Efatá: Abre-te!
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Marcos 7.31-371
Leituras: Isaías 35.4-7a e Tiago 2.1-10(11-13),14-17
Autoria: Nádia Cristiane Engler Becker
Data Litúrgica: 15° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/09/2021
1. Introdução
Optei por abordar apenas o segundo milagre previsto para a pregação (Mc 7.31-37), levando em conta que o texto de Marcos 7.24-30 e paralelos foram trabalhados diversas vezes e de forma muito significativa nos últimos tempos. Caso haja interesse, alguns desses textos estão disponíveis no portal Luteranos. O texto de Tiago afirma que pessoas que vivem sob a lei do reino de Deus não fazem distinção entre pessoas por causa da sua aparência ou das suas posses. Diante do próximo, o amor e a fé se transformam naturalmente em diaconia, ou é “coisa morta”.
“Coisa viva” é o trecho de Isaías. Uma promessa cheia de vigor e consolo que faz viver a esperança! Deus está aqui! E onde há sofrimento, haverá transformação, libertação, pois ele vem para salvar! O surdo-gago do texto de Marcos experimenta concretamente a diaconia de pessoas que o levam à presença de Jesus quando ele não consegue nem mesmo pedir em favor de si mesmo. Experimenta a transformação e a libertação daquele que veio para salvar. Ele, que até então passivamente recebe a ajuda de outras pessoas e agora de Jesus, de repente se junta aos demais para testemunhar e adorar a Deus, pois reconhece que tudo ele tem feito esplendidamente bem!
2. Exegese
V. 31 – O texto inicia com: De novo, deixando claro que Jesus já esteve ali antes. Tiro, Sidom, território de Decápolis são terras pagãs por onde Jesus já havia passado e onde já havia realizado milagres (Mt 4.25; Mc 5.20). O itinerário e o porquê de Jesus fazer essa volta por terras gentias para chegar ao mar da Galileia não são mencionados. Mas é suficiente para situar esse milagre em território pagão. É suficiente para deixar clara a intenção de Jesus desde o princípio de abrir as portas da salvação para além de Israel.
V. 32 – […] lhe trouxeram. O homem, pelo impedimento da deficiência auditiva, não havia ele mesmo ouvido falar do poder de Jesus. Mas pessoas próximas a ele, sim. Mesmo em território gentílico, a fama de Jesus havia se espalhado. O texto não dá detalhes de quem são essas pessoas que trazem o homem a Jesus. Supõe-se que fossem pessoas próximas, talvez familiares, que queriam ajudá-lo de alguma forma. Talvez já o tivessem levado a outras pessoas e lugares em busca de cura. E ao ouvir notícias sobre o poderoso agir de Jesus, a esperança renasceu. Mogilalos: Essa palavra só aparece aqui e em Isaías 35.6. A tradução indica que ele tem dificuldade para falar, mas não impossibilidade.
[…] impusesse as mãos. A cura pela imposição de mãos era algo conhecido entre as pessoas daquele tempo. Jairo, por exemplo, suplica que Jesus imponha as mãos sobre sua filha para salvá-la (5.23). Do mesmo modo, os relatos de Marcos 1.41; 6.5; 8.23,25; ainda nos textos de Marcos 1.31; 5.41 e 9.27 aparecem o toque, o segurar a mão e ajudar a se levantar no momento da cura. Esses textos mostram que o contato físico, o gesto de impor as mãos tem grande valor simbólico para a espiritualidade das pessoas. Porém Jesus não depende de gestos visíveis para transferir poder e realizar a restauração. Em muitos casos, Jesus ajudou sem ao menos ter visto a pessoa (Mc 7.30; Mt 8.16), pelo simples poder de sua palavra. Nesse caso específico, todo o gestual que antecede o milagre é pura demonstração do jeito inclusivo e amoroso de Jesus. Quando ele põe os dedos nos ouvidos e lhe toca a língua com saliva, Jesus estabelece comunicação íntima e direta com o homem numa linguagem que ele podia entender. Primeiro, ele lhe abre o entendimento e o coração, depois os ouvidos e a boca.
