Prédica: Marcos 7.31-37
Leituras: Isaías 35.4-7a e Tiago 1.17-22,26-27
Autor: Silvia Beatrice Genz
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/09/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:
1. Interpretação do texto
O Evangelho de Marcos: o título do livro oferece uma chave de leitura: Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus (Mc 1.1). Evangelho quer dizer boa nova, boa notícia. Não é a notícia do Império, mas a boa notícia de Jesus, o Cristo, o Filho de Deus. A primeira frase do Evangelho de Marcos deixa claro o que apresentará. O princípio não indica só o começo do livro, mas trata-se de anunciar Jesus como o fundamento do Evangelho, a boa nova da vida. Parece indicar que Jesus é o princípio de uma nova criação. Evangelho, na tradição judaica, é o anúncio da chegada do reino de Deus (Isaías fala do anúncio das boas-novas). Na cultura greco-romana, é a proclamação das notícias relacionadas com os fatos e feitos do imperador. O Evangelho de Marcos indica desde o início, que está apresentando a boa notícia do reino de Deus presente na vida de Jesus de Nazaré.
No Evangelho de Marcos, o conflito também pode ser uma chave de leitura. É apresentado desde o início e perpassa toda a vida de Jesus e culmina na cruz e na ressurreição. O conflito apresenta-se em três blocos: as controvérsias, a crise na Galiléia e as instruções aos discípulos.
a) As controvérsias: na primeira, que começa em Mc 2.1-3, está em jogo o que se pode ou não fazer em favor da vida. Começa com a acusação de blasfêmia levantada pelos escribas (Mc 2.7) e termina com a armação contra a vida de Jesus (Mc 3.6). A segunda surge em Mc 7.1-23, quando Jesus se retira para Genesaré, mas de Jerusalém são enviados espiões. Estão em jogo os valores da vida em face das exigências da lei. Jesus desautoriza as tradições e se retira estrategicamente para Tiro, um território pagão. A terceira controvérsia (Mc 11.1-13.12) é o enfrentamento com os representantes do poder: sacerdotes, anciãos, fariseus, escribas, saduceus… Com o acirramento, agrava-se a conspiração contra Jesus.
b) A crise da Galiléia (Mc 8.27-38) é marcada pela incompreensão do povo, dos discípulos e pelo assédio maior do centro de poder. Jesus empenha-se em corrigir expectativas messiânicas equivocadas.
c) As instruções aos discípulos têm como marca os três anúncios da paixão (8.31-33; 9.30-32; 10.32-34).
O nosso texto está inserido no contexto de Mc 7.1-8.26. Marcos 7.31-37 faz parte da prática messiânica de Jesus. Esta se realiza cm Israel, com os gentios, e indica, em meio ao conflito, que é necessário discernir quem é Jesus de Nazaré. O Evangelho de Marcos narra a prática de Jesus, mas também é o anúncio da vinda do Filho do homem. Para Marcos, somente no seguimento é possível conhecer Jesus É no discipulado, no seguimento que se abrem os olhos para Jesus e só assim é possível compreender a cruz. Jesus abre os olhos das pessoas para que elas o reconheçam. Não é aceitável destacar que Jesus tinha poder de expulsar demônios e curar doentes, e deixar de apontar para a cruz. Para Marcos, a cruz é central para compreender quem é Jesus Também aquele que cura o surdo-gago é o Jesus da cruz. Ele está a caminho da cruz e quer o discipulado, mas também mostra que é sensível à dor humana e vai ao encontro do surdo-gago.
Alguns aspectos de Marcos 7.31-37
Quanto à tradução e clareza do texto, há estudos de Baldur vau Kaick, em Proclamar Libertação IV, p. 163, de Nelso Weingaertner, em Proclamar X p. 408 e de Gerd U. Kliewer, em Proclamar Libertação 22, p. 239. Ainda assim, salientamos alguns aspectos:
V. 31: a região de Tiro, Sidom, mar da Galiléia, região de Decápolis não é uma mera indicação geográfica, mas mostra que Jesus continua em terra estrangeira. A missão de Jesus vai além das fronteiras. A boa nova deve ser levada para todos os povos.
V. 32: pessoas amigas de um surdo e gago levam-no à presença de Jesus e suplicam que imponha as mãos sobre ele (elas confiam no podei e na vontade de Jesus). Um homem surdo que falava com dificuldade parece ser uma comparação com os primeiros cristãos, que, antes de entrar na comunidade dos discípulos de Jesus, eram como que surdos e quase mudos, pois tinham dificuldades de entender (ouvir) a realidade e anunciar (falar) a boa nova de Deus (proposta de vida de Deus). O desejo manifestado pelos amigos do surdo e gago é de mudança.
