Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Marcos 10.35-45
Leituras: Isaías 53.4-12 e Hebreus 5.1-10
Autoria: Claudete Beise Ulrich
Data Litúrgica: 22º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/10/2018
1. Introdução
No Brasil desenvolveu-se uma cultura da meritocracia. O que significa isso? No dicionário lemos que meritocracia (do latim mereo, merecer, obter) é a forma de governo baseado no mérito. As posições hierárquicas são conquistadas, em tese, com base no merecimento, e há uma predominância de valores associados à educação e à competência. O que significa mérito? Mérito: s.m. Aquilo que faz com que uma pessoa seja digna de elogio, de recompensa; merecimento. Qualidade apreciável de uma coisa, de uma pessoa. O que caracteriza a ação de merecer honras ou castigos; merecimento: condenado pelos seus méritos; prêmio recebido pelos seus méritos.
A meritocracia, como tem sido entendida no Brasil, tem gerado desigualdade e exclusão de pessoas, especialmente da população pobre, negra, indígena. É necessário deixar claro que as oportunidades não são as mesmas para as pessoas. Nem todas as crianças estudam em escolas particulares. Nem todas as
pessoas são de famílias ricas e brancas. Percebe-se que algumas pessoas também querem viver a meritocracia na vida comunitária. Algumas pessoas pensam que têm mais direitos porque o avô foi do presbitério no passado ou porque a avó é fundadora do grupo da OASE, e assim por diante. São situações bem conhecidas entre as ministras e os ministros.
Mas o que de fato constitui o mérito? É a pessoa fazer mais, isto é, ir além daquilo para o qual estudou ou no qual trabalha; reconhecer que o que se alcança através dos estudos, do esforço, da dedicação, do trabalho são apenas capacitações. Por exemplo: alguém que se forma depois de muito esforço, especialmente aquela pessoa que chega lá às custas de muito sacrifício pessoal e familiar, com certeza tem o direito de aceitar e receber o reconhecimento de mérito da parte de seus familiares, e tem o direito de se orgulhar pelo que fez e pelo que atingiu, mas não de pretender levar esse mérito pessoal além dos limites de sua esfera pessoal.
Da mesma forma, não se pode levar relações de amizade ou parentesco para além da vida pessoal. No entanto, isso tem acontecido em nosso cotidiano brasileiro. Por ser filho ou filha de fulano ou fulana, parece que a pessoa já nasce com o mérito, sem nenhum esforço. Para permanecer em qualquer lugar que se atinja, é necessário a constante capacitação. Claro está que o mérito pessoal alcançado sempre fará parte de sua história pessoal e faz parte de uma etapa da vida e não de toda a vida. Portanto é necessário saber que o mais importante é se capacitar constantemente, isto é, ser um eterno aprendiz, garantindo direitos iguais de oportunidades para todas as pessoas.
O texto da pregação para este domingo desconstrói toda a cultura do mérito e aponta para o serviço desinteressado, para uma fé ativa em amor. Este texto já foi tratado em vários volumes da série Proclamar Libertação, por exemplo: Rui Bernhard, PL X; Werner Kiefer, PL XVI; Gottfried Brakemeier, PL 28; Anelise Lengler Abentroth, PL 34; Manoel Bernardino Santana, PL 36.
O texto de leitura do Antigo Testamento, Isaías 53.4-12, aponta para o servo sofredor, aquele que tomou sobre si as nossas enfermidades. O texto da Epístola aos Hebreus (5.1-10) apresenta Jesus como sumo sacerdote, que vive a solidariedade através do sofrimento na paixão e morte de cruz. O texto da pregação aponta para a diaconia (serviço em amor) de Jesus (que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos) em contraste com atitudes dos discípulos que desejam o poder do mérito, isto é, sentar à direita e à esquerda de Jesus quando ele voltar em glória.
