Por causa dessa palavra!
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: Marcos 7.24-37
Leituras: Isaías 25.4-7a e Tiago 2.1-10 (11-13),14-17
Autoria: Vera Lucia Engelhardt
Data Litúrgica: 1º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/09/2018
1. Introdução
O texto causa reações e os sentimentos afloram. Ouvir que os cachorrinhos, debaixo da mesa, comem das migalhas das crianças e que migalhas podem saciar a fome certamente inquieta. Mas, ao mesmo tempo, é também um evangelho cheio de ousadia e insistência, cheio de palavra. A mulher estrangeira, mãe de uma menina, insiste e não se deixa desanimar diante da resposta primeira que ouviu para seu pedido. Seu pedido é pela filha, e ela argumenta, reage: mesmo que sejam as migalhas que caem da mesa, socorre minha menina! Por causa dessa palavra dita pela mulher, Jesus a manda ir, porque a filha está bem agora. Ela chegou à sua casa e a menina estava sobre a cama, liberta.
Aquele surdo e gago vivia no mundo do silêncio, sem ouvir e atrapalhando–se com as palavras. Precisava se abrir para a palavra – ouvir e falar. Após ter sido trazido para esse encontro com Jesus, ele fala sem dificuldades, ele se comunica e não pode mais ficar no mundo do silêncio. Todas as pessoas que ali estavam podem dizer, podem se expressar, podem comunicar evangelho. Evangelho não pode ser silenciado.
O texto do Antigo Testamento, a profecia de Isaías, também nos remete à palavra e à ação do Messias esperado: os surdos ouvirão e os mudos cantarão. Deus vem salvar e a vida será boa. As palavras evangelizadoras da Carta de Tiago remetem-nos ao nosso agir neste mundo. De nada adianta falar belas palavras e não agir de acordo com elas ou não traduzir a fé em palavra-ação.
O tempo do ano litúrgico é após Pentecostes: com o impulso do Espírito Santo, a palavra de Deus vai sendo anunciada, falada, a igreja vive a missão de Deus, vamos ouvindo falar de Jesus e vivendo vida com Deus.
2. Exegese
O texto é formado por duas perícopes: a cura da filha da mulher siro-fenícia e a cura de uma pessoa surda e gaga, sendo esta última perícope material exclusivo do Evangelho de Marcos. O primeiro relato é uma cura à distância. No segundo há o toque de Jesus: Jesus toca com seus dedos nos ouvidos e na língua daquela pessoa. Em ambos os relatos a palavra tem força extraordinária. No primeiro, a fala resistente, persistente e perseverante da mulher-mãe que confia, que tem certeza da ajuda de Jesus, porque ouviu falar de Jesus, por isso não desiste; no segundo, o ouvir e o falar são ações missionárias. Divulgavam o acontecido. A ordem de Jesus era guardar silêncio. Não era possível silenciar. Era preciso palavrear.
v. 24: Jesus limitou seu ministério quase integralmente ao território judaico, porém alargou e foi para outras regiões em certos momentos. Queria passar despercebido pela região de Tiro e Sidom. Essa região pertencia à Siro-Fenícia. Queria ocultar-se numa casa ali. Mas não pôde. Em nenhum lugar ele pôde ficar longe da vida das pessoas.
v. 25: Uma mulher gentia, mãe de uma menina, procura Jesus por ter ouvido falar dele. Sua filha estava possessa de um espírito imundo. Os espíritos malignos têm influência sobre as pessoas e procuram ocupar seus corpos. Com frequência encontramos pais procurando Jesus e intercedendo por seus filhos: o pai Jairo intercede por sua filha (Mc 5. 21ss); o pai que tem um filho possesso por espírito imundo o traz até Jesus (Mc 9.14ss); são trazidas até Jesus crianças para que ele as tocasse (Mc 10.13ss). A mulher-mãe sabia algo sobre Jesus e prostra-se a seus pés buscando ajuda para sua filha. Uma mulher, segundo a compreensão judaica, era reduzida a nada.
v. 26: Aquela mãe tinha amor pela sua filha. Ela é insistente. Pede, expõe seus motivos e confia no poder de Cristo para realizar aquilo que ela solicitou.
