Prédica: Marcos 13.33-37
Leituras: Isaías 63.15-17,19; 64. 1(2-3) 4-8 e 1 Coríntios 1.3-9
Autor: Günter K. F. Wehrmann
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação: 28/11/1993
Proclamar Libertação – Volume: XI
1. Preliminares
1.1. Do jeito como está delimitado, o texto representa uma mera admoestação à vigilância. A palavra vigiar aparece quatro vezes — fato que sublinha a intenção parenética do texto. O perigo de a prédica tornar-se legalista é grande. O texto pressupõe, naturalmente, o fim do mundo e a vinda do Filho do homem. Ambos os aspectos estão sinalizados nos vv.31 e 32, e esses contêm o Evangelho. Com o intuito de ter um gancho para esses indispensáveis pressupostos, proponho ampliar, nesse sentido, a perícope. A série V da ordem de perícopes da Igreja Evangélica da Alemanha — IEA também delimita assim. Aliás, ela destina o texto para o último domingo do Ano da Igreja. Embora valesse a pena discutir também isso, não o julgo oportuno neste momento.
1.2. A OLM (o assim chamado Lecionário Ecumênico) destina, no ano B, o texto para o 1° Domingo de Advento. Imagino que os ouvintes, assíduos frequentadores dos cultos, vão estranhar e ter dificuldade em ver uma relação entre texto e Advento. Pois estão habituados a ouvir, nesse dia, textos que falam da vinda do Messias (p. ex.: Zc 9.9 ou Mt 21.1-9). Para não frustrar os ouvintes, é preciso ajudá-los e prepará-los para o nosso texto. Nesse sentido, é útil lembrar que Advento sempre foi uma época de penitência e vigilância. É por isso que sua cor litúrgica é violeta — como na época da Quaresma.
1.3. Ainda convém atentar para a mensagem do conjunto dos textos, indicados no ano B para o 1° Domingo de Advento. Segundo Is 63 e 64, a situação está preta: ausência de justiça e alienação de Deus pesam sobre o povo; ecoa o clamor pela vinda de Deus mesmo (… ó, se fendesses…). SI 80.1-7 retoma isso, lamentando que o povo recebe pão de lágrimas e clamando ao pastor de Israel: restaura-nos! Paulo agradece a Deus pela fé no Cristo que veio, dada aos coríntios — agradece na expectativa da revelação de nosso Senhor Jesus Cristo, aludindo à volta de Cristo (l Co 1.3-9). SI 85.7, como versículo de aclamação, clama por misericórdia e salvação; parece uma prece oportuna para introduzir a leitura do Evangelho de Mc 13. Esse trata do comportamento devido, em vista do fim do mundo perverso e da vinda do Senhor.
Advento, portanto, seria: Em situação de sofrimento, a Igreja espera, vigilantemente, pelo Senhor que veio e virá.
2. Contexto
À importância do contexto em seu duplo significado nos interessa, visto que o Verbo se faz carne. O contexto influi, ou até determina, a leitura do texto.
2.1. Contexto atual
Enquanto escrevo (01/93), o povo brasileiro está sofrendo sob uma inflação acima de 1000% ao ano. Esse fardo atinge iodos, até mesmo empresários (especialmente pequenos e médios). Alguns poucos, contudo, estão lucrando com ela; mas, de maneira dura, ela castiga a grande maioria do povo. E o que já não foi prometido por parte de governantes!? O último salvador da pátria, o conhecido Sr. Collor, foi destituído por causa de corrupção direta e/ou indireta — mal que ele anunciava erradicar do país. A confiança em governantes está por demais abalada. Dá para entender o desesperado grito de Is 64.1: Ó, se fendesses os céus, e descesses! ‘Não adianta, Deus! Tu mesmo tens que vir e dar um jeito!’
2.2. Contexto de então
Na vida de Jesus, o contexto é caracterizado pela proximidade da paixão e morte na cruz. Diante dessa perspectiva sombria, Jesus anuncia aos seus discípulos a destruição do templo; esse templo representa aquele poder em cujo nome Jesus seria crucificado. No Monte das Oliveiras, Jesus se senta à parte com quatro discípulos (Mateus já interpreta no sentido da totalidade deles). O monte é lugar de revelação. Jesus prepara os seus para aquele sofrimento que, após a sua morte, ressurreição e ascensão, sobrevirá a eles e ao mundo. Mas ele, o Filho do homem, virá para reunir o seu povo disperso. Não adianta especular sobre o quanto, pois só Deus sabe o dia. Aos discípulos cabe vigiar, isto é, estar sempre preparados para a vinda do Senhor. O capítulo 13, portanto, é um tipo de sermão de despedida (Lohmeyer, p. 286).
O contexto da igreja de Marcos é caracterizado por muito sofrimento, oriundo tanto de dentro quanto de fora. Os cientistas não são unânimes na fixação da data de redação do Evangelho. Há argumentos para o tempo logo após 70 d.C. (ano da destruição de Jerusalém e do templo) e há argumentos para o tempo antes de 70 d.C., ou seja, durante a guerra judaica (66-70). Seja como for, com vistas à prédica importa destacar que na situação se respira um ar de ameaça, opressão, necessidade, guerra, perseguição (lembro a perseguição sob Nero, em 64) e sofrimento, causado pelo Império Romano (sobre isso escrevi mais no PL XIV, p. 322; e sobre a .questão sinótica escreveu Witter no PL XIV, pp.398s.) Uma sensação de fim, no sentido de está acabando tudo, deve ter tomado conta daquela igreja. Certamente o pessoal via cumpridas ou em cumprimento aquelas profecias de Jesus sobre o fim do mundo. Mas cadê a vinda do Filho do homem?
Para dentro de tal contexto Marcos escreve, com o intuito de animar (= dar ânimo), consolar e admoestar a comunidade. Essa não pode nem precisa cair no sono da fatal acomodação. Pois a esperança pelo fim a mantém acordada e vigilante. Essa esperança fá-la ficar com os pés no chão. Assim ela identifica e desmantela os poderes do mal e da morte, que não têm escrúpulos em aparecer em nome da religião (cf. os falsos cristos no v. 22).
3. Meditando entre texto e contexto
A tradução e a comparação de traduções não apresentam problemas maiores, de sorte que já podemos tentar ler o texto à luz do contexto.
V. .31: O céu e a terra passarão — isto é, o mundo que uma vez foi criado muito bem (Gn 1.31). Mas as pessoas, ao invés de assumirem o seu papel de administradores e capatazes (Gn 2.15), estragaram o convívio harmonioso e equilibrado. Provocaram o dilúvio. A graça de Deus, porém, sobrepusera-se a seu juízo. Na promessa dada a Noé (Gn 8.21s.), Deus comprometera-se a preservar o mundo, apesar de tudo. Diante disso, o prenúncio de Jesus acerca do fim do mundo contradiz ou até anula a promessa dada a Noé? Ou, se apesar de tanta irresponsabilidade humana o mundo ainda existe, não é possível ver nisso sinais da longanimidade e paciência de Deus? Tais perguntas acompanharão o nosso vaivém entre texto e contexto?
Este mundo está marcado por fomes, brigas, guerras entre nações e terremotos (vv. 7 e 8). Realmente, o mundo está bagunçado, totalmente alienado dos bons propósitos do seu Criador. Essa calamidade manifesta-se em todo lugar, até mesmo na igreja. Pois o irmão, a fim de salvar a sua própria pele, trai seu próprio irmão (v. 12). Como se tudo isso não bastasse, estão surgindo doutrinas e filosofias que desviam e enganam muitos que não têm critérios de discernimento (v. 22). De fato, muitas tentações, oriundas de dentro e de fora, ameaçam a comunidade.
Segundo Mc 8.38s, Jesus chama essa humanidade alienada de geração adúltera e pecadora. Mas esse mundo é o lugar onde a comunidade deve testemunhar. E ai se não o fizer! O discipulado, portanto, realiza-se sob a cruz. Mas a vinda do Filho do homem parece ser esperada para meio logo. Pois, alguns há que, de maneira nenhuma, passarão pela morte até que vejam ter chegado com poder o reino de Deus. Entende-se, nessa passagem, que o Jesus histórico pensou na parousia iminente. Mas, em Mc 13, o evangelista parece estar fazendo teologia. Ele não dá resposta à pergunta pelo quando. Os mencionados sinais, embora tenham caráter apocalíptico, não são exclusividade de uma só época; e a palavra geração do v. 30 não precisa ser entendida em sentido cronológico, mas pode ter significado qualitativo à semelhança de 8.38. Nesse caso, o acento estaria no juízo que o Filho do homem, na sua vinda, fará cair sobre o mundo perverso.
Este mundo é transitório, mas as minhas palavras não passarão, diz Jesus. Já que ele, como Filho do homem, é o consumador escatológico, ele terá a última palavra, e tudo o que ele falou tem caráter definitivo e eterno. As palavras dele, portanto, não são inflacionárias, assim como hoje tantas palavras escritas e faladas são sem valor e sem sentido. Por isso, as palavras de Jesus são dignas de toda a confiança. Quando o Filho do homem vier com poder e glória, ele reunirá os seus escolhidos (vv. 26s.). Essa vinda representa juízo sobre o mundo perverso e libertação para os seus. É por isso que não interessam tanto eventuais sinais que porventura antecedam a parousia. Já vimos que os mencionados sinais não são de uma só época. Muito antes interessa a própria parousia, que representa a última palavra, ou seja, a libertação definitiva dos seus.
V. 32: Quando virá esse tempo de graça (kairós — cf. v. 33)? Essa é a pergunta dos cristãos (não dos outros). Especulações sobre uma data já houve sempre. Paulo, na primeira carta aos Tessalonicenses, ainda podia consolar por meio da ideia da parousia iminente. Mas, na segunda carta para a mesma comunidade, teve que admoestar o pessoal para que não ficasse parado, de braços cruzados. De maneira parecida age Marcos. Aquele dia refere-se à vinda do Filho do homem, que implica juízo e graça. Quando será, ninguém sabe; só o Pai. Ao dizer que nem o Filho sabe, Marcos quer sublinhar a admoestação contra os especuladores. A comunidade oprimida e sofrida está, naturalmente, na tentação de ansiar por aquele dia e aquela hora em que a justiça e a graça finalmente triunfarão. Essa comunidade, contudo, deve resistir à tentação de acomodar-se de maneira resignada. Caso contrá¬rio, transfere toda a esperança para o além, perde o aqui e agora e deixa de ser testemunha do novo em meio ao velho.
VV. 33-37: Por isso Marcos enfatiza, contra o querer saber a hora, a postura de vida do vigiar. Por outro lado, existe a tentação do fazer de conta como se não houvesse um fim com prestação de contas sobre o que fizemos e deixamos de fazer. O tempo de praticar amor e justiça é agora neste mundo, enquanto vivemos na terra. Depois de termos morrido, será tarde. É por isso que importa vigiar. Para o crente, a meta é estar pronto para receber o Senhor, quando chegar o seu dia: é por isso que ele vigia e está vigilante, a fim de viver na noite sem ser da noite (MD em Vocabulário de Teologia Bíblica, p. 1073).
Vigiar não é um saber estático, mas um agir dinâmico; é uma postura de vida, uma postura de vigia e sentinela. Ele caminha, com olhar atento, pela trilha dos vigias. Ele olha tanto para o que acontece fora dos muros da cidade, no mundo adverso, quanto para o que acontece dentro dos muros da cidade. Assim, a linoleo-gravura abaixo (autor desconhecido) talvez possa inspirar com vistas à prédica.
[Veja quador anexo ]
Em meio à escuridão, o vigia está todo alerta. Sua motivação e razão para estar alerta e alertar o mundo escuro (Wacht auf = acordai, despertai) ele está recebendo da estrela. Sua luz espanta as trevas. A estrela forma as quatro hastes da cruz, sendo que a vertical aponta para o chão. Realmente, uma mensagem de Advento!
Voltando ao texto de Marcos, convém enfocar mais alguns aspectos do vigiar. A cristandade primitiva acrescentou, com razão, ao imperativo do vigiai ainda o do orar. Se o vigiar pode ser comparado à postura profética da comunidade, então o orar poderia representar a postura sacerdotal. Em orações carregamos as nossas dores, as dores das irmãs e dos irmãos e as dores do mundo para aquele que veio c virá. Bonhoeffer falou em Schuldübernahme, o que significa assumir e carregar culpa alheia. Sim, os sacerdotes carregam as dores próprias e alheias — por isso somos sacerdócio real (2 Pe 2.9).
Como bons luteranos, também sabemos que a boa oração implica ação ( or-ação). É por isso que somos convidados para o ora et labora! (= ore e trabalhe!). Também o v. 34 alude à ação, ao falar em obrigação (Almeida), tarefa (Ed. Pastoral) e trabalhar (BLH). Trata-se, pois, da postura diaconal do vigiar. Se enxergamos as dores próprias e as de outros e as carregamos em oração para Cristo, ele nos faz procurar por meios de superá-las ou pelo menos aliviá-las. Que dores seriam essas agora em minha comunidade? Isso requer contextualização local, tanto em termos de denúncia quanto em termos de imperativo final.
Parece quase supérfluo apontar para a importância do plural do vigiai. Ele é sublinhado pelo todos do v. 37.
O verdadeiro vigiar, portanto, é tarefa da comunidade de Cristo, e não apenas de alguns especialistas pagos para tal. Esse aspecto comunitário convém ter bem claro, se usarmos a linoleogravura — pois ela poderia induzir a uma compreensão individualista do vigiar. O vigiar implica uma postura profética, sacerdotal e diaco¬nal. Eis o tripé do vigiar. Eis a missão da Igreja, a caminho entre o 1° e o 2° Adventos de Cristo.
4. Sugestão de roteiro para a prédica
— Advento é Boa Nova para todas as pessoas que sofrem.
— Pois tudo e todos que causam sofrimento passarão, não terão a última palavra. (Identificar alguns poderes causadores.)
— A última palavra estará com aquele que veio e virá. Ele virá como juiz e libertador, em hora inesperada.
— Por isso, nós, como comunidade, devemos vigiar enquanto vivermos (pos¬tura profética, sacerdotal e diaconal).
— Assim seremos comunidade a caminho entre o 1° e o 2° Adventos.
5. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Sl 85.7 ou leitura responsorial do Sl 80.1-7.
2. Confissão de pecados: Senhor, nesta época de Advento, que hoje inicia, nós nos preocupamos com tantas coisas. Por mais bonitas que possam ser, parece que nos afastam do verdadeiro sentido de Advento. Perdoa-nos que, ano após ano, caímos no mesmo corre-corre. Em nome de Cristo, pedimos: Tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio da graça: Lc 21.28b + c.
4. Oração de coleta: Ó Deus, tu vieste ao mundo em Jesus e nele voltarás. Venha agora a todos nós, por meio da tua Palavra eterna (e do sacramento do/da …). Faze de nós uma comunidade de Advento, por causa de Jesus Cristo, que contigo e o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém.
5. .Assuntos para a oração final: Agradecimentos: pela comunhão com Deus e uns com os outros; pelo fortalecimento da esperança.
Pedidos: para sermos vigilantes em termos proféticos (coragem para denunciar), para sermos vigilantes em termos sacerdotais (dedicar tempo à oração) e para sermos vigilantes em termos diaconais (ter tempo para visitar idosos, doentes, deficientes…) — concretizar localmente. Alusão escatológica à vinda do Reino.
6. Bibliografia
LOHMEYER, Ernst. Das Evangelium des Markus. In: Meyers Kritisch Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Göttingen, 1967.
MEURER, Siegfried. Meditação sobre Mc 13.31-37. In: Neue Calwer Predigthilfen, 5° ano, vol. B. Calwer, Stuttgart, 1983, pp. 254-262.
VOIGT, Gottfried. Meditação sobre Mc 13.31-37. In: Homiletische Auslegung der Predigttexte. Série V: Die bessere Gerechtigkeit. Göttingen, 1986, pp. 468-474.
WITTER, Valdemar. Meditação sobre Mc 13.31-37. In: Proclamar Libertação, Vol. XIV. Sinodal, São Leopoldo, 1988, pp. 397-403.
Artigo Vigiar em: Vocabulário de Teologia Bíblica, 3a ed. Vozes, Petrópolis, 1984, pp. 1073-75.