V. 33 – Jesus, tirando-o da multidão, à parte. Ao fazer milagres, Jesus não pretendia promover a si mesmo, como uma propaganda para atrair pessoas para si. Ele não quer fama – quer que as pessoas estejam bem. Deste modo, “coloca seu poder e sua autoridade integralmente a serviço da salvação da criatura, de sua saúde, de seu bem-estar, de sua vida” (BRAKEMEIER, 2012, p. 30 e 32). Por isso ele tira o homem do meio da multidão e ao final pede que não falem sobre o milagre.
V. 34 – Depois, erguendo os olhos ao céu, suspirou. Os gestos que Jesus emprega aqui eram comuns na medicina e na taumaturgia da sua época. Ele se vale de elementos e gestos conhecidos pelas pessoas do seu tempo. Em alguns momentos isso fez com que ele fosse confundido com curandeiros, mágicos e feiticeiros. Sem se importar com comparações, ele olha para o céu e revela de onde vem o seu poder e em nome de quem ele age. O suspiro é expressão de sofrimento. A dor vivida por aquele homem isolado pelas suas deficiências atravessa Jesus. Cheio de compaixão, ele suspira e leva sua miséria perante a face do Deus da misericórdia.
Efatá!, que quer dizer: Abre-te!: O fato do evangelista apresentar a tradução da palavra indica que ele não queria que ficasse margem para interpretações diferentes. Aramaico era a língua materna de Jesus, portanto ele recorre a um termo conhecido para fazer conhecido o imenso poder de Deus de abrir não apenas ouvidos e bocas, mas também mentes, portas, corações, caminhos, sepulturas.
V. 36 – […] lhes ordenou que a ninguém o dissessem. Isso é contraditório! Por que restaurar a audição e a fala para então ordenar que não se fale? Sim, ele podia falar. Mas não deveria falar da cura e de quem o havia curado. No Evangelho de Marcos, mais vezes Jesus proíbe pessoas de falar. Naquele momento, ele não quer ser revelado como o Messias, o Cristo. Jesus mesmo só se revela como o Cristo um pouco antes da sua morte ao ser interrogado pelo sumo sacerdote (16.61-62).
[…] quanto mais recomendava, tanto mais eles o divulgavam. Jesus insiste que guardem o segredo, porém, tomados de admiração, eles não conseguem calar. Algo idêntico vemos acontecer com Pedro e João anos mais tarde, quando mesmo sendo ameaçados para que não falassem em o nome de Jesus, eles se levantam e dizem: Nós não podemos deixar de falar das coisas que vimos e ouvimos (At 4.20). Os transgressores da ordem de Jesus não são criticados. Marcos sabe que não é possível reter para si a maravilha de ter experimentado o poder restaurador de Jesus.
V. 37 – Maravilhavam-se sobremaneira, dizendo: Tudo ele tem feito esplendidamente bem! Cabe lembrar novamente que quem tanto se admira e não consegue deixar de testemunhar são pessoas pagãs. A multidão de Tiro, Sidom e do território da Decápolis, antes do que o povo escolhido, é presenteada com a graça de ter aberta diante de si a glória do Senhor, o esplendor do nosso Deus, conforme a promessa de Isaías 35.2.
3. Meditação
Efatá! Abre-te!
Quantas coisas abrimos ao longo do dia? Olhos, janelas, portas, geladeira, páginas de internet, livros. Para quais coisas nós nos abrimos? Para relacionamentos, para pessoas, para novas ideias, para o Evangelho…? Para que estamos fechados? Diante de que nossos ouvidos são surdos e nossas bocas são mudas?
