Que pedras!
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Marcos 13.1-8
Leituras: Daniel 12.1-3 e Hebreus 10.11-14 (15-18),19-25
Autoria: Norberto da Cunha Garin e Edgar Zanini Timm
Data Litúrgica: 26º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/11/2018
1. Introdução
A leitura do Antigo Testamento (Dn 12.1-3) aponta para a salvação do povo de Israel a despeito do tempo de angústia. É Deus quem comanda a história e mais uma vez será ele quem irá garantir o futuro dos seus filhos. Uma palavra de ânimo para aqueles que estavam dando suas vidas nos campos de batalha ou que as perderam como consequência de perseguições religiosas, vítimas da opressão de Antíoco IV Epífanes. Da mesma forma, no Novo Testamento o texto de Hebreus é dirigido a pessoas que estão sofrendo na carne a perseguição e necessitam ser animadas com a promessa fiel de Cristo.
A narrativa de Marcos 13.1-37 pode ser denominada como discurso da parúsia. Trata-se de um texto complexo em virtude do capítulo utilizar uma linguagem misteriosa e codificada, muito comum à linguagem apocalíptica. Entre as dificuldades está a determinação do contexto histórico do texto.
Tradicionalmente é tomada como uma resposta à destruição do templo, que apontaria para o fim do mundo ou para o fim de uma era. Outra forma de interpretar essa narrativa está em associar a queda de Jerusalém como uma prefiguração do fim do mundo. Entretanto, há quem entenda o discurso como uma profecia da queda de Jerusalém. Há exegetas que interpretam esse texto como uma profecia apocalíptica sobre o final do mundo próximo e os acontecimentos que o antecederam, sendo entendida por alguns como um discurso originário de Marcos com materiais oriundos de diferentes fontes.
A literatura apocalíptica, comum aos momentos em que as referências se desfazem, se desenvolveu em Israel entre o segundo século antes de Cristo e os primeiros séculos de nossa era. A apocalíptica apareceu no contexto do sofrimento, no qual eram necessárias novas condições para a reconstrução da vida. Desde o século IX tem prevalecido que esse é um discurso apocalíptico de origem judaico-cristã, destinado a animar as pessoas durante a guerra judaica contra Roma (66-70).
Considerando o contexto do discurso em pauta, vê-se que, depois de entrar em Jerusalém, Jesus se dirige ao templo, no qual ministra ensinamentos (12.1-
12). Recebe questionamentos dos fariseus sobre a quem se deve dar o tributo (12.13-17). Os saduceus o pressionam sobre o tema da ressurreição (12.18-27); e os escribas, a respeito de qual é o principal mandamento e se o Messias era filho de Davi (12.28-37).
A narrativa de Marcos 13.1-8 está inserida num cenário de contraste entre poderosos/ricos e desapoderados/pobres. Marcos 12.38-40 se reporta aos escribas, que detendo poder, vestindo-se com gala, enganam os outros. Colocam-se nos lugares de destaque, mas enganam as pessoas mais pobres e desapoderadas da sociedade: as viúvas. Marcos 12.41-44 aponta para o local no qual fica o gazofilácio do templo. Jesus observa os ricos colocando suas fortunas e a viúva pobre ofertando duas moedas de pequeno valor. Esse quadro prepara o cenário para a visão do templo, local de poder e de riquezas, no qual se desenrolam as piores injustiças da sociedade judaica de então.
Deixando os questionamentos dos opositores, Jesus se retira com seus discípulos. Esse é o momento no qual se estabelece um diálogo entre o Mestre e os discípulos, que são mencionados frequentemente nos evangelhos. Para eles, o fim do templo representava o fim do mundo, mas Jesus lhes mostra que esses fatos não coincidem. Não se trata de fim, mas de início de um novo tempo.
2. Exegese
v. 1: Ao sair Jesus do templo, disse-lhe um de seus discípulos: Mestre! Que pedras, que construções! Um discípulo, cujo nome é omitido, interpela Jesus a respeito do templo, construído sobre o monte Moriá, e de sua magnitude, que estava em restauração por ordem de Herodes, o Grande, desde 18 a.C. O templo representava um vínculo importante entre os judeus, tanto os que viviam na Palestina como os que habitavam em outras regiões do mundo. O gigantismo da obra, considerando o custo social que representava para o povo, bem como a sinalização da presença romana, acaba por oprimir o peregrino do interior. Abre-se a oportunidade para que Jesus fale sobre edificações e quedas de um dos importantes símbolos dos judeus.
v. 2: Mas Jesus lhe disse: Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra, que não seja derribada. Do interior do templo eles se dirigem para o monte das Oliveiras, em frente ao monte Moriá, onde estava edificado o santuário. A predição que Jesus faz do templo monumental intriga os discípulos.
