Amar de coração e mente
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Marcos 12.28-34
Leituras: Deuteronômio 6.1-9 e Hebreus 9.11-14
Autoria: Marcos Antonio Rodrigues
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/11/2018
1. Introdução
Quando chega novembro, o peso de carregar todos os dias um ano inteiro de correrias, compromissos e esforços se faz notar. Estresses, ansiedades e depressões se anunciam e já cobram seu preço. Entre as muitas coisas necessárias, importantes e urgentes na vida, existe algo que não podemos descuidar, sob pena de perdermos o essencial: o amor.
Deuteronômio 6.1-9 nos lembra que para viver bem é necessário um investimento consciente e voluntário no amor. Moisés lembra que é preciso amar a Deus de todo o coração, toda a alma e todas as forças. O amor a Deus deve deixar marcas na pele, sinais concretos em nós e em nossos lugares de vida. Escrevê- -lo na testa, nos braços, nas portas e portões! Nenhuma promessa se cumprirá na nova terra se o povo descuidar disso.
O texto de Hebreus 9.11-14 contrasta o amor com os rituais e sacrifícios do dia a dia. Algumas coisas nos purificam por fora, mas o sangue de Cristo nos purifica por dentro. O amor que recebemos de Deus em Jesus é mais precioso e profundo do que aquilo que conquistamos com nosso suor, lágrimas e ritos. Só o esforço de amar vale a pena!
A conversa entre Jesus e o escriba (Mc 12.28-34) funciona como uma atualização dos textos anteriores. Quando, apesar das diferenças, concordamos que o amor a Deus e ao próximo são mais importantes do que sacrifícios e rituais, não estamos mais tão longe do reino de Deus. Reencontramos a essência. Podemos seguir nossos diferentes caminhos em direção ao mesmo amor de Deus.
2. Exegese
Nossa narrativa, Marcos 12.28-34, não é exclusiva desse evangelho. Ela também aparece em Mateus 22.34-40 e Lucas 10.25-28. Os textos paralelos ratificam o duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo como o mais importante. Em Mateus e Marcos, isso acontece logo depois de uma controvérsia com os saduceus a respeito da ressurreição. Os evangelistas Mateus e Lucas carregam de más intenções as perguntas feitas pelo escriba. Ele estaria coligado com os fariseus e estaria procurando arranjar uma prova de heresia ou blasfêmia contra Jesus. Esse tem consciência disso.
Em Lucas, o duplo mandamento serve de introdução à parábola do bom samaritano, reforçando o caráter urgente do amor ao próximo. A conversa nasce da pergunta sobre como alcançar a vida eterna. O levita e o sacerdote, cumpridores de leis e rituais, desconsideram o ferido e passam longe dele. Eles consideravam suas necessidades pessoais e ritos mais importantes do que a fragilidade da vida machucada, largada à beira do caminho e carente de cuidado.
Legalismos, fundamentalismos e ritualismos ocultam preconceitos, mascaram exclusões, legitimam apatias, terminando por gerar conivência com o sofrimento e a morte imposta aos mais fracos. Por isso Jesus afirmará que quem se fez próximo do homem caído foi o samaritano, aquele que não entende nem cumpre os ritos e leis. Por consequência, o samaritano está mais perto do reino de Deus do que o sacerdote e o levita.
Por não compreenderem que o imperativo do amor a Deus (expresso muito além de rituais, sacrifícios e do cumprimento literal da lei) está inseparavelmente ligado ao imperativo do amor ao próximo, fariseus e mestres da lei perdem a essência do amor e se afastam do reino de Deus. Embora reconheçam a importância do amor a Deus, desconsideram a urgência de que esse amor se traduza em relações de cuidado, justiça e liberdade no convívio diário.
Em Marcos, embora o ponto de partida também seja a controvérsia com os saduceus, parece haver um clima muito menos carregado de más intenções e conspirações. Jesus e o escriba parecem manter um diálogo mais frutífero a respeito da interpretação do duplo mandamento. Tanto a pergunta motivadora como a resposta de Jesus e a nova colocação por parte do escriba quase nos permitem deduzir um clima de respeito, concordância e admiração entre ambos.
As primeiras palavras de Jesus são: Ouve, ó Israel (v. 29). Essa era uma expressão litúrgica da oração diária do povo de Israel (shemá). Todos os dias se
fazia necessário ouvir e repetir de forma reverente que o amor a Deus era o mais importante e não poderia ser descuidado. Todos os dias era necessário lembrar que não haveria promessa cumprida na terra se a vida não fosse um exercício consciente e livre de amor a Deus e ao próximo.
A shemá também tinha o caráter de confissão de fé diária. Era mais do que apenas uma lembrança ou oração reverente. Era a afirmação de que o Deus no qual o povo acreditava era o Deus do amor libertador que, através dos mandamentos, cuidava para que o amor e a liberdade pudessem ser percebidos, compreendidos e praticados pelo povo. Esse é o Deus no qual Jesus de Nazaré crê. Esse também parecia ser o Deus no qual o escriba acreditava, pois ele reafirma as palavras de Jesus e confirma a sua autoridade.
Ao recitar o mandamento do amor a Deus, Jesus acrescenta a palavra “mente”. Para ele, o exercício do amor deve ser com todo o coração, com toda a alma, com toda a mente e com todas as forças (v. 30). Alguns autores acreditam que isso se deve ao encontro do pensamento greco-romano com a cultura judaica. Contudo, coração e mente não são palavras essencialmente diferentes na antropologia judaica. Conforme Hans Walter Wolf, “[…] só em casos raros coração significa o temperamento; com muito mais frequência, indica caracteristicamente o órgão do conhecimento, e, finalmente unida a ele a vontade, seus planos, suas resoluções e intenções, a consciência moral e a entrega cônscia e sincera em obediência. […] Sem dúvida, ele abrange as esferas do corporal, do emocional, do intelectual e das funções da vontade, mas deve-se registrar com a mesma clareza que a Bíblia vê no coração do ser humano, antes de mais nada, o centro do ser humano que vive de modo cônscio” (Wolf, 1988, p. 90).
Sendo assim, acredito não ser exagero de nossa parte utilizar aqui como sinônimo de mente/coração a expressão conhecida de Leonardo Boff, afirmando que o diálogo entre Jesus e o escriba estava imerso numa “razão cordial”. Uma proximidade sentida no exercício do diálogo, entendido como um ir além de seu restrito horizonte de compreensão e um adentrar no novo horizonte apresentado pelo Outro. Essa capacidade dialogal que se aproxima, se emociona, se envolve, se deixa afetar pela realidade do outro. Jesus reconhece isso como a sabedoria do escriba (v. 34). Esse reconhecimento permitirá a Jesus afi rmar que o escriba não estava longe do reino de Deus.
Não por último, parece oportuno frisar que o verbo “ouvir” desempenha um papel importante em nosso texto. O escriba havia ouvido a discussão entre Jesus e os saduceus. Ouvir não era um dos melhores atributos dos escribas. Eles tinham audição seletiva. Procuravam por coisas que lhes interessava (v. 38-40). Jesus inicia sua resposta com Ouve, ó Israel. Ouvir, nesse contexto, é mais do que a capacidade auditiva. Ele revela discernimento, capacidade de compreensão do pensamento e da realidade do outro. Ele aponta para uma postura de reverência diante de Deus e do outro.
3. Meditação
Enquanto escrevo este auxílio homilético, o Brasil atravessa a pior crise política e institucional de sua história. Os noticiários escancaram a corrupção nos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da nação. Ameaças de impeachment e delações premiadas aprofundam a crise. No ano em que celebramos os 500 anos da Reforma Protestante, reformas institucionais da previdência social e das leis trabalhistas têm passado a conta da corrupção para trabalhadores e aposentados, beneficiando grandes empresas e bancos. Protestos são violentamente reprimidos com balas, gás e bombas. Usuários de drogas são ferozmente expulsos da Cracolândia, respondendo ao interesse especulativo do capital imobiliário de São Paulo. Nenhuma preocupação com o ser humano.
No Norte, áreas de preservação são diminuídas, ameaçando comunidades indígenas. Os trabalhadores rurais são assassinados e têm a imagem de seus corpos, amontoados em sangue, circulando pelas mídias, revelando a violência no campo. O agronegócio pulveriza veneno sobre populações indígenas e colonos sem-terra. Fugas em massa de presídios infundem medo na população. Não há segurança nas ruas. Uma espécie de apatia toma conta dos movimentos sociais e políticos.
Tudo isso terá um impacto profundo e certamente será trazido à tona nas eleições de 2018, algo que terá acontecido, se houver um segundo turno, alguns dias antes de nossa pregação sobre Marcos 12.28-34. O Brasil, certamente, estará expondo os desacordos com o resultado desse pleito eleitoral. Intolerâncias, preconceitos e radicalismos deixarão suas marcas. Um encontro de Jesus com uma autoridade judaica permite uma aproximação à nossa realidade.
Com o final do ano se aproximando, as pessoas se encontram no limite de suas forças. Ainda resta um longo caminho até o fim do ano. Estes tempos são marcados por dificuldades de relacionamento, estresse e problemas de saúde. Entre o necessário, o importante e o urgente, precisaremos organizar a nossa vida. Neste sentido, nosso texto tem alguns elementos que podem nos ajudar a passar por este tempo mantendo nossa saúde pessoal e social em bom estado.
O primeiro deles é o ouvir. O texto está imerso nesse exercício. As pessoas ouviam os ensinamentos de Jesus. Ele ouvia as suas perguntas. Saduceus, escribas e fariseus ouviam Jesus com diferentes intenções. Formas diferentes de ouvir: uns procuram erros e possiblidades de desmoralizar; outros querem ouvir algo que faça sentido em suas vidas, que os ajude a superar dificuldades; Jesus ouve com reverência e amor. Aqui cabe a pergunta: como nós ouvimos as pessoas, a sociedade, a nós mesmos e a palavra de Deus?