v. 27: A resposta de Jesus é intrigante. Há uma rejeição muito dura por parte de Jesus. Na linguagem do povo judeu, os cães são os pagãos e os judeus são os filhos de Deus (em Mt 7.6 Jesus usa a comparação Não deem para os cachorros aquilo que é sagrado). Aqui no nosso texto é usado o diminutivo cachorrinhos. Há fronteiras a serem alargadas.
v. 28-29: Sim, Senhor – disse a mulher. Nenhum argumento a desencorajou. Ela não desistiu. Ela aceita o juízo de Jesus com o “Sim, Kyrios”. Eu quero o que estás dizendo: as migalhas que sobram da mesa dos filhos. A mulher-mãe continuou falando e por causa dessa palavra Jesus a manda para casa com seu pedido atendido. O texto paralelo de Mateus chama isso de fé. São as palavras de gentios pedintes que convencem a Jesus com sua fé.
v. 30: A filha estava em casa, em sua cama, o demônio não a dominava mais. É uma cura efetuada à distância.
v. 31: Jesus vai adiante, parte de Tiro, passando por Sidom até o mar da Galileia, e chega à Decápole, lugar estrangeiro. Também nesse contexto Jesus caminha e é conhecido.
v. 32: As pessoas daquele lugar trazem um surdo, que falava com dificuldade, e pedem que Jesus ponha a mão sobre ele. Algo sobre Jesus eles sabiam para agir assim. Uma pessoa que não ouve fala com muita dificuldade, muitas vezes de modo incompreensível emite sons. Não ouvir e falar com dificuldades mantinham aquele homem fechado em seu mundo. Não conseguia comunicar-se com seus semelhantes e precisa ser trazido até Jesus. O desejo de incluir na sociedade aquele que não se comunica motiva o agir solidário daquelas pessoas. Os conterrâneos de Jesus entendiam ser a limitação física um castigo por eventuais pecados.
v. 33-35: Aqui nos é contado o que acontece entre aquela pessoa e Jesus.
1º – Jesus tira-o/afasta-o da multidão e dá sua atenção àquela pessoa que vive no mundo do silêncio.
2º – Jesus põe os dedos nos ouvidos dele. Mesmo não ouvindo, pôde sentir. Jesus toca com seus dedos o ponto sensível do doente.
3º – Jesus lhe toca a língua com saliva. O uso da saliva como medicamento era conhecido, especialmente para os olhos (Mc 8.23; Jo 9.1-7). A língua é o órgão da fala e revela a intimidade da pessoa. Aqui ela estava presa.
4º – Jesus ergue o olhar para o céu.
5º – Jesus suspira.
6º – Jesus fala: Abre-te! E a ordem de Jesus é bem-sucedida: os ouvidos se abriram e pôde falar. A cura vai sendo um processo. Abre-te para comunicar–se, para interagir, para viver. O autor da cura é Jesus. Ele tem autoridade sobre a doença. Jesus usa a palavra efata, conhecida de seu povo, mas que precisou logo ser traduzida para ser entendida pelos ouvintes do evangelho. É preciso comunicar de modo que todos entendam.
v. 36-37: Jesus proíbe que fosse divulgado o que ali ocorrera, que não deveria ser dito qualquer coisa sobre a cura que recebeu aquela pessoa. Porém, a reação dos que ali estavam foi maravilhar-se e falar. O pedido de Jesus de que não falassem nada para ninguém não foi ouvido. Ao contrário, Jesus não pode ficar oculto, sua autoridade não pode silenciar.
Ao realizar milagres Jesus demonstra seu amor e sua autoridade. Tudo ele tem feito esplendidamente bem, é a palavra dos que presenciaram esse encontro com Jesus.
3. Meditando – não somente faz ouvir os surdos, como falar os mudos
O Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito e nos quer fazer caminhar para seguir a Jesus. Há movimento aqui, Jesus caminha e a seu encontro caminham pessoas porque ouviram a respeito de Jesus.
O mundo pós-moderno nos ensurdece, nos fecha dentro do nosso próprio mundo com um hedonismo exagerado, onde interessa satisfazer minhas necessidades, onde importa ser feliz imediatamente! Minha filhinha me dizia: “Eu quero agora!”. O mundo pós-moderno tem nos ensurdecido às dores e clamores de quem está sofrendo, isolado, de quem não entende as palavras, de quem não consegue nem mesmo falar e comunicar-se.
O mundo pós-moderno nos emudece. Preferimos ficar calados para não nos incomodar, para não nos “metermos”. E injustiças continuam imperando. Cremos em nossas próprias verdades. Cada um tem a sua verdade.
O mundo pós-moderno nos quer competitivos. Vivemos uma competição em todos os sentidos. Leva-nos à ganância, à cobiça, e fecha o nosso coração, traz separação, indiferença, desvia o nosso olhar da realidade do outro, nos faz querer o que é do outro e sentimo-nos satisfeitos quando nos sobressaímos aos demais.
O argumento usado pela mulher-mãe sobre migalhas que caem da mesa e os cachorrinhos comem é inquietante. A palavra cachorrinho era usado pelos judeus para se referir aos gentios. Talvez o uso do termo possa indicar que, caso a mulher fosse atendida em seu pedido, seria por causa da graça e bondade do Kyrios Jesus. Os cachorrinhos domésticos recebem os benefícios da abundância da casa. A mulher entendeu que até as migalhas que caem da mesa eram suficientes para suprir suas necessidades. O próprio povo de Jesus rejeitou a comida sobre a mesa.
No texto são outras pessoas que intercedem por aquelas a serem curadas: a mulher-mãe e quem trouxe o surdo e gago até Jesus. São outras pessoas que dialogam com Jesus, suplicando-lhe que faça algo em favor dos sofredores (a filhinha e o surdo gago).
E em nossa realidade, a nossa compaixão por pessoas em sofrimento nos faz agir em seu favor? Quando há obstáculos, ainda assim persistimos? Como a comunidade age diante de sofrimento e dores das pessoas? A doença é um mal a ser combatido. Com qual linguagem traduzimos o evangelho para as pessoas? A fé sem ação é uma fé morta. A fé nos põe em movimento, nos faz ver e ouvir quem hoje clama por dignidade; a fé no Kyrios nos impõe falar, trazer e incluir os que não ouvem e não falam.
Duas opções para a pregação:
O evangelho insiste na palavra – ouvir e falar ou não se calar. Poder-se-ia convidar pessoas na comunidade para “dar razão da sua fé”, ou seja, testemunhar, falar por que e como creem, por que vivem em comunidade, o que as atrai e as cativa a crer e ter vivência comunitária. Deve-se conversar com antecedência e estabelecer um pequeno roteiro, duas ou três perguntas norteadoras. Poderia ser uma pessoa que está presente e participante desde o início de sua vida, uma pessoa jovem e uma pessoa que se achegou à comunidade recentemente. Poderiam pautar seu testemunho, sua fala, sua palavra nas seguintes perguntas norteadoras: o que eu ouço falar de Jesus em minha comunidade? O que eu falo da fé que tenho em Cristo? O que me cativa a viver a fé em uma comunidade luterana?
Outra opção: preparar com a comunidade um culto com vistas a uma ação diaconal que cuida e inclui, que busca tornar as pessoas protagonistas. Pode-se perguntar e motivar a comunidade a refletir em quais ações diaconais as pessoas estão envolvidas ou em que a comunidade está envolvida. Aquelas pessoas que trouxeram o surdo e gago até Jesus se dispuseram a agir. Dispomo-nos a ações que expressam o que cremos, que confiamos no Senhor da igreja, diante do qual os mudos falam e os surdos ouvem?
4. Subsídios litúrgicos
Acolhida: “Tenham no coração de vocês respeito por Cristo e o tratem como Senhor. Estejam sempre prontos para responder a qualquer pessoa que pedir que expliquem a esperança que vocês têm. Porém, façam isso com educação e respeito” (1Pe 3.15-16a).
Gloria in excelsis: “Louvado seja o Senhor, que dia a dia leva as nossas cargas! Deus é a nossa salvação. O nosso Deus é o Deus que salva; ele é o SENHOR, o Senhor nosso, que nos livra da morte” (Sl 68.19-20).
Bênção final: Que Deus, que faz os surdos ouvirem e os mudos falarem, abençoe–nos com sua graça e nos impulsione a anunciar suas maravilhas. Amém.
Hinos: HPD 1, 249; HPD 2, 415, 466.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. O Segredo do milagre: uma perspectiva bíblico-teológica. São Leopoldo: Sinodal, 2012
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural Ltda, 1983.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).