2. Exegese
O texto de Marcos 10.35-45 está inserido no contexto das narrativas que descrevem a caminhada de Jesus, juntamente com as pessoas que o seguiam a caminho de Jerusalém (8.27-10.52). De acordo com Elisabeth Schüssler Fiorenza (1992, p. 362), esse contexto trata do “verdadeiro discipulado”. Nesses textos, Jesus anunciou três vezes a sua paixão e morte (8.31ss; 9.30ss; 10.32ss). No entanto, após cada anúncio, ele foi incompreendido pelas pessoas que o seguiam (8.32s; 9.32s; 10.33s). A cada bloco de anúncio e incompreensão segue um ciclo de ensinamentos de Jesus a seus discípulos, tendo como objetivo deixar claro o que significa o verdadeiro discipulado (8.34-38; 9.33-37; 10.32-45).
No entanto, apesar dos vários ensinamentos de Jesus, dois discípulos pensavam que mereciam mais do que os outros. Tiago e João, filhos de Zebedeu, pediram a Jesus os lugares de honra no seu reinado messiânico (10.35-41). Segundo Rodolfo Gaede Neto (2001, p. 48), “Marcos nos apresenta discípulos que, apesar dos reiterados ensinamentos de Jesus sobre o caminho da cruz, insistem no caminho da glória: discutem entre si sobre quem haveria de ser o maior e quem ocuparia os lugares privilegiados”. Eles não entendem o caminho da cruz e o que o verdadeiro discipulado acontece no agir em favor de todos aqueles que Jesus menciona em seus ensinamentos. Essa questão também refl ete as situações de disputa da comunidade de Marcos.
Segundo Bruno Godofredo Glaab (1995, p. 99), “um antigo dito sobre a humildade ativa, vindo de Jesus, foi reinterpretado e retocado na comunidade pós–pascal e na Comunidade de Marcos para servir de base para o modelo de Igreja dos primeiros tempos. Portanto, também para a Igreja de nossos tempos”. A igreja de Jesus se mostra no serviço que ela presta aos desprivilegiados do mundo.
Pode-se dividir o texto da seguinte forma:
Marcos 10.35-37 – O pedido pelo primeiro lugar: Permite-nos que, na tua glória, nos assentemos um à tua direita e o outro à tua esquerda (Mc 10.37). Eles
estão preocupados somente consigo mesmos. Esqueceram de todas as pessoas que caminharam junto com Jesus. Eles se colocam como aqueles que merecem
um lugar especial. Consideram-se melhores, por isso o direito à meritocracia.
Marcos 10.38-40 – Jesus responde, novamente buscando ensinar o que significa o discipulado. Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis: Podeis vós beber o cálice que eu bebo ou receber o batismo com que eu sou batizados? (Mc 10.38). Jesus quer saber se eles, em vez do lugar de honra, aceitam entregar a vida pela causa do Reino até a morte. Os dois respondem: Podemos! (Mc 10.39). Jesus responde novamente: Bebereis o cálice que eu bebo e recebereis o batismo com que eu sou batizado (Mc 10.39). No entanto, o evangelho relata que poucos dias depois, abandonaram Jesus e o deixaram sozinho na hora do sofrimento (Mc 14.50). Quanto ao lugar de honra no Reino ao lado de Jesus, quem o dá é o Pai: Quanto, porém, ao assentar-se um à tua direita e outro à tua esquerda, não me compete concedê-lo; porque é para aqueles a quem está preparado (Mc 14.40). O que Jesus tem para oferecer é o cálice e o batismo, o sofrimento e a cruz.
Marcos 10.41-44 – Entre vocês não seja assim. Os outros discípulos se indignaram com a atitude de João e Tiago. No entanto, Jesus, chamando-os para junto de si, disse-lhes: Sabeis que os que são considerados governadores dos povos têm-nos sob seus domínios, e sobre eles os seus maiorais exercem autoridade (Mc 10.42). A ação dos discípulos e da comunidade de Marcos necessita ser diferente da atuação dos poderes da época, isto é, do Império Romano. O poder dos romanos era marcado pela repressão e pelo abuso do poder. Jesus coloca outra proposta. Ele diz: Mas entre vós não é assim; pelo contrário, quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva (diáconos), quem quiser ser o primeiro entre vós será servo (doulos) de todos (Mc 10.43-44). Jesus apresenta ensinamentos contra os privilégios e a rivalidade. Ele inverte o sistema e insiste no serviço como remédio contra a ambição pessoal. O paradigma para liderança comunitária apresentado por Jesus a partir da resposta a Tiago e João é o diakonos, é o doulos. As palavras usadas por Jesus apontam para o serviço realizado pelas mulheres e pelos escravos.