Em nosso texto, ouvir pressupõe uma postura de oração. Recitar o mandamento duplo do amor tanto é lembrança alentadora daquilo que Deus já fez como confissão de fé no Deus que ouve o clamor de seu povo, que o livra da escravidão e o conduz pelo deserto até a terra prometida. É a afi rmação de uma esperança para este tempo de desalento. Ouvir inclui o exercício da obediência à vontade de Deus e aos seus mandamentos. Não basta apenas orar e confessar. É necessário se submeter a esse amor maior que pede de nós outra postura diante das pessoas, do mundo e de Deus.
Outro elemento importante é o encontro entre Jesus e o escriba. Aqui, aparentemente, confrontam-se duas maneiras de olhar a vida, o mundo, as pessoas e Deus. O mundo do mestre da lei era o mundo do legalismo, do literalismo e do ritualismo, onde as formas têm mais importância do que a essência. A aparência e a superficialidade eram mais importantes do que o ouvir, ver e compreender profundamente a realidade do outro.
O mundo de Jesus era o mundo da profundidade! Não basta um amor que se expresse ritualmente. Não basta o amor confessado em palavras. Não basta o amor comprado com sacrifícios. O amor de Deus por nós, nosso amor a Deus e o amor fraterno precisam se fundir em nosso ser. Cada um de nós precisa ser o amor que deseja, confessa e espera. Gosto da imagem de Deuteronômio que pede que esse amor seja tatuado em nossa pele. Que ele seja a lembrança de cada dia, a esperança de cada dia, a oração de cada dia, o esforço de um dia inteiro. Nada supera esse amor.
Nestes tempos de correrias, desconfortos e estresses, aproveitar cada encontro como uma oportunidade de ouvir reverentemente, com devoção e amor pode fazer a diferença entre o deixar-se atropelar pela loucura da competitividade e o caminhar livre e amorosamente ao lado de quem amamos.
4. Imagens para a prédica
O mandamento do amor é uma daquelas passagens bíblicas que muitos de nós podem repetir de cor. Todos sabemos que o mais importante é o amor. No entanto, como a maioria dos mestres da lei, temos dificuldade em compreender que esse amor pede de nós um postura de cuidado e reverência diante da vida.
A imagem contida no texto de Deuteronômio 6.1-9 pode nos ajudar a visualizar o que se espera de nós quando recebemos de Deus a capacidade de amar. O amor precisa ser visto nos lugares que habitamos. Deuteronômio pede que escrevamos nas portas, janelas e portões os mandamentos de Deus. Nossas estruturas sociais, políticas, de justiça e cuidado deveriam ser a escrita viva do amor de Deus. Elas deveriam traduzir de forma visível e sensível o desejo de Deus para todos os seus filhos e filhas. Nossas casas, lugares onde abrigamos e somos abrigados em família, deveriam ser o lugar do diálogo, do carinho, da sensibilidade e da ética. Como seria viver numa casa feita de amor?
O amor deve estar guardado em nossos corações, não no cofre, na garagem ou na geladeira. Deve estar grudado como tatuagem em nossa pele. Nossos braços e testa devem deixar transparecer o amor de que fomos feitos. Braços que abraçam com amor são mais fortes, mais carinhosos e mais solidários. Cabeça que pensa com amor vê mais, ouve melhor e fala com ternura e clareza. O coração que guarda o amor de Deus guarda o essencial para a vida e não se perde em meio às incertezas e correrias deste tempo.
5. Subsídios litúrgicos
Nosso canto, nossa oração e nossa confissão de fé, enfim, nosso culto precisa ser expressão desse amor que nos envolve e orienta.
Neste sentido, sugiro fixar papel pardo em alguma parede da igreja. Providenciar tintas, canetinhas, pincéis, giz de cera etc., para que as pessoas, logo depois da prédica, possam deixar nas paredes da igreja expressões do amor que as envolve. Elas podem escrever, pintar, desenhar frases ou palavras que expressem esse amor de Deus por toda a sua criação. Reservar para isso uns 10 minutos do tempo total do culto. Esse material poderia ficar exposto até o Primeiro Domingo de Advento. Ao início de cada culto, pedir à comunidade para se deixar inspirar pelo que está na parede. Caso alguém queira explicar o que desenhou, pintou ou escreveu, deixar um pequeno espaço para isso. Essa seria a lembrança viva do que verdadeiramente importa neste tempo de correrias e transtornos de final de ano. Poderia ser a escrita viva do que realmente pode nos orientar para que a vida tenha leveza e sentido.
Bibliografia
NÖREMBERG, Klaus Dieter. 18. Sonntag nach Trinitatis – Mk 12, 28-34. In: Calwer Predigthilfen. Neue Folge. 2. Halbband. Stuttgart: Calwer Verlag Stuttgart. 1991. p. 167-174.
WOLF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Agnos, 1988.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).