Ouvir e falar são aspectos muito importantes da comunicação entre as pessoas e também com Deus. O surdo-gago fala, mas tem dificuldades em se fazer entender. Ele fala, mas não é compreendido. Os ouvidos fechados para ouvir são símbolo da humanidade que passa os dias ouvindo sons, mas em muitos momentos tem ouvidos fechados para o Evangelho e para o clamor do próximo; a língua com empecilho é símbolo da humanidade que faz curso de oratória para aprender a falar melhor, mas parece ter “tramela” na língua na hora de denunciar uma injustiça, de pedir perdão, de dizer obrigado, de pedir ajuda. Por outro lado, as falas são eloquentes numa discussão familiar, num debate político e para emitir juízos sobre a vida alheia.
Jesus não deu um manual do que o homem deveria falar e ouvir depois de ser curado. Esse, porém, ciente da maravilha que é ser libertado de sofrimento e solidão, testemunha e louva seu Salvador. Viver sob a lei do reino de Deus requer ouvidos abertos para ouvir o Evangelho e bocas que anunciem com clareza o Evangelho. Segundo Lutero, língua e ouvidos são a marca que diferencia uma pessoa cristã de uma não cristã:
Aqui, Cristo se dedica especialmente a estes dois órgãos: ouvidos e língua. Pois, como se sabe, o reino de Cristo se fundamenta na palavra que não pode ser recebida nem compreendida a não ser por meio destes dois membros, os ouvidos e a língua. Esse reino exerce seu domínio no coração dos homens tão somente por meio da palavra e da fé. Os ouvidos apreendem a palavra, e o coração crê nela; agora, a língua anuncia ou confessa a palavra que é crida no coração. Portanto, se as línguas emudecem e os ouvidos se fecham, não resta nenhuma diferença visível entre o reino de Cristo e o mundo. Pois, no tocante à vida corporal ou exterior, a conduta de um cristão em nada difere daquela do não cristão: ele constrói, planta, lavra o solo como os demais, e não realiza nenhuma obra ou feito especial em termos de comida, bebida, trabalho, sono ou qualquer outra coisa. Apenas esses dois órgãos estabelecem uma diferença entre cristãos e não cristãos: o cristão fala e ouve de forma diferente e sua língua exalta a graça de Deus e prega o Senhor Jesus Cristo, declarando que somente ele é o Salvador. O mundo não faz nada disso. Ao contrário, fala da vareza e de outros vícios, prega e engrandece sua própria pompa2.
A ordem dos gestos de Jesus também é pedagógica: primeiro os ouvidos, depois a boca. Tiago 1.19 admoesta: Cada um esteja pronto para ouvir, mas demore para falar e ficar com raiva. E Rubem Alves escreve sabiamente um texto intitulado: A Escutatória. Em diversas passagens do Antigo Testamento, Deus chama a atenção do povo dizendo: Escuta, Israel (Dt 6.4). A palavra que vivifica precisa penetrar nos ouvidos e vivificar o ser humano: Ouçam-me com atenção […] me escutem que vocês viverão (Is 55.2b-3a). Efatá! Que nossos ouvidos sejam abertos!
Em Isaías 35.5-6, falar e ouvir são apontados como sinais do cumprimento da promessa da vinda do reino de Deus. Ao ser curado de sua surdez e gagueira, o homem experimentou o reino de Deus, experimentou o poder do amor ilimitado e gratuito de Jesus. Outro sinal da presença do reino de Deus é anterior a essa cura: é quando pessoas se juntam, movidas pela esperança de um milagre e pela compaixão e levam o homem surdo e gago à presença de Jesus. As pessoas que trouxeram esse homem acometido de dupla limitação (auditiva e de fala) vieram com duplo sentimento: esperança e humildade, expresso na forma como se dirigem a Jesus: “Suplicaram”. Suplicar não é simplesmente pedir. É implorar, rogar de maneira intensa, humilde e insistente. Um gesto totalmente altruísta em favor de alguém que não pode se ajudar sozinho é certamente um sinal da presença do reino de Deus! Fé somada ao amor torna-se diaconia, marca daqueles e daquelas que vivem sob a lei do reino de Deus.