Marcos 10.45 – O resumo da vida de Jesus. Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos. Ele é o Messias servidor, anunciado pelo profeta Isaías (texto de leitura Is 53.4-12). Jesus aprendeu da sua mãe Maria, que disse: Eis aqui a serva do Senhor! (Lc 1.38). Jesus vive e apresenta uma proposta totalmente nova para a sociedade daquele tempo. O verdadeiro poder está no servir com amor, responsabilidade, respeito e ética.
3. Meditação
Jesus dá um ensinamento ético-moral de convivência em sociedade para seus discípulos a partir do pedido de João e Tiago. Eles fazem um pedido e Jesus os questiona se estão dispostos a seguir o que ele sofrerá. O discipulado se mostra no serviço, assumindo o compromisso até o fim. Jesus assumiu a diakonia, serviço desinteressado (fé ativa em amor), numa postura de humildade ativa. A postura que Jesus assume se contrapõe ao sistema político e religioso do seu tempo. Quando Jesus afirma que veio para servir e não para ser servido, ele está invertendo toda uma lógica de poder. O poder mostra-se nas relações em que se supera a ordem hierárquica e excludente. De acordo com Luise Schottroff (apud Glaab, 1995, p. 103), a comunidade de Marcos se inspira no servir das mulheres, pois todas as vezes que se fala em servir utiliza-se de formas que era a diakonia exercida pelas mulheres. A comunidade de Marcos, portanto, inverte a ordem social. O trabalho não reconhecido das mulheres e das pessoas escravas torna-se importante e indispensável para a vida comunitária e social. A diakonia, o servir em amor, sem vislumbrar privilégios, é fundamental para a organização da vida. O texto de Marcos 10.35-45 tem como mensagem central o próprio ministério de Jesus e a sua atuação no servir incondicional.
A humildade vinda de Jesus e de sua comunidade é reinterpretada como serviço em um ambiente pós-pascal. Jesus, com sua forma humilde de servir em amor (diaconia), deslegitimou a ordem romana e judaica oficial, devolvendo, desta forma, ao povo uma nova esperança. A cruz, base da instrução aos seguidores e seguidoras de Jesus, foi e continua sendo um enfrentamento aos regimes que destroem a vida.
Há mais de dois mil anos as palavras de Jesus da humildade ativa no servir com amor e justiça social são proclamadas nas comunidades cristãs em todo o mundo. No entanto, o discurso sobre o direito de ter o mérito continua muito atual, especialmente no momento histórico brasileiro que estamos atravessando. Esse pensamento da meritocracia, discriminatório, injusto continua presente também em nossas comunidades cristãs. As palavras de Jesus ainda continuam sendo incompreendidas, assim como foram por aqueles que sempre caminhavam junto com ele. Nossas atitudes continuam muito parecidas com as de Tiago e de João, que estavam querendo garantir um cargo no primeiro escalão da administração, pois pensavam que Jesus estava para instalar um reino em terras palestinas.
Hoje, o mesmo pedido continua, cotidianamente, repetindo-se na sociedade, nas famílias e nas igrejas. Muitos querem ocupar os primeiros lugares. Mas quando se pergunta o que se pode fazer para servir, muitas vezes a resposta é o silêncio. Percebe-se que em muitas situações as orações são súplicas por demais individualistas, voltadas somente para si mesmo.
A proposta de Jesus é de transformação, libertação da ambição por poder, para a recuperação da verdadeira dignidade do ser humano. A resposta de Tiago e João (v. 39) foi afirmativa: estão aptos para beber o cálice e receber o batismo de Cristo. A morte de Tiago como mártir nos mostra a confirmação da resposta dada a Jesus (At 12.2).
A realidade da cruz e da ressurreição não deve ser vista como mero acidente no discipulado. Antes, faz parte e é consequência do viver e ensaiar a proposta do reino de Deus já aqui e agora. A cruz é o crivo que caracterizará a pedagogia de ação dos discípulos e das discípulas. O servir fará a diferença. O serviço do discipulado direciona-se contra o favoritismo do mundo, viabilizando a transformação da sociedade. Aponta para a realidade do reino de Deus. Jesus não veio para ser servido, mas para servir e para dar a sua vida em resgate de muitos (Mc 10.45).
É bom lembrar que a palavra diaconia era profana nos dias de Jesus. Para os gregos, tinha um sentido negativo, pois servir era tarefa exclusivamente de escravo ou mulher e sinal de humilhação. Portanto um homem que quisesse ser honrado não podia servir, e sim ser servido. Jesus inverte totalmente essa lógica de pensar e agir. Ao invés de honrarias e privilégios, Jesus propõe uma vida de serviço (diaconia) a favor do próximo. Jesus dá o exemplo de como funciona o sistema mundano, opressor. Entre os seus seguidores não deveria ser assim, aquele que quisesse ser grande necessitava se tornar pequeno (servo).
O ensinamento e a vivência de Jesus questionam todo o sistema baseado em méritos em nosso cotidiano. Jesus ensina que o mais importante é o servir em amor. A proclamação do reino de Deus é para todas as pessoas, especialmente para quem assume o servir em amor. Jesus inverte a ordem do sistema: Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mc 10.45). O serviço desinteressado, baseado no amor ativo, tendo como objetivo a construção de um mundo de paz e justiça, continua sendo um desafio permanente para todas as pessoas cristãs. O discipulado consiste em sermos eternos aprendizes do amor de Deus, revelado em Jesus Cristo, o crucificado e ressurreto.
4. Subsídios litúrgicos
Hinos: HPD 2, 325 no início; HPD 1, 170 após a prédica e 181 no final.
Acolhida: Com alegria acolhemos a todas e todos neste culto, serviço de Deus a todos nós e ao mundo. Que o anúncio da Palavra chegue até os nossos corações. Que a Palavra transforme as nossas vidas, encorajando-nos a colocar sinais de esperança e de possibilidades de novidade de vida. Estamos reunidos e reunidas em nome daquele que era, que é e que há de vir: Deus, que nos ama, Jesus Cristo, que nos ensina, e o Espírito Santo, que nos encoraja a agir. Amém.
Confissão de pecados: HPD 1, 150.
Absolvição: Em vista da vossa confissão e confiando na promessa do perdão de Deus, vos declaro, como ministro ordenado (ministra ordenada) da igreja, o perdão dos vossos pecados, em nome do Pai (+), e do Filho, e do Espírito Santo.
Kyrie: Pelas dores deste mundo
Gesto da paz: HPD 2, 368.
Bênção: Deus de toda ternura, abençoa-nos em nossas lides cotidianas. Ensina–nos a servir com humildade, amor e ética. Que o exemplo diacônico de Jesus, de servir com humildade e não de ser servido, nos acompanhe em todo o nosso ser e afazeres. Sê conosco, Deus de toda ternura, sempre presente. Amém.
Envio: Que o exemplo amoroso de Jesus Cristo acompanhe a todos e todas. Vão em paz, sirvam às suas irmãs e seus irmãos com a humildade e a ética amorosa e a Deus com alegria. Amém.
Bibliografia
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. São Paulo: Paulinas, 1992.
GAEDE NETO, Rodolfo. A diaconia de Jesus: contribuição para a fundamentação teológica da diaconia na América Latina. São Leopoldo: Sinodal; Centro de Estudos Bíblicos; São Paulo: Paulus, 2001.
GLAAB, Bruno Godofredo. O Modelo Igreja Servico: uma análise teológica de Marcos 10.42-45. Revista Cultura Teológica, p. 99-107, 1995
MESTERS, Carlos; LOPES, Mercedes. Caminhando com Jesus – Círculos Bíblicos do Evangelho de Marcos. São Leopoldo: CEBI, 2012. (Coleção A Palavra na Vida 184/185).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).