V. 33: Jesus tirou o homem surdo e gago do meio da multidão e o levou a um lugar à parte. Este gesto de levar a um lugar à parte lembra que as primeiras comunidades cristãs também tiveram de reunir-se à parte, em pequenos grupos, para aprender e assumir a mensagem de Jesus e assim ser curadas da surdez, mudez, gagueira, dos medos e bloqueios que impediam o ser comunidade. Os gestos parecem ter semelhança com a celebração do batismo pelos primeiros cristãos. Jesus toca o surdo e gago com os dedos no ouvido e toca a língua com saliva. Não e um rito mágico, mas toca os pontos do corpo que precisam de cura, de mudança.
V. 34: Jesus voltou os olhos para o céu, suspirou (concentração ou revolta com o sofrimento não-desejado por Deus) e disse uma palavra da sua língua: efatá, que quer dizer abra-se. É uma ordem, um imperativo que demonstra poder, autoridade, mas também a força da palavra, da oração (olhos voltados para o alto indicam postura de oração).
V. 35: acontece o que Jesus ordenou. Jesus traz o novo. O surdo recebe poder de ouvir e de falar desembaraçadamente (pode ser uma ilusão aos primeiros cristãos que ouvem, falam e vivem a boa nova).
V 36: a ordem para que não dissessem a ninguém mostra que Jesus não precisa fazer propaganda de si e até nem queria que falas sem muito dele. O importante não era a sua pessoa, mas que esta irrompendo o tempo da salvação (nova criação). No entanto, não consegue impedir que a boa notícia se espalhe.
V. 37: mostra o espanto, mas também a alegria e a constatação da comunidade de que Jesus fazia tudo para o bem. Parece contemplar a criação (Gênesis). E viu que tudo era muito bom. Não só faz ouvir os surdos, como falar os mudos; mostra que não se trata de algo especial, mas de algo constante. No versículo 32, fala-se de um gago e aqui fala de mudos. O fato é que Jesus quer que as pessoas estejam com a língua desimpedida para anunciar o evangelho. Acontece o que Deus havia prometido através dos profetas: O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor (Lucas 4.18-19).
O texto na sua época e hoje
O objetivo do texto é mostrar que Jesus não manda embora aquele que é trazido por amigos para ser curado. Ele visa a uma solução para o sofrimento do surdo e gago. Jesus demonstra compreensão e amabilidade e cura o homem. Volta-se para os fracos, para os exclui dos. Para a comunidade romana, provável destinatária do Evangelho de Marcos, Jesus mostra a proposta de Deus, que é o inverso do que se experimentava sob o império romano. Roma era a maior potência da época. Tinha mais de um milhão de habitantes, e o sustento da capital dependia quase que totalmente de recursos oriundos das várias regiões submetidas. Os tributos e impostos cobrados eram bastante pesados, provocando o empobrecimento das massas. O sistema do latifúndio e a lei de escravidão são adotados para atender uma minoria privilegiada. Havia acúmulo de riquezas em Roma às custas da exploração e consequente miséria da população do império. Ser cristão nesta época era estar exposto à perseguição romana. Ser discípulo de Jesus era ser candidato ao martírio. Era uma época em que se devia ter muito cuidado (como cristão) com o que se falava, para evitar a perseguição e a consequente ruptura precoce da semente pequena e de valor infinito: a fé das primeiras comunidades cristãs. Há vários escritos de exegetas que situam o Evangelho de Marcos numa época de persegui cão e escrito a partir de uma pequena comunidade de Roma.
Marcos 7.31-37 espelha a realidade de quem busca, de quem vem ao encontro de Jesus. Pessoas sedentas por mudanças: doentes, famintos, excluídos em geral. Todos buscam em Jesus a boa nova. Havia multidões nesta situação. O sistema os produzia em grande escala. Não havia apoio para a medicina, e principalmente para o povo empobreci do. Jesus ouvia o clamor do povo e mostrava seu amor, sua compreensão e o ajudava. Pedia para que não se fizesse publicidade. Mas sempre que realizava uma cura alguém gritava: Tu és o Filho de Deus, e ele sempre mandava calar. Sempre dava ordens de silêncio. Ele não queria publicidade (Mc 1.25; 1.34; 1.44; 3.11-12; 5.43; 7.36; 8.26; 8.30). Parece que não se tratava apenas de humildade, mas faz parte da estratégia necessária nas primeiras comunidades cristãs. Em Jesus, manifesta-se a necessidade do crescimento a partir da pequena planta (boa nova – evangelho). Mais tarde, os apóstolos entendem que Jesus não veio pedir aplausos. O milagre, a cura não é mágica, mas traz a mudança de todo jeito de viver. A cura de um problema não vai mudar o todo, mas a cura de um mal desencadeia um processo de mudança para um mundo melhor.
