação própria, não são os discípulos que pedem a Jesus para receber lugares de honra ao lado de Jesus, e sim sua mãe, que, segundo Marcos (15.40) e Mateus (27.56), é Salomé e, conforme João (19.25), é irmã da mãe de Jesus. Nesse caso, o pedido apoia-se no parentesco próximo. Na comunidade apostólica, os parentes de Jesus obtiveram uma posição destacada. Segundo Fritz Rienecker, Mateus tenta resguardar os discípulos que, no seu tempo, eram as colunas da comunidade. Parece que Mateus não acredita que eles próprios fizeram um pedido tão ambicioso. Estava mais para o orgulho materno.
Mas, aqui em Marcos, são eles mesmos que fazem o pedido. Tiago tornou-se o primeiro mártir entre os apóstolos (At 12.1-2). Ao lado de Judas, é o único apóstolo cuja morte é relatada no Novo Testamento. Mas o fato de ter sido escolhido para a morte pode ser evidência de que era um líder destacado na comunidade primitiva.
A natureza de sua morte mostra o significado de sua vida. Tiago foi executado a partir de um plano premeditado, cujo objetivo era minar a resistência do movimento cristão. Quando Estêvão foi executado, pensaram que o ato seria suficiente para desencorajar os cristãos. Mas a igreja continuou a crescer. Saulo de Tarso, o perseguidor da igreja, converteu-se, e os judeus que se levantaram contra os cristãos incitaram as autoridades. Finalmente, por volta do ano 42 A.D., Herodes Agripa I tentou cair nas graças dos judeus por meio dessa execução.
Pode-se pensar que Tiago era líder por conta de sua prisão e martírio. Pedro foi preso pela mesma razão. Tiago não operou nenhum milagre, não pregou nenhum sermão, não escreveu nenhum livro ou carta, jamais falou qualquer palavra a não ser em conexão com os ditos de João. Todavia, podemos perceber que ele era figura central para o crescimento da igreja. Isso se comprova pelo fato dos auxiliares de Herodes tê-lo arrolado como líder do jovem movimento cristão.
Mas tanto Tiago como João eram jovens impulsivos. Daí a possibilidade deles mesmos terem feito o pedido a Jesus. Ele os chamou de Boanerges (Mc 3.17), que significa “filhos do trovão”. Quanto a João, a tradição lhe daria um lugar proeminente. Nos dias do ministério de Jesus, ao lado de Pedro e Tiago, ele fez parte do círculo íntimo de Jesus. Esteve com ele nas horas mais difíceis. Estava no monte da transfiguração, na agonia do Getsêmani. Mas dele a igreja falaria abundantemente. É reconhecido como “o discípulo amado”, autor ou coautor do quarto evangelho. Teria escrito o Apocalipse. Sem entrar no mérito das questões relativas à autenticidade dessas tradições, João é aquele discípulo que foi preservado para levar adiante os ensinamentos de Jesus.
Tiago e João eram dois homens ambiciosos. Ambição em si não é bom nem ruim. É um poder neutro. É um sentimento natural, não uma fraqueza. O que acontece é que uma ambição pode não ser boa. Por exemplo, desejar os primeiros lugares sem fazer jus a eles.
Jesus disse a Tiago e João: Vocês não sabem o que estão pedindo. Estão enganados, não por ser ambiciosos, mas por estar ambicionando a coisa errada, por desconhecer a natureza do reino de Deus. Jesus afirma que em seu reino as leis sobre os primeiros e os últimos lugares seguem outra lógica do que aquelas do mundo. Jesus pergunta-lhes se estavam prontos a beber o seu cálice ou receber o batismo com que ele mesmo seria batizado. A resposta deles é imediata: podemos. Jesus então confirma que eles beberiam o cálice e receberiam o batismo. No entanto, os lugares não seriam designados. Esses são para aqueles que estão preparados. Jesus afirma que “quem quiser preservar a sua vida perdê-la-á, e quem a perder de fato a salvará” (Lc 17.33). Não há outro caminho para sentar nos primeiros lugares no reino de Deus.
4. Meditação
Tiago e João receberam o chamado de Jesus para o serviço. Eram pescadores, mas naquela hora não estavam pescando. Estavam na companhia de seu pai, consertando o instrumento de trabalho. Consertavam as redes. Era um trabalho demorado. Aquelas redes partiam-se com frequência, e esse trabalho à beira-mar era constante e necessário para a continuidade da pesca. Jesus chamou-os, e Mateus diz que “no mesmo instante” largaram o barco e seu pai e o seguiram.
É um chamado radical. Fico pensando no pai de Tiago e João. Já devia ser velho. A expectativa de vida do brasileiro hoje é de 73 anos. Há 50 anos, era de menos de 50 anos. Na época de Jesus, a média era de 35-40 anos. Portanto o pai de Tiago e João era um homem considerado velho e precisava dos filhos. Como deixá-lo?
Sabe como começam esses chamados? Jesus andando na praia… Ele não ficou no templo esperando. Ele foi encontrar-se com as pessoas. Ele estava andando. E viu as pessoas nos seus afazeres. Um pescava, outro consertava as redes, outro recebia impostos.
Jesus estava andando na praia. Aquela era a praia de Tiago e João. Era a praia de Zebedeu. Qual é sua praia? Tem gente que gosta de dizer assim: eu estou na minha praia. Isso aqui é o meu elemento. Disso aqui eu entendo. É minha vida. Saiba que Jesus anda na sua praia também. Não importa qual seja ela. Ele vai até você e encontra você lá. E aí Ele chama. Ele vê e chama. Ele viu Tiago e João e os chamou. Cada um na sua praia. Eles foram vistos e sentiram-se vistos.
Ele anda, vê e chama. Pedro e André, Tiago e João, Mateus, todos ouviram o chamado e o seguiram. Mas Ele não vê apenas aqueles que Ele chama para o discipulado, para o apostolado. Ele vê e chama todos para construir a sua igreja. Viu a sogra de Pedro, na casa desse, ardendo em febre. Lucas, o médico, diz que ela estava com febre muito alta (Mt 8.14-15). Ele vê o enfermo onde ele estiver.
O que quero dizer é que Jesus vê todo mundo. Ele vê o homem e a mulher no trabalho, vê o enfermo no leito de morte, vê a criança na escola, o adolescente fissurado no computador, o jovem buscando diversão na noite. Pare um pouco e você poderá ouvi-lo.
Você está cansado? Sabe o que Ele diz sobre isso: “Vinde a mim todos os que estais cansados…” (Mt 11.28-29). A semente do evangelho entra nas famílias por meio de pessoas que atendem esse chamado. Em Jesus, a vida renova-se como fonte de amor, gratidão e admiração. Ele chama homens e mulheres ao arrependimento. Chama para novos desafios.
Não busque lugares de honra. A lógica do reino é outra. O maior será o menor. Os últimos serão os primeiros. No Talmude, Jesus está assentado à direita de Deus e Abraão à esquerda.
O pedido provém de uma fé sem maturidade, seja de Tiago e João ou de Salomé. Não importa. Os três serviram a Jesus. Sobre Tiago e João já falamos. Quanto a Salomé, vamos encontrá-la entre as mulheres que ficaram ao pé da cruz (Mt 27.56: “a mulher de Zebedeu”; Mc 15.40: “Salomé”; Jo 19.25: “Maria, mãe de Jesus, (e) a irmã dela”). Ela continuou sendo mulher de Zebedeu. Só que ele ficou em casa com sua pesca, e ela seguiu Jesus com seus filhos.
Precisamos estar prontos para responder pela opção que fizermos pelo reino de Deus. O texto de Marcos alerta-nos em suas entrelinhas dos perigos que ameaçam a pregação do reino de Deus. Jesus iniciou sua pregação mesmo sabendo o que isso lhe poderia custar. Estava ali bem próximo o exemplo do Batista. João era o primeiro mártir de uma geração de profetas que se colocava entre a Antiga e a Nova Dispensações. E qual é a lógica do martírio? É uma sucessão de testemunhos que nem mesmo a morte pode calar. Aliás, o verdadeiro mártir é aquele que fala mais na morte do que na vida.
O compromisso com Cristo, quando vivido em sua intensidade profunda, significa opção de vida. Significa fazer opção pela justiça do Reino, em oposição aos poderes da morte.
Ernst Bloch, autor de “O Princípio Esperança”, afirma que há duas categorias de afetos: 1) os da sociedade são gerais: inveja, cobiça…; 2) os da expectação: angústia, temor, esperança. Essa segunda categoria são aqueles que antecipam o futuro. E o mais importante é a esperança. Esperança é um sonho diurno que se projeta ao futuro, é uma representação psíquica daquilo que ainda não é. Porém essa esperança procura ser clara e consciente, ou seja, é uma esperança sábia (docta spes). A esperança é para ele a chave da existência humana orientada para o futuro. Esse autor nos ensinou a compreender de maneira nova o poder avassalador do futuro e da esperança que antecipa esse futuro para a vida.
5. Imagens para a prédica
Pode-se imaginar uma representação em que se colocam três cadeiras no centro da sala onde estiver acontecendo a reunião. Na cadeira central, senta-se uma pessoa que representa Jesus. A seguir, as pessoas são convidadas a dizer quais as qualidades das pessoas que deveriam ocupar aqueles assentos, tanto os da direita como os da esquerda. É importante deixar que a pessoa exponha ao máximo as qualidades dos ocupantes das duas cadeiras tão cobiçadas.
Após esse exercício, deve-se perguntar quem dentro das qualificações apresentadas se apresenta para ocupar um daqueles lugares. Certamente virá um momento de silêncio, de reflexão e de negação de si mesmo como autoqualificado para a cadeira. Provavelmente, se soubessem que após o primeiro exercício viria o convite para sentar-se numa das cadeiras, certamente cada um seria menos exigente quanto às prerrogativas do convidado.
No reino de Deus, não há promoção ou privilégio por mérito. A liderança só pode ser exercida pelos que aprendem e seguem o caminho da paz e da entrega de si mesmo, para os que estão preparados não para dominar, mas para servir e sofrer ao lado de Jesus Cristo.
6. Subsídios litúrgicos
1 – A liturgia deve promover a consciência de nossa dependência de Deus. Devem ser escolhidos cânticos que exaltem o sentido de nossa necessidade de humilhação. Sugiro o cântico Lava-pés e o Kyrie (O Novo Canto da Terra, 60 e 192).
2 – As leituras e orações devem frisar o ministério de serviço que devemos exercer. Jesus convida-nos para o serviço. Ele concedeu dons com vistas ao aperfeiçoamento dos santos (ler Ef 4.7-12).
3 – A mensagem deve conscientizar da necessidade que temos de aprender a ser solidários. Mostrar que os discípulos erraram quando buscaram benefícios para si mesmos. É preciso olhar para o outro como alvo do amor de Deus.
4 – A celebração deve terminar com uma oração de contrição. Essa oração deve ser uma entrega pessoal, a negação de si mesmo e a abertura para olhar o outro como irmão e irmã.
Bibliografia
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. Tradução de I. F. L. Ferreira. São Paulo: Paulinas, 1992.
NODARI, Paulo César; CESCON, Everaldo. Aprendendo com o Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulus, 2009.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).