Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Marcos 13.1-8
Leituras: Daniel 12.1-3 e Hebreus 10.11-14 (15-18), 19-25
Autora: Ramona Weisheimer
Data Litúrgica: 25º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/11/2012
1. Introdução
Nosso texto está previsto para o 25º Domingo após Pentecostes – e esse já é o penúltimo domingo do ano eclesiástico. O ano civil também já se aproxima de seu final, e já começam as preocupações com despedidas e recomeços. Como veremos adiante, o texto em apreço forma uma parte da seção do conflito em Jerusalém e o início do discurso de Jesus, que responde à pergunta dos discípulos sobre os sinais que vão indicar a realização daquilo que Jesus havia dito: destruição do Templo, centro da vida política, econômica e social judaica. O texto já foi tratado noutras ocasiões (PL XVI, p. 302; XXII, p. 286; XXVIII, p. 351), mas abrangendo mais alguns versículos (1-13).
O texto do Antigo Testamento – Daniel 12.1-3 – é apocalíptico, servindo, inclusive, de base para Marcos 13. Trata da batalha escatológica em que o anjo Miguel vem salvar o povo de Deus – na época, vítima da opressão de Antíoco IV Epífanes. Inevitabilidade do sofrimento sem precedentes é lembrada, assim como o chamado a permanecer fiel. Juízo sim, mas também salvação. Também a Carta aos Hebreus é escrita para uma comunidade que sofre e abate-se diante de perseguição. É lembrado que Jesus é o sumo sacerdote que oferece o sacrifício de uma vez por todas, que abriu o caminho ao Pai por meio de seu próprio corpo. E aguarda, junto ao Pai, até que todos os inimigos estejam colocados sob seus pés. Também o Espírito Santo dá testemunho disso. Quando o tempo chegar, uma nova aliança será celebrada, a lei estará nos corações, haverá perdão, sem necessidade de mais ofertas. Por isso permaneçam na fé, confiem nas promessas, não abandonem as reuniões, ainda mais agora que o dia vem chegando. A tônica em todos os textos é, pois, perseverar apesar dos sofrimentos, não se deixar abater, nem enganar, tampouco se precipitar. Promessa da salvação.
2. Exegese
“A longa viagem desde as periferias sociais e simbólicas da Palestina (…) até o seu centro agora se completa” (MYERS, p. 349). C. Myers coloca o texto de nosso estudo dentro de um contexto bem amplo, que vai de Marcos 11.1 a 13.37. Assim, o texto leva-nos num crescendo, desde a chegada de Jesus a Jerusalém e sua primeira visita ao templo, para “mero reconhecimento”, passando por conflitos diretos até um angustiante sermão. O encadeamento das cenas, construído por Marcos, é envolvente. A última, antes da saída do templo, apresenta o ápice da tirania daquele sistema baseado no Templo-Estado: os ricos dão o que sobra, a viúva, que deveria ser protegida, dá todo o seu sustento.
Ainda assim, depois de presenciar tantos embates, discussões e críticas de Jesus contra o sistema explorador do templo e dos que controlam a interpretação da Torá, um de seus discípulos – que não é nomeado –, olhando a magnificência do prédio, expressa sua grande admiração. A fé de Bartimeu (10.46-52) contrasta com a parcialidade “cega” dos outros seguidores de Jesus. Os discípulos, aliás, aparecem bem pouco nesses capítulos, entrando em cena apenas quando Jesus procura explicar seu repúdio ao Templo-Estado. Mas, assim como eles resistiram ao ensinamento de Jesus sobre a cruz, também aqui parecem não compreender a possibilidade da existência de uma ordem separada do templo.
V. 1 – “Quando Jesus estava saindo do pátio do templo, um discípulo disse: Mestre, veja que pedras e edifícios impressionantes!” (Nova Tradução na Linguagem de Hoje/NTLH) . Na verdade, o templo era uma estrutura impressionante. A admiração dos discípulos diante dos edifícios do templo traduz, sem dúvida, a sensação de opressão suscitada em qualquer peregrino rural que visitasse Jerusalém. Até mesmo um autor mais refinado como Flávio Josefo se impressiona em sua descrição do exterior do templo.
“(…) estava todo recoberto com placas de ouro de grande peso e, assim que o sol despontava, refletia sobre ele um brilho magnífico e obrigava os que teimavam em olhar para ele a afastar os olhos para outro lado, exatamente como teriam que fazer com os raios do sol. No entanto, esse templo parecia aos estrangeiros, quando esses se achavam a distância, uma montanha coberta de neve; pois as partes dele que não eram douradas se apresentavam excessivamente brancas, (…) Quanto às suas pedras, algumas tinham 45 côvados de comprimento, cinco de altura, seis de largura” (MYERS, p. 385).
