Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Marcos 14.12-26
Leituras: Isaías 42.1-4 (5-9) e Apocalipse 19.6-10
Autores: Sigolf Greuel e Oziel Campos de Oliveira Júnior
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 05/04/2012
1. Introdução
O texto indicado para a pregação na Quinta-feira da Paixão é Marcos 14.12-16. Os textos previstos para leitura são Isaías 42.1-4(5-9) e Apocalipse 19.6-10. Ainda que tenham sido escritos em épocas e contextos diferentes, perce¬bem-se neles uma unidade e um fio vermelho. A mensagem que se coloca como “guarda-chuva” sobre as três passagens é que a história humana tem um rumo e um sentido. Em Cristo, Deus escreve a sua história. Ele foi anunciado por Deus por intermédio dos profetas do Antigo Testamento (Is 42.1-4 (5-9); viveu nesta terra e morreu morte de cruz, dando-se a si mesmo em resgate pela humanidade pecadora (Mc 14.12-26); ressuscitou, subiu aos céus e foi glorificado como vencedor à direita de Deus (Ap 19.6-10). A história humana tem um rumo, e Deus dá-lhe um sentido e uma direção.
Jesus assume o plano de salvação de Deus, anunciado antes de seu nascimento, abraça a história de Deus com a humanidade, e ele o faz como servo escolhido por Deus, consciente de que está agindo de acordo com as profecias (Is 42.1-4 [5-9]). Jesus entrega-se para a humanidade. Assim o fez em sua encarnação, assim o fez por ocasião da Ceia, assim o faz de modo radical e definitivo quando se deixa levar à cruz. Ali ele se entrega à morte conscientemente, tendo em mente a sua ressurreição e o reino de Deus (Ap 19.9). Dessa história temos o privilégio de fazer parte como convidados do Senhor.
2. Exegese
2.1 – Contexto
A Páscoa do povo de Israel remete-nos ao Egito, por ocasião da libertação de um período de escravidão que havia durado 430 anos. Ela está relacionada à décima praga, à morte dos primogênitos dos egípcios e de seus animais (Êx 12). Naquele dia, cada família fora instruída a imolar um cordeiro sem defeitos e a aplicar o seu sangue nas ombreiras e na verga da porta de suas casas. Essa atitude de obediência impediria a ação do anjo da morte em suas famílias (Êx 12.7,13; Hb 11.28). Essa história está no centro da história do povo de Deus, a história de um povo resgatado da escravidão por seu Deus. A partir daí, os judeus passaram a comemorar a Páscoa anualmente, celebrando a libertação da escravidão. Também os discípulos de Jesus querem comemorar a Páscoa com Jesus (Mc 14.12). Eles tomam a iniciativa no sentido de fazer os preparativos. Mas é Jesus que se torna o protagonista da festa e a “transforma”.
2.2 – Leitura exegética
V. 12 – Estamos no dia dos pães asmos. Enquanto imolavam o cordeiro pascal, os discípulos perguntam pelo lugar no qual a Páscoa deveria ser celebrada (a pergunta pressupõe que eles já sabiam que a festa aconteceria e que havia a expectativa da comemoração da Páscoa: “comer a Páscoa”). Que preparativos seriam esses, mencionados também no v. 14? Na realidade, os preparativos aqui mencionados referem-se à comemoração da Páscoa ordenada em Deuteronômio 16.1-3: “Guarda o mês de abibe e celebra a Páscoa do Senhor, teu Deus; porque, no mês de abibe, de noite, o Senhor, teu Deus, tirou-te do Egito. Então, das ovelhas e das vacas sacrificarás a Páscoa ao Senhor, teu Deus, no lugar que o Senhor escolher para ali fazer habitar o seu nome. Nela não comerás pão levedado; por sete dias comerás pães ázimos, pão de aflição (porquanto apressadamente saíste da terra do Egito), para que te lembres do dia da tua saída da terra do Egito todos os dias da tua vida”.
V. 13 – Jesus enviou dois de seus discípulos (mathetai): Jesus dá a direção. O mestre (didaskalos) manda perguntar (v. 14). Algo já havia sido planejado (ver também o v. 15). Pressupõe o controle de Jesus.
V. 14 – O Mestre manda perguntar: (Pelo visto, já havia um local apropriado, determinado) Onde está o meu aposento (katalyma)? O propósito de tudo isso é que Jesus quer comer a Páscoa com seus discípulos.
V. 15 – Preparativos haviam sido feitos cuidadosamente. Nada parece ter acontecido por acaso. Parece que a passagem quer afirmar que a ceia de Jesus “substitui”, coloca-se “em lugar” da Páscoa judaica. Além disso, o que aconteceu naqueles dias não veio ao encontro de Jesus como uma catástrofe inesperada, mas ele contava com esses acontecimentos e recebeu-os conscientemente.