Trata-se de uma previsão inesperada, que levanta outra dúvida: a época em que isso iria acontecer. A expressão é forte e tem o signifi cado de destruição completa. O templo se constituía no símbolo do sistema tirânico representado pelo Templo–Estado. Isso aparece com evidência na cena da oferta da viúva pobre, na qual os ricos oferecem das sobras, e a viúva, que deveria ser protegida e beneficiada pelo Estado, oferta todo o seu sustento (Mc 12.41-44). Essa expressão de Jesus será utilizada contra ele durante o seu julgamento (Mc 14.58).
v. 3: No monte das Oliveiras, defronte do templo, achava-se Jesus assentado, quando Pedro, Tiago, João e André lhe perguntaram em particular: […]. O questionamento era sobre como se desenrolariam os acontecimentos previstos por Jesus e sobre os sinais da sua chegada. Os discípulos se aproximam de Jesus, num círculo mais íntimo, como quando ele explicava as parábolas (Mc 4.10); eram os mesmos que presenciaram a transfiguração (Mc 9.2) e a sua agonia (Mc 14.33). Ao se afastarem do templo, sinalizam também um afastamento teológico daquilo que representava aos peregrinos um monumento à opressão. Há um simbolismo nessa caminhada para o monte das Oliveiras: ele é mais alto que o monte Moriá e o palco do início dos eventos fi nais de Jesus.
v. 4: Dize-nos quando sucederão estas coisas, e que sinal haverá quando todas elas estiverem para cumprir-se. Essas expressões que projetam o futuro saem da boca dos discípulos e preparam o discurso de Jesus nos v. 5-27, num estilo que se reporta à apocalíptica judaica. A utilização dessa linguagem simbólica era apropriada para a época, pois vivia-se um período de grande crise. A linguagem era inteligível aos discípulos, mas codificada para as autoridades romanas. Entretanto, essas especulações sempre foram rejeitadas por Jesus. A destruição do templo não estava relacionada à segunda vinda de Cristo.
v. 5: Então, Jesus passou a dizer-lhes: Vede que ninguém vos engane. A resposta de Jesus se constituía numa precaução contra os sedutores ideológicos. Alertava-os para que se desviassem desse pessoal que tentava enganar os desavisados. Jesus conhece a natureza humana, passível de enganos, e alerta os discípulos para tomarem cuidado, como advertiria que deveriam ser símplices como as pombas, mas prudentes como as serpentes (Mt 10.16).
v. 6: Muitos virão em meu nome, dizendo: Sou eu; e enganarão a muitos. Tratava-se de gente que utilizava o nome de pregadores famosos para disseminar confusão. Mateus 24.5 se reporta aos que se apresentavam como “messias”. Ao examinarmos com cuidado, percebemos que esse é um versículo isolado, visto que a partir do v. 7 aparece uma outra temática. É possível que a referência seja aos aliciadores de cristãos para lutarem na Guerra Judaica. No ano 70 d.C., o exército romano, comandado por Tito, filho do imperador Vespasiano, arrasou essa construção. No contexto da guerra (66-70), vários líderes judeus se levantaram em forte rebelião contra Roma. João Giscala, da Galileia, Eliazar, da Indumeia, Simeão Bem Giorga de Jerusalém estavam entre os que se apresentavam como messias.
v. 7: Quando, porém, ouvirdes falar de guerras e rumores de guerras, não vos assusteis; é necessário assim acontecer, mas ainda não é o fim. Não queria dizer que guerra ou catástrofe se constituíam em sinais da vinda de Cristo. Esses fenômenos apontavam para o início de uma nova era. A missão dos cristãos estava apenas começando. As guerras se constituíam em sinais das crises humanas e as catástrofes podiam apontar para as limitações próprias do ser humano.
v. 8: Porque se levantará nação contra nação, e reino contra reino. Haverá terremotos. A temática dos v. 7 e 8 já estava presente no Antigo Testamento, constituindo a apocalíptica judaica. Guerras e terremotos, na concepção da apocalítica, eram parte do processo natural e representavam o início das dores e sinais do fim dos tempos. Esse fim apontava para o surgimento de uma nova era trazida pelo messias. A intenção era evitar que os cristãos se desesperassem, mas que permanecessem firmes na fé. Quando falava que ainda não era o fim, estava salientando que não se tratava do fim do mundo, mas da destruição de Jerusalém. Foram tempos de grandes difi culdades descritas por Flávio Josefo, nas quais até mesmo os filhos roubaram o pão que os pais levavam à boca.