Sendo assim, um mundo sem o templo não seria tão fácil de imaginar.
V. 2 – “Jesus respondeu: Você está vendo estes enormes edifícios? Pois aqui não ficará uma pedra em cima da outra; tudo será destruído!” Quando da invasão e destruição de Jerusalém, o templo foi queimado. Mas Marcos escreve ainda antes desses acontecimentos. Mas essa palavra sobre a destruição do templo será usada contra Jesus tanto no processo no Sinédrio como nos escárnios dirigidos contra ele na cruz.
V. 3 – “Jesus estava sentado no monte das Oliveiras, olhando para o templo, quando Pedro, Tiago, João e André lhe perguntam em particular.” Mais uma vez estão presentes Pedro, Tiago e João, o círculo mais íntimo de discípulos. O ambiente para o sermão é o monte das Oliveiras – monte oposto ao monte do Templo –, que, na tradição de Ezequiel, era o local da intervenção messiânica na hora crucial de necessidade. Porém Jesus anuncia não a salvação, mas a destruição do templo. Os discípulos, perplexos, aproximam-se de Jesus em particular – como quando Jesus explica uma parábola.
V. 4 – “Conte para nós quando é que isso vai acontecer. Que sinal haverá para mostrar quando é que todas essas coisas vão começar?” Os discípulos, como antes escribas e fariseus, pedem por sinais.
V. 5 – “Então Jesus começou a ensiná-los. Ele disse: Tomem cuidado para que ninguém engane vocês.” Jesus não lhes dá uma resposta direta, mas passa a instruir seus discípulos sobre o modo de discernir e suportar esse “fim”.
V. 6 – “Porque muitos vão aparecer fingindo ser eu e dizendo: ‘Eu sou o Messias’. E enganarão muitas pessoas.” A Bíblia de Jerusalém traduz: “muitos virão em meu nome, dizendo ‘Sou eu’”. Myers interpreta aqui o texto a partir do envolvimento da comunidade cristã com os rebeldes na Guerra Judaica e os supostos messias e aliciadores que buscam atrair os cristãos para a resistência armada.
V. 7 – “Não tenham medo quando ouvirem o barulho de batalhas ou notícias de guerra. Tudo isso vai acontecer, mas ainda não será o fim” – cf. BJ: “é preciso que aconteçam”.
V. 8 – “Uma nação vai guerrear contra outra, e um país atacará outro. Em vários lugares, haverá tremores de terra e falta de alimentos. Essas coisas serão como as primeiras dores de parto.” Guerra, fome e terremotos são imagens genéricas na literatura apocalíptica. Nessa época, a fome atordoava a Palestina de forma especialmente dura. Em 67 d.C., Roma estava envolvida em uma guerra civil e com a ameaça dos partos. Terremotos e erupções vulcânicas destruíram Laodiceia e Pompeia em 61-62 d.C. Conforme Myers, Marcos instrui o ouvinte no sentido de não se alarmar, evitar uma ação precipitada. Lembra a inevitabilidade de ser perseguido. A importância da missão do Messias não o impede de ser entregue; a missão dos discípulos também não impedirá. A clássica promessa apocalíptica é: “quem perseverar até o fim será salvo”. Também é preciso passar pelas dores do parto para receber o novo.
3. Meditação
O capítulo 13 de Marcos já foi chamado de “pequeno apocalipse”. Jesus encerra o seu sermão com uma meditação apocalíptica, recordando a vigilância histórica. “O poder da tradição apocalíptica constitui o dado de que ela era ao mesmo tempo profundamente contextual e transferível. Seus mitos centrais podiam ser reinterpretados em novas circunstâncias” (MYERS, p. 390).
O discurso de Marcos destina-se não a estimular, mas a desestimular uma especulação sobre o fim dos tempos. Creio que isso é importante também para nós, que a cada momento somos bombardeados com novas especulações e cálculos, tirados inclusive de civilizações antigas, que arrastam multidões.
As imagens que Marcos usa para falar desse final são as correntes na literatura apocalíptica de sua época, assim, por exemplo, o Apocalipse de João, o IV Esdras, a Assunção de Moisés ou os rolos de Guerra de Qumrã. E mesmo esses eventos podiam estar associados à história contemporânea, ao que acontecia a seu redor no momento em que escrevia e que importava dizer para os seus ouvintes. Daí que o problema real não é o “fim dos tempos”, mas o imperativo de discernir, não se deixar enganar.
Pensando no texto, “é conveniente que o seu rompimento radical com o Templo-Estado seja seguido de considerações sobre o ‘fim do mundo’, pois é exatamente assim que qualquer judeu teria interpretado a rejeição de Jesus em face do centro simbólico” (MYERS, p. 387). Basta pensarmos nos sentimentos que se seguiram ao 11 de setembro – data que virou título – para tentar avaliar a dimensão da crise de valores gerada pela destruição do templo de Jerusalém.