V. 16 – O que será que significa esse “tudo”? Ali a Páscoa foi preparada. Em que consistiria essa preparação?
V. 17 – Ao anoitecer, chegou Jesus com os doze (inclusive com o traidor, que Jesus já sabia quem era).
V. 18 – Jesus permite que aquele que vai traí-lo coma com ele e com os onze. Jesus comunica que entre eles há um traidor. As palavras “um que comigo come” indicam intimidade.
V. 19 – Ao ouvir essa notícia, os discípulos começaram a entristecer-se. A palavra grega lypeisthai pode significar confusão, dúvida. De qualquer modo, parece claro que mostra como os discípulos até o fim não entenderam o propósito de Jesus (Mc 8.17-21).
V. 20 – Indica para a intimidade que existia.
V. 21 – “Conforme está escrito” pode ser uma referência ao Salmo 41.9. O v. 21 descreve um momento triste, de dor e traição no convívio entre Jesus e seus discípulos, porém sob o controle de Deus e com um propósito claro.
V. 22 – Jesus reparte a ceia, a Páscoa; abençoa; reparte o seu corpo.
V. 23 – O mesmo faz com o cálice; reparte o seu sangue.
V. 24 – Jesus dá significado ao que está acontecendo; seu sangue “por muitos é derramado” (Mc 10.45). Ele tem em mente sua morte expiatória, seu sacrifício em lugar da humanidade. Essas palavras foram liturgicamente apropriadas pela comunidade cristã ao comemorar a Ceia do Senhor (1Co 11.23-25).
V. 25 – Jesus, ao comemorar a Ceia, aponta para o futuro. “Até aquele dia” aponta para o reino de Deus. A comemoração da Ceia do Senhor aponta para o alvo futuro; sem isso, não é a Ceia no Corpo de Cristo. Na Ceia, no Corpo de Cristo, Cristo está presente (At 2.46).
V. 26 – Eles cantaram um hino (o canto de louvor fazia parte da comemoração da Páscoa e da Ceia do Senhor [1Co 14.26; Cl 3.16; Ef 5.19]). Dali saíram para o monte das Oliveiras. Havia passado o tempo de preparação. Agora era preciso ir adiante com o plano de Deus; era preciso enfrentar todo o sofrimento que estava pela frente referente a esse plano.
Parece claro que Cristo, ao comer a Ceia Pascoal com seus discípulos na noite antes de morrer, tinha consciência do que estava pela frente, isto é, sua própria morte. É impressionante como Jesus demonstra ser Senhor de tudo. Sua atitude demonstra clareza quanto ao propósito de Deus e a certeza de sua presença no acontecimento da cruz.
3. Meditação
Os discípulos de Jesus não contam com a morte iminente do Senhor Jesus nem a esperam. Como amigos fiéis, eles querem preparar a festa da Páscoa, assim como os judeus o faziam desde a saída do Egito. Mas, então, o próprio Senhor Jesus toma a preparação em suas mãos, e o que acaba por acontecer é uma “outra festa”. Parece que nela nem houve um cordeiro pascal. A planejada festa da Páscoa passa por uma transformação; ela adquire um caráter especial, e acontece a primeira Ceia do Senhor de toda a história.
A Páscoa judaica encontra seu cumprimento e seu fim na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. A Páscoa no Antigo Testamento e a Ceia do Senhor Jesus no Novo Testamento apontam para uma mesma coisa: o sacrifício de Jesus Cristo. A primeira, que estava distante da outra por quase quinze séculos, apontava para a cruz de Jesus Cristo; a segunda, a Ceia do Senhor Jesus, apontava para a morte de Jesus e para chegada do reino de Deus.
Nessa festa transformada, o sacrifício do cordeiro praticado pelos judeus até então é deixado de lado, e o sacrifício de Jesus que está por acontecer é colocado no centro. A Páscoa do Senhor com seus discípulos concentra-se no pão e no vinho, corpo e sangue de Jesus. A Palavra do Senhor transmitida por Marcos parece “misturar” o relato da traição de Judas com o preparo e a realização da primeira Ceia do Senhor. E ela o faz de propósito. Também por Judas, Jesus quer morrer. Tanto é que ele não é excluído da Ceia. Mas aqui a grandeza do abismo do pecado humano é revelada. O ser humano não é bom por natureza; ele necessita ser resgatado, salvo e reconciliado.
Por que o sangue de Jesus é derramado “em favor de muitos” (v. 24)? É que a redenção pessoal não é algo automático, da qual todos podem usufruir, mas somente aqueles que recebem essa salvação pela fé (Jo 3.16). Sentar à mesa com Jesus é um convite à intimidade com ele, um convite que continua soando e que espera por nossa resposta.
Todo o problema da culpa e do pecado da humanidade foi resolvido por Jesus na cruz (Hb 10. 11-12). Mas ainda aguardamos a instalação plena do reino de Deus entre nós, para o qual a palavra de Deus aponta no v. 25. A Ceia do Senhor é para os seguidores de Jesus uma antecipação da Ceia na eternidade (1Co 11.26). Comemoramos a Ceia do Senhor na certeza de que seu sacrifício na cruz não foi em vão e que o reino de Deus há de chegar.
Em suma, o relato de Marcos 14.12-26 aponta para três verdades:
1 – A centralidade da morte de Jesus. Eles deveriam comer e beber “em memória”. Ambos os elementos apontam para a sua morte. O que aconteceu por ocasião da morte de Jesus é digno de ser lembrado.
2 – A morte de Jesus aconteceu com um propósito. Mais do que motivações ideológicas e/ou políticas, a sua morte teve um propósito divino: “em resgate por muitos” (Mc 14.22). Mateus 26.28 complementa: “para remissão dos pecados”.
3 – A terceira verdade é que precisamos nos apropriar dos benefícios da morte de Jesus. O cenáculo no qual Jesus celebrou a Ceia com seus discípulos não teve apenas espectadores, mas participantes. Ele não somente partiu o pão, mas lhes deu para que comessem. E ele lhes deu o vinho para que bebessem. Da mesma forma, não bastou que Cristo morresse; é preciso receber as bênçãos de sua morte: perdão, salvação e vida eterna.
4. Imagens para a prédica
1ª imagem
Por que Jesus Cristo morreu? Em primeiro lugar, ele não morreu. Ele foi morto. Meus pecados enviaram-no à cruz. Por outro lado, ele não foi morto; ele morreu entregando-se voluntariamente para fazer a vontade do Pai (John Stott).
2ª imagem
Cristo toma o nosso lugar, e nós tomamos o seu (Emil Brunner).
3ª imagem
Que proveito há nesse comer e beber? As palavras “dado e derramado por vós para remissão dos pecados” mostram-nos que, no sacramento, nos são dadas por essas palavras remissão dos pecados, vida e salvação (Lutero).
4ª imagem
De Ciro, o rei da Pérsia, conta-se que em uma de suas batalhas ele aprisionou determinado príncipe com sua mulher e filhos. Esses foram conduzidos à presença de Ciro, que perguntou ao príncipe:
– O que você me daria em troca de sua liberdade?
– A metade de meu reino, foi a resposta do príncipe.
– E caso eu liberte seus filhos?, perguntou Ciro.
– Todo o meu reino.
– E o que darias pela liberdade de tua mulher?, continuou Ciro.
Ao que o príncipe respondeu:
– Eu daria a mim mesmo.
Essa resposta agradou a Ciro, que libertou toda a família. Em sua viagem de volta para sua terra, o príncipe perguntou à sua mulher se ela havia reparado na nobreza e no grande caráter do rei Ciro. A isso ela respondeu:
– Eu só tive olhos para ver aquele que estava pronto a dar a si mesmo em troca de minha liberdade.
Não poderiam todos os cristãos ter essa mesma reverência para Jesus, que não apenas mostrou disposição para dar a si pela humanidade pecadora, mas efetivamente o fez?
5ª imagem
A uma pessoa com 90 anos foi perguntado em certa ocasião:
– O senhor ama Jesus?
O homem respondeu com o rosto sorridente:
– Sim, eu o amo. Mas eu posso lhe dizer algo ainda melhor.
– O que seria melhor?
– Ele me ama.
6ª imagem
Ao pastor Schlatter foi perguntado, certa vez, o que o cristianismo teria trazido de novo em relação a tantas religiões, filosofias e ideologias que já existem no mundo e são mais antigas do que o cristianismo.
Schlatter então respondeu:
– Cristo.
Boas e nobres ideias e iniciativas as pessoas sempre tiveram. Em todos os povos e raças, as pessoas têm noção em relação a um ser superior. E elas procuram contato com ele, estendendo as mãos para o alto. Somente em um lugar, no entanto, Deus estende sua própria mão em nossa direção para que a agarremos. Essa mão estendida de Deus se chama Jesus.
5. Subsídios litúrgicos
Lembramos que confissões, orações, credos e bênçãos podem ser encontrados no material litúrgico que está à nossa disposição. Eles podem servir como impulso e inspiração. Sugerimos que a liturgia do culto possa privilegiar a participação e a espontaneidade. Propomos que as diferentes orações do culto possam ser partilhadas por membros e lideranças da comunidade, jovens, mulheres, homens.
Do mesmo modo, as leituras bíblicas poderiam ser assumidas por diferentes pessoas.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Markus. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlin: Evangelische Verlaganstalt, 1977.
SCHWEIZER, EDUARD. Das Evangelium nach Markus. Das Neue Testament Deutsch – NTD Band 1. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1973.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).