3. Meditação
Assim como na época de Jesus, vivemos tempos de dificuldades. Há ameaças sérias, de inseguranças, de profecias apocalípticas. A cada época surgem novos pregadores apontando o “único” e “legítimo” caminho para a salvação. Apresentam doutrinas ditas “verdadeiras” para encontrar o caminho do “sucesso” de uma vida com Deus. Seguidamente aparecem líderes que se fazem adorar como semideuses.
Arautos da prosperidade abençoada aparecem nas ruas e avenidas. Estão com suas Bíblias bradando pregações de “salvação”, nos meios de comunicação, nos vídeos do Youtube e nas rádios das cidades. Pregações prometem livrar as pessoas das garras de satanás e do fogo do inferno.
Assim como Jesus e seus discípulos se retiram do templo em busca de um lugar mais alto, a igreja precisa abandonar a proximidade com autoridades corruptas, enganadoras do povo e descobrir um topos distinto, fora das estruturas consumistas escravizadoras. A igreja não deve se deixar seduzir pelo sucesso de templos lotados, pois seu compromisso é com Deus, que tem compaixão para com os empobrecidos. A missão da igreja não é “atingir” as massas, mas mostrar um reino de paz e de alegria como contraponto às ofertas generosas do liberalismo econômico.
Não vivemos o fim da história nem o fim do mundo. Entretanto, os dias atuais apontam para a exaustão de um sistema calcado na competição desregulamentada que premia o mais esperto. As garras da injustiça e da má distribuição de bens e de condições assolam populações em todos os continentes. Não é diferente aqui no Brasil. A desestabilização política e a insegurança institucional constituem sinais de que um tempo está se exaurindo. Uma nova era necessita se estabelecer e que ela venha sob o signo do reino de Deus.
A história do povo de Deus foi marcada por crises e erguimentos. Deus proporcionou, a despeito do pecado e da infidelidade do seu povo, um caminho de regeneração e salvamento. Isso aconteceu no êxodo egípcio, ao enviar Moisés para conduzir o povo através do deserto. Posteriormente, depois da deportação babilônica, o povo encontrou a reconstrução do templo com Esdras e Neemias. Deus suscitou uma nova esperança no coração do povo e o fez seguir em busca de um novo tempo. Isso também se repetiu com a ressurreição, depois de uma tenebrosa Sexta-Feira da Paixão. Agora as esperanças se renovam quando nos preparamos para uma nova etapa de Advento. Precisamos celebrar a chegada do Filho de Deus como esperança para todos, especialmente para os empobrecidos de nossa América Latina.
4. Imagens para a prédica
Em 5 de novembro de 2015, a cidade de Mariana/MG foi soterrada por um lamaçal tóxico, aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos, efluente da barragem do Fundão, pertencente à mineradora Samarco Mineração S. A., prejudicando cerca de 230 municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo.
Tem sido considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil, no qual vários de ecossistemas foram destruídos para sempre. A ganância desenfreada das empresas, aliada à sede de lucros auferidos a baixo custo, desconsidera o respeito pela vida dos mais diferentes seres vivos, inclusive dos humanos que vivem e dependem da bacia do rio Doce. Essa catástrofe demonstra como as ambições de um sistema econômico baseado na competição sem regras seguras e mal fiscalizada pode pôr fim às aspirações de populações inteiras. A grandiosidade de uma mineradora contrasta com a precariedade do cuidado à vida.
5. Subsídio litúrgico
Litania:
Dirigente: Deus de amor, os teus sinais são visíveis ao redor. Nós te reconhecemos no desabrochar das flores, no canto dos pássaros, no cintilar da brisa e em todas as outras manifestações da natureza.
Congregação: Senhor, Senhor, eu percebo os teus sinais!
Dirigente: Os teus sinais também aparecem nas obras dos teus filhos e filhas que, com amor, realizam ações de solidariedade e de misericórdia ajudando a tua criação a suportar o sofrimento provocado pela ganância dos inescrupulosos.
Congregação: Senhor, Senhor, percebo os teus sinais!
Dirigente: Os teus sinais revelam os caminhos corretos e denunciam as torpes veredas de morte de quem se ocupa apenas com os próprios interesses.
Congregação: Senhor, Senhor, eu percebo os teus sinais!
Dirigente: Deus de amor, faz com que nossas ações, atitudes e pensamentos se voltem para a manifestação dos teus sinais de bondade, amor e graça, a fim de que as pessoas possam se firmar em sua humanidade.
Congregação: Senhor, Senhor, eu percebo os teus sinais!
Bibliografia
SCHMID, Josef. El evangelio según San Marcos. Barcelona: Herder, 1967.
BORTOLINI, José. O evangelho de Marcos: para uma catequese com adultos. São Paulo: Paulus, 2003.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).