Essa dimensão comunitária da cura é muito significativa. Brakemeier escreve:
Jesus reage não somente à fé da própria pessoa doente. Não menos importante é a fé de pais, familiares e amigos. Os quatro homens que levam o paralítico até Jesus (Mc 2.1ss) não o transportam apenas com seus braços e suas pernas, mas também o carregam com sua fé. É a mãe que intercede por sua filha (Mc 7.24ss), um centurião que busca socorro para seu servo (Mt 8.5ss), o pai que anseia por ver seu filho livre da possessão (Mc 9.14ss) – todos eles creem para conseguir a cura não de si mesmos, mas de outros! Isto não significa a diminuição da fé dos próprios enfermos. Ressalta-se, isto sim, a importância do apoio por uma comunidade de fé (BRAKEMEIER, 2012, p. 39).
O surdo-gago não foi sozinho buscar Jesus. Não porque não pudesse andar, mas porque estava numa condição de conseguir sequer pedir por ajuda. Por não ouvir, não conhecia o grande poder e amor de Jesus. Quantas pessoas do nosso tempo vivem nessa condição? Aqui reside um impulso missionário valiosíssimo para famílias e comunidades! O Evangelho quer ser ouvido, quer ser anunciado com clareza, porque ele é o poder de Deus para abrir o caminho para a salvação: tudo ele tem feito esplendidamente bem!
4. Imagens para a prédica
Deus é aquele que abre bocas (Ef 6.19), ouvidos (Mc 9.14ss), olhos (At 26.18 e Is 42.6-7), mentes (Lc 24.45), portas (1Co 16.9), corações (At 16.14), caminhos para a missão (At 14.27), o céu (Mt 3.16), as sepulturas (Mc 16.4). O próprio Jesus se apresenta como porta (João 10.9), a porta aberta a qual ninguém poderá fechar (Ap 3.7ss). Vale a leitura desses diferentes versículos!
Sugiro encenar o texto bíblico valorizando especialmente duas coisas: (a) os gestos de Jesus, frisando que o poder para a transformação vem dele; (b) as
pessoas que trazem o surdo-gago, ressaltando a dimensão comunitária e missionária do milagre.
5. Subsídios litúrgicos
Litania
Efatá: Abre-te!
Escutem! Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta eu entrarei em sua casa, terei comunhão com ele e ele comigo! (Ap. 3.20)
Para a comunhão contigo, Senhor, queremos nos abrir! Tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para ouvir tua voz, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para ouvir o clamor da pessoa próxima, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para dizer palavras que edificam, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para a transformação da mente e do coração, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para transformar a fé e o amor em diaconia, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para enxergar tuas dádivas e acolhê-las com gratidão, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Para viver sob a lei do reino de Deus, tu nos dizes:
Efatá: Abre-te!
Diante de ti abrimos nossos ouvidos, mentes e corações para a transformação.
Diante de ti abrimos nossas bocas em louvor e mãos em ação!
Efatá: Abre-te! Sim, diante de ti queremos nos abrir!
A ti, Deus Trino, seja toda a honra e toda a glória, agora e para sempre, amém!
Antes da pregação, sugiro o versículo de Efésios 6.19. Para a confissão de pecados, utilizar Ezequiel 12.2, Jeremias 5.21; 6.10 ou Isaías 6.9.
Notas:
1 A perícope prevista pelo Lecionário Comum Revisado da IECLB, Ano B, é Marcos 7.24-37.
2 Disponível clicando aqui.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. O segredo do milagre: uma perspectiva bíblico-teológica. São Leopoldo: Sinodal, 2012.
COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2000. v. I.
POHL, Adolf. Evangelho de Marcos. Curitiba: Evangélica Esperança, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).