Em 11 de setembro de 2001 – novo século, novo milênio –, um inédito ataque a conhecidos centros de poder econômico, político e militar da grande potência do Ocidente também dão origem a uma série de especulações. Como esquecer as represálias que se seguiram? Como esquecer a forma como as notícias eram trazidas aos ouvidos atentos e ávidos por espetáculo, ainda que doloroso? Quanto a mim, não poderia esquecer o “aniversário” do 11 de setembro, pois no ano seguinte, justamente nesse dia, partes do Rio de Janeiro estiveram praticamente em convulsão – apenas como exemplo, ficamos eu, minha filha pequena, então com 9 meses, e o menino de 2 anos trancados no banheiro de um posto de gasolina, esperando um tiroteio passar para poder atravessar a rua e chegar em casa. E, seguindo a linha especulatória, a essa crise armada seguiu-se uma crise econômica de proporções mundiais, desastres ambientais, naturais e agora também nucleares. Que pensar? Cuidado para que ninguém os engane! O “tempo”, como metáfora nessa literatura, funciona para subverter a noção de tempo linear, evitando “calendários escatológicos”.
Os conflitos sociais e políticos e as catástrofes naturais não são o fim do mundo e não devem ser causa de susto ou espanto. Tais conflitos sempre ocorreram, fazem parte da história e, em geral, são o começo de algo novo: as dores do parto. Até a destruição do templo, terrível para os judeus, não deve ser vista como o fim de tudo, pois a história segue sua marcha. Dentro das angústias, decepções e temores, algo novo está sendo gestado, uma nova etapa da história surgirá.
4. Imagens para a prédica
No séc. XIV, entre 1346 e 1352, a peste negra grassou pela Europa. Ratos levados dentro das embarcações que faziam o comércio com o Oriente aportaram em uma Europa com precaríssimas condições de higiene. Suas hospedeiras, as pulgas, muitas vezes contaminadas pela bactéria Pasteurella Pestis, morto o rato, buscavam outro lugar para viver e alimentar-se: os seres humanos. E, assim, um terço da população da Europa pereceu. A peste bubônica não respeitou nobres e reis, mas tratou todos de igual modo. Bom lembrar que a Inquisição e a caça às bruxas estavam em alta. Porém ainda não foi o fim.
Em 1755, um terremoto arrasou Lisboa, uma das cidades mais religiosas da época. Em 2010, mais um terremoto arrasou Porto Príncipe, a capital do Haiti, o país mais pobre das Américas. Mais de 200 mil mortos. Mas ainda não foi o fim.
O século XX inaugurou a Guerra Total. Tão traumática foi a Primeira Guerra, que alguns historiadores falam que a Segunda ainda é parte daquela, apenas com alguns anos de lapso. Quantas vidas, quanta destruição! Mas ainda não foi o fim.
A fome no Sudão, na segunda metade desse mesmo século, e em outras partes da África, ocasionada por secas, mas também por guerras que levaram milhares a migrar sem destino, continuam sendo lembradas como cenas de horror. Mas ainda não foi o fim.
O ataque aos centros de poder, a represália terrível que se seguiu, a crise na economia mundial, as últimas grandes catástrofes naturais (terremotos, tsunamis, tornados, enchentes) são outros eventos que se poderia lembrar, assim como a última data apocalíptica, 21 de dezembro de 2012, término de um dos ciclos do calendário maia. Até mesmo os sites de busca lembram que outras datas para o fim do mundo já foram fixadas. Outras ainda virão. Não vos deixeis enganar!
5. Subsídios litúrgicos
Não poderia deixar de sugerir o Kyrie “Pelas dores deste mundo”, cuja letra traduz em muito aquilo que se procurou lembrar nesta meditação.
Sugiro, ainda, um poema de Marilene Loss Bobsin:
Os sinos dobram
Por quem dobram os sinos?
Pelo fim do dia,
Que ao morrer
Outra vida reinicia.
Ou pela inocência perdida
De meninos e meninas
Que ganham a rua
E perdem a vida?
Será pela violência das guerras,
Arrogante estupidez,
Suprema covardia?
Pelos jovens solitários
Sem norte
Que pedem socorro
À sua maneira
Ou para os vencedores
Estrelas egoístas
Acúmulo de poder?
Ou pelos milhões que se movem
Sem luzes, brilho ou bens,
Sequer esperança?
Será pelo silêncio de Deus
Que os sinos dobram por aqueles
Que não são indiferentes?
Bibliografia
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.
BALANCIN, Euclides Martins. O Evangelho de Marcos: Quem é Jesus? 8. ed. São Paulo: Paulus, 2007.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).