Jesus não queria enganar ninguém. Ele era fiel à vontade de Deus. As mulheres que seguiram Jesus até o Calvário contaram que o centurião pagão, chefe dos soldados romanos, exclamou, logo após a morte de Jesus: Realmente, este homem era o Filho de Deus. Aí não havia mais perigo de ser mal entendido. Jesus de Nazaré, o perseguido, o torturado, o crucificado, que curou o surdo e gago, é o Filho de Deus.
O texto de Marcos 7.31-37 impulsiona-nos, hoje, como comunidade, em direção aos enfraquecidos, excluídos pelo sistema, e nos encoraja para a ação concreta em favor dos que têm falta de vida. Após 2000 anos, não temos mais a lei da escravidão, mas temos o mundo globalizado, com o capital transnacional, especulativo, abocanhando lucros em meio à pobreza dos países pobres, aumentando a pobreza da maioria e apoiados pela minoria. Há muito dinheiro sendo investido em armamento e comparativamente pouco na saúde, educação, na vicia. A cura do surdo e gago mostra que Jesus quer ouvidos que ouvem o evangelho e línguas livres para anunciar o evangelho.
2. Passos para a pregação e celebração do culto
A comunidade precisa receber a boa nova de forma acessível. Por isso, sugiro preparar a dramatização do texto de Mc 7.31-37. Após a dramatização, uma breve pregação salientando:
a) A busca não é solitária, mas solidária; amigos, mais pessoas, homens, mulheres estão junto dos que precisam de solidariedade na dor, na fraqueza e buscam por cura. Salientar o aspecto do curado ter sido levado, amparado pela comunidade.
b) Quem leva e busca cura está confiante em Jesus. Aquele grupo crê na boa nova; por isso, vai em busca solidária e depois anuncia que a mudança é possível.
c) A súplica pela imposição de mãos hoje indica-nos a bênção no trabalho, na saúde para que a cura aconteça. Não só cura individual, mas coletiva. Que a comunidade aposte com toda a força na mudança: mais investimentos em prol da saúde, mais apoio da parte da comunidade aos que estão em sofrimento e dor, ajuda no encaminhamento de doentes e pessoas em sofrimento e, por último e mais importante, animar para a confiança em Deus, para a fé. Não se pode anunciar o impossível, mas sim a confiança em Deus (envelhecimento, longevidade,o findar da vida).
d) O texto oferece oportunidade para falar da busca de saúde com métodos naturais. A cura do surdo e gago mostra a importância da imposição de mãos, do toque e da saliva. É possível falar de alimentação natural, chás e curas naturais. Também podemos falar do bloqueio psicossomático que leva à gagueira, dos avanços da medicina e até agradecer a Deus pelo aumento da média de vida.
e) Na liturgia do culto, dar um peso todo especial ao Kyrie, clamando pelas dores das pessoas excluídas, das que aguardam em longas filas para ter acesso ao atendimento hospitalar e cirúrgico. Clamar por situações concretas e gerais onde sentimos a presença de barreiras que impedem a busca de soluções.
f) Após a pregação, temos a oportunidade para realizar a oração de intercessão com a participação da comunidade, incluindo as pessoas que sofrem em virtude de doenças e do sistema de saúde e especialmente as empobrecidas.
Bibliografia
COLAVECCHIO, Ronaldo L. O Caminho do Filho de Deus: leitura contínua do Evangelho de São Marcos. Aparecida: Santuário, 1995. p. 93-95.
ESTUDO do Novo Testamento: roteiros para a reflexão VII. São Leopoldo: CEBI, 1998.
KOLLMANN, Bernd. Jesus und die Christen als Wundertäter. Göttingen Vandenhoeck & Ruprecht, 1996. p. 230-234.
LENTZEN-DEIS, Fritzleo. Comentário al Evangelio de Marcos. Estella Espanha: Verbo Divino, 1998. p. 234-240.
MOSCONI, Luís. O Evangelho Segundo Marcos. Belo Horizonte- CEBI 1989. (A Palavra na Vida, 24)
Colaborou na elaboração deste auxílio Dalcido Gaulke.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia