Prédica: Marcos 8.22-26
Autor: Günter Karl Fritz Wehrmann
Data Litúrgica:12º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 13/08/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
Obs.: O presente auxílio homilético segue, em grande parte, os passos indicados no Exercício Homilético de PL XII, p. 91-102.
l — Passo 1 — Contemplação pessoal
1 — Primeiras impressões: Esse texto é palpável. Convida para ver e contemplar. Gente da aldeia Betsaida conduz um cego a Jesus. Não. é dito quem são as pessoas que o guiam — isso parece não importar a Marcos. Elas pedem que Jesus o toque. Esperam que, assim, se dê a cura milagrosa. Vêem em Jesus um milagreiro e curandeiro?
O cego parece passivo. Ele nem sequer pede — outros o fazem em seu lugar. Jesus atende à expectativa deles. Torna o cego pela mão (lembro os hinos Guia-nos, Jesus e Por tua mão me guia, HPD 210 e 174). Por que Jesus não o cura lá na aldeia mesmo? Isso tem a ver com a ordem de não entrar na aldeia (v. 26b)? Certamente temos aí um indício do segredo messiânico (uma característica de Marcos), pelo qual se mantém segredo em torno da pessoa e obra de Jesus.
A cura é descrita com muito fôlego. Chama a atenção a concreticidade: Jesus aplica saliva ao cego, impõe-lhe as mãos e pergunta sobre o andamento do tratamento (v. 23). A vista é recuperada apenas parcial¬mente (v. 24). Somente após Jesus ter-lhe imposto as mãos pela segunda vez, o cego passa a ver claramente. Por quê? Talvez para enfatizar a bênção que é concreta e que, por isso, também inclui contato físico.
Com vista recuperada a pessoa deixa de ser deficiente, carente de bênção divina; deixa de ser marginal. Ela é curada tanto física quanto socialmente. Jesus a manda para casa; mas recomenda que não entre na aldeia. Por quê? Ele quer evitar o sensacionalismo religioso, não quer ser considerado curandeiro milagroso (como existem por aí em nossas cidades)?
2 — Ver e perceber o externo do texto: O texto não tem paralelo nos sinóticos. Embora haja em Jo 9.1-7 também a cura dum cego, ela é narrada de maneira bem diferente e com outra intenção. Com a inclusão desse texto em seu contexto, Marcos tem, portanto, uma intenção especial. Isso me deve preocupar na exegese. De momento, basta constatar que o contexto menor trata da incompreensão dos discípulos (8.17,21) e da confissão de Pedro (Tu és o Cristo), à qual Jesus responde com a advertência de não dizer tal coisa a ninguém. Segue ainda o prenúncio da morte e ressurreição (8.21-33) e o convite ao discipulado sob a cruz (8.34-9.1). Justamente aí Jesus prediz a vinda do Reino de Deus com poder. Pedro, Tiago e João experimentam, no monte da transfigu-ração (9.2-8), um reflexo dessa revelação.
Nesse contexto está inserida a nossa perícope. A cura do cego tem, portanto, a ver com a superação do não-compreender de quem é Jesus; ela está ligada à confissão de que ele é o Cristo, cujo senhorio se manifesta no discipulado sob a cruz, até que o Reino venha com poder.
3 — Ver e perceber o interno do texto: Qual é o Evangelho do texto? Como já vimos, a sociedade de então considerava o cego não apenas um deficiente físico, mas também um carente da bênção divina. Essa era a razão principal (além da econômica, pois cegos não produziam) para a marginalização de cegos. Sob esse pano de fundo sócio-religioso, o fato de que pessoas se comiserarem do cego e o conduzirem a Jesus já representa uma parte importante do Evangelho. Pois aquelas pessoas rompem o isolamento e a marginalização com que a sociedade e a religião castigam o deficiente.
Naturalmente, o ponto culminante do Evangelho consiste na cura. Pois, através dela, Jesus não só elimina o fardo da deficiência física, mas também a marginalização social, religiosa e espiritual. Sim, também a deficiência espiritual é superada, pois o cego passa a ver claramente. Sem dúvida, isso é mais do que o mero restabelecimento da visão física, abarca também o perceber quem é Jesus (vide o contexto; cf. v. 27b). Jesus cura de fato; cura totalmente — nisso ele se distingue de outros curandeiros. Gente marginalizada pela sociedade e pela religião reconhece Jesus como o CRISTO.
Qual é a Lei? Sinto que o Evangelho acima identificado não só me alegra, mas também me questiona: Pessoas conduzem um deficiente marginalizado a Jesus. Seus motivos para fazê-lo podem ser teologicamente dúbios. Jesus, contudo, aceita o gesto de solidariedade e comiseração. A atitude daquelas pessoas sem-nome me questiona na minha insensibilidade e inércia para com os que sofrem, hoje, no Brasil, qualquer tipo de deficiência física, social e espiritual e que, por isso, são marginalizados pela sociedade, não raras vezes pela própria igreja e teologia. Penso, p. ex., em pessoas como mendigos na rua grande da cidade, deficientes físicos em geral, desempregados, colonos sem-terra… O que estou fazendo para que tal deficiência e marginalização seja denun-ciada, superada, ou pelo menos diminuída? Estou enxergando o cego que bate à minha porta? Estou me preocupando em perceber as causas que geram deficiência e marginalização?… Será que eu mesmo sou cego?
Esse questionamento leva-me à humilde confissão de minha própria culpa, co-culpa e necessidade de cura:
Jesu, gib gesunde Augen,
die was taugen.
Jesu, rühre meine Augen an.
Dehn das ist die grösste Plage,
wenn am Tage
man das Licht nicht sehen kann.”
Jesus, dê olhos sãos
que prestem alguma coisa.
Jesus, toque nos meus olhos.
Pois, este é o maior fardo,
quando, em plena luz do dia,
a luz não se pode enxergar.
Obs.: Decorei essa estrofe de um hino uns 20 anos atrás. Não sei se a letra é exata, nem encontrei a fonte. E tenho dificuldade em traduzi-la, já que me falta a veia poética. Se alguém me ajudar, serei muito grato!
Somente agora estou apto para perguntar pelo que posso fazer.
Qual é o Imperativo? Cristo abre os meus olhos para eu poder enxergar. Ele me faz perceber os diferentes sintomas da cegueira e suas múltiplas causas. Ele me constrange a me comiserar dos que batem à minha porta, a me solidarizar com os que lutam pela superação da marginalização em nossa sociedade, a me empenhar para que surjam sinais concretos de cura na comunidade, igreja e sociedade como um todo.
Isso, certamente, implica abnegação e cruz para mim. Mas a partir da Páscoa sei que a última palavra estará com aquele que já venceu as trevas e as vencerá definitivamente no final dos tempos. Essa esperança me serve de alento para, já agora, apostar naquele que liberta das trevas para a luz, da cegueira para o passar a ver claramente.
II — Passo 2 — Labor exegético
l — Esclarecimentos exegético-históricos
a) Texto
v22: E chegam a Betsaida . E lhe trazem um cego, e lhe pedem que o toque.
v. 23: E, (Jesus) tomando-o pela mão, levou-o para fora do povoado e, cuspindo-lhe nos olhos , impondo-lhe as mãos, perguntou-lhe: Vês alguma coisa?
v.24: E ele, erguendo e abrindo os olhos , disse: Vejo as pessoas; como árvores andando as enxergo.
v.25: Então, (Jesus) novamente colocou as mãos sobre os seus olhos (i. e., os olhos do cego). E (agora) ele enxergou precisamente e ficou restabelecido e podia ver tudo nitidamente. v. 26: E (Jesus) mandou-o para sua casa, dizendo: Não o digas a ninguém no povoado.
Notas esclarecedoras ref. à tradução:
1. Alguns manuscritos lêem Betânia. Diante disso, Lippold (p. 134) pergunta, se a cena não teria sido transmitida originalmente sem indicação da localidade. A meu ver faz muito sentido manter o nome de Betsaida, desde que se pense num pequeno povoado (KÕMÉ), situado no extremo norte do lago Genezaré (cf. Schabert, p. 133).
2. Isso mesmo! Será que Almeida, ao traduzir aplicando-lhe saliva aos olhos, tinha escrúpulos por causa das boas maneiras de hoje?
3. Alguns manuscritos lêem se ele visse. . . (pergunta indireta); contudo, a pergunta direta faz mais sentido, visto que a resposta também é dada de forma direta (cf. Lohmeyer, p. 159).
4. Almeida traduz recobrando a vista, o que não me parece bem correio e também não combina com o v. 25. Prefiro ler com Bauer (p. 101) die gesenkten Augen aufschlagen — isso presupõe que o cego estava cabisbaixo.
5. Cf. Bauer, p. 361, Scharf hinblicken.
6. Cf. Bauer, p. 504, er konnte alles deutlich sehen, ou er fasste alles deutlich ins Auge.
7. Lohmeyer, p. 158, analisando as 5 variantes constantes no aparato, pensa que um erro de cópia tenha originado as respectivas variantes. Ele afirma que a variante africana seja a original por questões de lógica. Além disso, a Bíblia de Jerusalém acrescenta no final do v. e de longe — isso parece ser supérfluo.
b) Forma
Não há dúvida que a perícope faz parte dos milagres e das curas. Ela não tem paralelo nos sinóticos. Suas semelhanças com e diferenças de Marcos 7.31-37 foram bem identificadas por Kunert (p. 269s.; cf. tb. Lohmeyer, p. 159). Lohmeyer (p. 160) aponta para o fato de que as histórias de milagres e curas expressam a secreta dignidade do consumador messiânico; trata-se de milagres do tempo messiânico. O objetivo de nossa história é revelar mais claramente o mistério da consumação escatológica e do consumador escatológico. Por enquanto, isso acontece apenas pelo acontecimento, não pela palavra; mas agora segue o bloco 8.27 — 10.52, em que isso (i. é, a revelação pela palavra) também acontece (Lohmeyer, ibid.). Ainda em relação à forma, convém apontar para o estilo de novela que se reflete na forte ênfase no processo da cura — essa é descrita nos mínimos detalhes e transcorre gradativamente.
c) Lugar
O primeiro lugar vivencial deve ser aquele povoado no extremo norte do lago Genezaré. Jesus já realizara muitos milagres e curas. Contudo, os fariseus, o povo em geral e até os discípulos permanecem em sua cegueira; não reconhecem nem compreendem Jesus como enviado de Deus, como Messias (cf. 8.14-21). Eles têm olhos, mas não vêem; têm ouvidos, mas não ouvem (cf. 8. 18).
Marcos coloca a nossa perícope intencionalmente nesse lugar, antes da confissão de Pedro (8.27-30). Pela cura desse cego, lá no último recanto do país, Jesus revela mais uma vez seu poder messiânico: Jesus é aquele que dá visão aos cegos. Será que ele tem que abrir também os olhos dos próprios discípulos e do pessoal da igreja de Marcos?
A pergunta pela época e o lugar da igreja de Marcos nos deve interessar, com vistas à encarnação ou contextualização do Evangelho. Marxen (p. 128s.) defende a tese de que o Evangelho de Marcos surgiu durante a guerra judaica (66-70), na Palestina, antes da destruição do templo (70). Lohse (p. 144s.) concorda com a data, mas menciona como lugar de redação o ambiente da cristandade helenista, o que me parece muito vago. Pesch (p. 12-14) conclui que, em todos os casos, Marcos escreve numa comunidade que permanece ligada às origens da cristandade na Galiléia e em Jerusalém, mas que está comprometida com a missão gentílico-cristã, com a igreja composta de judeus e gentios (p. 14). Pesch prefere datar a redação para pouco depois de 70. — Seja como for, com vistas à prédica é importante destacar que o lugar parece respirar um ar de ameaça, opressão, necessidade, guerra, persegui¬ção (lembro a perseguição sob Nero, em 64) e sofrimento, causados pelo Império Romano. Por causa de tudo isso a igreja de Marcos deve estar numa crise de fé que atrapalha a missão e a vivência comunitária. Diante desse pano de fundo, a cura do cego, lá num povoado da margem, ganha importância.
d) Palavra
V. 22: Podemos supor que Jesus esteja acompanhado pelos discípulos, visto que esse é o caso tanto no texto que precede quanto no que segue. Betsaida, situada ao Norte do lago Genezaré, não deve ser considerada uma cidade, mas um pequeno povoado.
Trazem um cego — Marcos não identifica quem são os que o trazem nem pergunta se eles vêem em Jesus o Cristo ou um curandeiro qualquer; interessa-lhe apenas o fato de que há pessoas solidárias. Esse gesto de solidariedade e doação quebra com o antigo e rígido conceito de que doença é sinal de maldição divina.
Cegueira é uma doença muito difundida na Palestina (cf. Pesch, p. 420), principalmente entre pessoas pobres. Marcos conta ainda a cura do cego Bartimeu (10.46-52); essa história, contudo, é em muitos detalhes bem diferente. Mencionamos apenas alguns: Jesus é tratado abertamente por Filho de Davi (= Messias); a cura se dá imediatamente pela palavra poderosa de Jesus.
Voltando à nossa perícope: O pedido de que Jesus toque o doente não é incomum (cf. 1.14; 10.13); também aparece o inverso (pessoas tocam nas vestes de Jesus — cf. 5.28; 6.56). O gesto de Jesus tocar em uma pessoa parece corresponder ao gesto da imposição de mãos, mencionado em v. 23 (cf. também 5.23; 7.32); trata-se da transmissão de força e poder e cura milagrosa (Pesch, p. 111) e, naturalmente, do contato corporal. Bênção e doação são gestos concretos e palpáveis, têm expressão corporal. Oxalá, que todos(as) pastores(as) levassem isso a sério no Batismo, na Bênção Matrimonial e na poimênica!
V,23: E Jesus toma-o pela mão — um gesto de doação e proteção; é a atitude do guia. Levou-o para fora do povoado —isso expressa a preocupação de Jesus em manter segredo em torno de sua pessoa e obra; ainda não chegou a hora; primeiro o Filho do homem tem que sofrer a cruz, morrer e ressuscitar (v. 31); disso trata todo o resto do Evangelho de Marcos. É por isso que a nossa perícope ainda preserva o véu do mistério messiânico e a palavra poderosa que cria e cura (como já vimos, isso não mais é o caso em 10.46-52).
Cuspindo-lhe nos olhos — Segundo Kunert (p. 271), a saliva, na compreensão popular e na dos rabinos, tinha força de cura de doenças, forças para banir o maligno. Certo, mas eu não afirmaria que a saliva em si não tem poder (Kunert, ibid.); pois, isso teria que ser comprovado cientificamente. A experiência ensina que uma ferida na boca, p. ex., sara mais ligeiro do que em outra parte do corpo, por causa da saliva. Não é o momento de problematizar mais ainda a questão com os nossos conhecimentos sobre perigos de contágio que podem surgir pela saliva alheia. O que importa destacar agora é que Jesus encarna na realidade popular ao usar esse meio de cura. — Oxalá que a nossa medicina moderna redescobrisse e valorizasse algo da medicina popular, como ervas medicinais e demais remédios caseiros!
Impondo-lhe as mãos — um gesto de bênção que hoje também é negligenciado por alguns obreiros. Tanto pela saliva quanto pela imposição de mãos são transmitidos poder e força de cura. São meios concretos e palpáveis — não abstratos!
Vês alguma coisa? — parece ser pergunta de médico durante o tratamento. Jesus como médico dos doentes, deficientes e marginalizados.
V. 24: E ele, erguendo e abrindo os olhos — podemos imaginar que o cego estava cabisbaixo, com os olhos fechados e que, agora, surge o primeiro sinal de cura.
Vejo as pessoas; como árvores andando as vejo — significa que a visão está começando a voltar, parcialmente. Isso sublinha o fato de que a narração apresenta a cura como sendo um processo, um tratamento mesmo.
V. 25: Fiel a esse intuito, Jesus continua o tratamento, colocando novamente as mãos sobre os olhos do cego, sobre os órgãos doentes. Somente agora o cego enxergou precisamente, isto é, a parcialidade da visão (v. 24) foi superada. Ficou restabelecido é um termo da medicina e indica a perfeita cura. Marcos destaca e sublinha mais uma vez, através do podia ver tudo nitidamente, a cura total e perfeita. Esse estilo de telegrama concentra toda a atenção no milagre da cura.
V. 26: Sinal dessa cura perfeita é que Jesus manda o homem para casa (cf. tb. 2.11; 7.29s.). A ordem não o digas a ninguém no povoado está a serviço da mesma intenção que já vimos no v. 23, a saber, de manter segredo em torno da pessoa e obra de Jesus, manter o mistério messiânico.
e) Intenção
Jesus persegue pelo menos uma dupla intenção. Por um lado, quer colocar um sinal de que o Reino de Deus vence escuridão, cegueira trevas, marginalização social e religiosa. Esse cego está sendo liberto, em todos os sentidos, da cegueira com tudo que ela implica. O contexto (vv. 17-21 e vv. 27-30) nos obriga a entender essa cura não só no sentido físico, mas também num sentido mais profundo. Trata-se de ver, perceber, compreender que esse Jesus que agora cura ejue em breve passará pela cruz para a ressurreição, é o Cristo, o Messias. Quando tal ver ocorre, pode-se dizer realmente: podia ver tudo nitidamente.
Por outro lado, Jesus não está preocupado apenas com esse cego, mas também com os seus discípulos. Quer que eles compreendam esse mistério messiânico (cf. v. 21), quer que eles não sejam como os fariseus e Herodes (v. 15), os líderes religiosos e políticos que promovem toda opressão e marginalização dos fracos e pobres e, assim, se opõem à irrupção do reino messiânico; são eles que têm olhos, mas não enxergam, e têm ouvidos, mas não ouvem. Jesus quer que seus discípulos enxerguem e percebam que o tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo (1.15).
Essa dupla intenção de Jesus é mantida por Marcos e atualizada para dentro da realidade de sua igreja, em torno do ano 70. Essa igreja que já passou por perseguição, opressão e marginalização, que também já passou ou está passando por guerra e destruição, muito bem pode estar perguntando: Como é que todo esse sofrimento se coaduna com a vitória pascal? Não seria melhor desistir dessa fé cristã e se arranjar no mundo do jeito que der? Assim, a igreja se assemelha aos discípulos que não compreendem quem é Jesus. É preciso que Jesus supere também a cegueira da igreja, para que ela passe a ver tudo nitidamente. Então ela entenderá que o discipulado acontece sob a cruz (v. 34) e não sob a glória. A cruz é a consequência do inconformismo com toda e qualquer marginalização e opressão. A esperança no Cristo crucificado e ressurreto dá alento para resistir à tentação de fraquejar na fé e dá força para lutar contra os poderes opressores e marginalizadores, sejam eles individualizados ou institucionalizados (fariseus e Herodes).
2. Resumo teológico
a) Intenção
Numa situação de marginalização, opressão e crise de fé, Marcos quer que Cristo abra os olhos de sua igreja, para que ela não resigne diante das trevas; quer que ela perceba que Cristo é Senhor e não aqueles poderosos político-religiosos; quer que ela assuma o fato de o tempo messiânico já ter irrompido (embora sua plenitude ainda esteja por vir), razão pela qual pode resistir e lutar contra os poderes promo¬tores de cegueira e marginalização.
b) Querigma
O cego não está sozinho. Pessoas do povoado o conduzem a Jesus (sinal de comunhão solidária). Jesus se doa a ele, toma-o pela mão (atitude de guia) e o envolve num processo de cura total assim que ele passe a ver tudo nitidamente. Da mesma forma, Jesus quer agir conosco, sua comunidade; quer abrir-nos os olhos para que percebamos que o tempo de libertação das trevas já irrompeu, com a vinda e vida de Jesus. Ele colocou sinais concretos e palpáveis de cura, o que o levou à cruz. Mas, desde a Páscoa, a igreja de Marcos pode saber que a última palavra estará com Cristo que vencerá definitivamente toda e qualquer cegueira. Agora o discipulado ainda acontece sob a cruz e não sob a glória. Mas a esperança na vitória definitiva do reino messiânico dá força para aguentar o sofrimento, dá alento para resistir às marginalizações e opressões e faz lutar pelo surgimento de sinais concretos e palpáveis de cura (dimensão missionária).
c) Proprium
Comparando a nossa perícope com 7.31-37 ou com 10.46-52, a narração é bem simples, bem humana e popular — nada de uma palavra criadora ou curadora (7.34), nada de efeitos maravilhosos na multidão (7.35), nada de título cristológico (10.47), nada de fé declaradamente expressa (10.52). Nossa história se despe de tudo isso, de tudo que possa cheirar a jargão teológico. Ela apresenta simplesmente gente do povoado levando um cego a Jesus, que o acolhe, o guia para fora do povoado e o trata como um médico. A cura acontece gradativamente em forma de processo de um tratamento concreto e palpável. Isso parece ser algo de bem próprio dessa história. Essa simplicidade e profanidade deveriam determinar também o nosso jeito de pregar!
Ill – Passo 3: Reflexão homilética
1. Definição das demais leituras bíblicas
a) Salmo de intróito: Sl 147.3-6,11-14a (expressa a adoração do Senhor que ergue os miseráveis e promove paz nas fronteiras); (ou palavra de intróito: Is 42.3).
b) Texto do AT: Is 29.17-24 (faz alusão ao tempo messiânico em que os cegos enxergarão e os miseráveis terão alegria no Senhor).
c) Epístola: At 9.1-20 (trata da vitória de Jesus sobre Saulo que, em sua cegueira, perseguia os cristãos; mas, vencido por Cristo, passou a ser testemunha dele).
2. Reflexão homilética
a) Situação da comunidade-alvo, à luz do texto e evento litúrgico
1) Quem são os ouvintes? Agora importa ver, ouvir e sentir os ouvintes da própria- comunidade. Nesse sentido, uma tentativa referente à comunidade da Escola Superior de Teologia, consta em PL XII, p. 124. Cada pregador(a) terá que fazer o seu próprio exercício de se conscientizar das alegrias, preocupações, dúvidas e lutas de seus ouvintes. Convém lembrar doentes, enlutados, idosos, solitários, matrimônios em crise, viciados e drogados, alcoólatras, desempregados e outros marginalizados pela sociedade e religião. A prédica terá que atentar aos assuntos mais prementes na comunidade. Importa, contudo, estabelecer uma ponte entre tais desafios um tanto individuais/pessoais e os desafios nacionais/ estruturais, como p. ex., política socioeconômica que faz enriquecer alguns poucos e empobrecer multidões, cegueira por causa da subnutrição — pelo menos a metade da população brasileira está subnutrida!
2) Ouvintes x texto x evento litúrgico: O 12° Domingo Pós-Trindade é um domingo comum no Ano Eclesiástico, caso não haja Batismo ou outra festividade ou comemoração comunitária. Podemos pressupor, portanto, que os participantes desse culto serão frequentadores mais assíduos. Ao ouvirem o texto, poderão estranhar a sua simplicidade e profanidade (cf. aquilo que vimos sob Proprium). Certamente escandalizar-se-ão com o cuspindo-lhe nos olhos e perguntar-se-ão pelo porquê do não o digas a ninguém no povoado (cf. a exegese). Igualmente a pergunta pelo milagre estará presente. A prédica terá que considerar esses aspectos para não perder a atenção dos ouvintes.
3) Interpretação exemplar: A. Jacoby propôs pensar em distúrbios nervosos como diagnóstico da cegueira e deu como paralelo atual uma notícia de Vitória, Austrália: Um homem, após algumas semanas de hospitalização foi mandado para casa; nada podia enxergar. O feiticeiro tirou-lhe da cabeça algumas palhinhas apodrecidas. Na segunda manhã podia ver os barcos na baía e, na terceira, os cumes das montanhas (apud Pesch, p. 420). Tal história talvez possa ajudar a compreender que curas milagrosas não eram tão incomuns na época de Jesus (penso que não é o momento de discutir a pergunta pela cura através de poderes malignos). A cura, de que o texto fala, tem um significado mais profundo, que já foi identificado acima sob II. 1. e) e II.2.
b) Reflexão teológico-sistemática
O que é milagre? Já que essa pergunta se impõe aos ouvintes, não a podemos ignorar, mesmo se, na prédica, não tivermos condições de tratá-la exaustivamente. Para pessoas simples a resposta é simples: ‘Milagre é tudo aquilo que não podemos explicar’. Essa resposta fascina pela sua simplicidade e por ligar fé e vida — pelo menos aquelas partes da vida que não podemos explicar. Mas justamente aí reside um problema sério. Verdade é que hoje sabemos explicar coisas que para nossos pais eram inexplicáveis. Nossos filhos saberão explicar coisas que para nós são inexplicáveis. Se relacionamos com Deus só aquelas coisas inexplicáveis, esse se torna apenas tapa-furo e deixa de ser Senhor sobre vida toda.
Se queremos que Deus seja Senhor da vida toda, temos que relacionar com ele também as coisas explicáveis, como p. ex., tratamento médico e remédio. Justamente nesse sentido podem ajudar-nos a simplicidade, popularidade e profanidade de nossa perícope (cf. II.2.c). Ela narra a cura dum jeito como o povo está acostumado a conhecer. O milagre está no fato de que a cura recebe um significado mais profundo, ou seja, que ela transcende e se torna transparente e é relacionada com o Senhor da vida. É ele que abre a visão, que lava os olhos para enxergarmos a realidade de marginalização e não-vida e percebermos suas múltiplas causas (individuais, sociais e estruturais). É ele que abre os nossos olhos para percebermos nessa cura um sinal do Reino de Deus que já irrompeu e virá em plenitude. É ele que nos revigora a fé nesta esperança para que não mais precisemos resignar e nos conformar com o estado de coisas injustas e marginalizadoras. E ele que nos faz lutar para que, hoje, surjam sinais concretos e palpáveis de cura (tanto individual quanto social e estrutural). Milagre abarca tudo isso! Portanto, não se trata do mero restabelecimento da visão física, mas também da visão social e estrutural.
Cego — vendo: Esses dois conceitos opostos, à luz do texto, descrevem a obra de Jesus. Cego significa que a segura relação da vida com a realidade está atrapalhada ou perdida. A vida, portanto, está séria e constantemente ameaçada no caminhar; pode tropeçar a qualquer momento; não enxerga o belo jogo das cores das flores; não percebe a direção e inter-relação de uma engrenagem social; não vê o perigo que a cerca. No linguajar cotidiano falamos em cego de raiva — cego de paixão… — Vendo, porém, indica o contrário de tudo aquilo que mencionamos acima, torna-se um sinónimo de vida segura, com direção e rumo bons, com percepção das coisas, vida bela e realizada, vida com sentido. Jesus veio para superar a cegueira e fazer vencer a visão, a claridade, as belas cores. Veio para devolver aos cegos e marginalizados a visão, a experiência e o gozo da vida libertada (cf. Lange, p. 86s.). — Eis mais uma maneira de pregar sobre esse texto!
c) Invenção da prédica
1) Intenção: Embora não haja nenhuma pessoa na EST que sofra de cegueira física, provavelmente todos nós soframos, de uma ou outra fornia, da cegueira espiritual (cf. passo 1). Além disso, fazemos parte de uma população cuja maioria sofre marginalização, opressão, subnutrição,. ..
Rogo a Deus que ele, através desta prédica, nos faça perceber que Jesus faz enxergar tudo nitidamente, que ele faz vencer a luz sobre as trevas, a vida sobre marginalização, opressão e morte.
Rogo a Deus que ele nos conscientize de nossas multiformes cegueiras e nos liberte delas, para que enxerguemos, em nosso convívio, as belas cores, experimentando solidariedade, doação e comunhão.
Rogo a Deus que ele nos fortaleça na esperança da vitória definitiva da luz sobre as trevas, da vida sobre a opressão e a marginalização, para que sejamos instrumentos da luz e da vida em nosso país, tão sofrido por causa da cegueira social, política, económica e religiosa.
Essa intenção pode ser bem resumida pela estrofe Jesus, dê olhos sãos… (v. 1.3).
2) Conteúdo: Esse deveria espelhar algo do proprium do texto (cf. II.2c). O peso deve estar no fato de que Jesus aceita, sem censura, o gesto de solidariedade que as pessoas demonstram ao levarem a ele o cego marginalizado e no fato de Jesus o curar totalmente (bom médico). Meditando sobre esses dois momentos do Evangelho, certamente poderemos encontrar exemplos de solidariedade e cura total do âmbito de experiência dos ouvintes.
À luz desse Evangelho, transparecem as multiformes cegueiras de nossa época (Lei = denúncia). Isso nos pode levar à humilde confissão de culpa e co-culpa.
Cristo sofreu a cruz por causa da cegueira de toda a humanidade. A partir da Páscoa, sabemos que a luz vencerá definitivamente as trevas.
Agora não mais há necessidade de silenciar sobre o quem é esse Jesus? (mistério messiânico). Ele quer manifestar-se em e através de nossa solidariedade com os marginalizados e pela luta, com eles e em favor deles, por transformação e cura.
Como forma de pregação talvez se recomende a narração atualizada que observa a sequência de cenas do próprio texto. Ou pode-se partir dos opostos cego — vendo (cf. II.2.b).
3) Estrutura:
A fim de não condicionar o leitor, dispenso este exercício.
IV — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: SI 147.3-6, 11-14a (leitura responsorial); ou: Is 42.3
2. Confissão de pecados: Pai celeste, tu amas a todas as pessoas, de maneira especial as pequenas, fracas e deficientes, as sofridas e oprimidas. Nós temos tanta dificuldade em entender isso e em nos deixar contagiar por esse teu amor. É-nos difícil enxergar as inúmeras formas e causas do sofrimento de irmãs e irmãos que colocaste a nosso lado, seja aqui na EST, na família ou no país. Parece que somos cegos. E essa cegueira sempre causa solidão, marginalização para as pessoas. Escuta, agora, a confissão individual que cada qual vai fazer em silêncio diante de ti, neste instante… (silêncio). Senhor, tu és a luz dos cegos, abre também os nossos olhos para enxergarmos nitidamente tudo aquilo que nos queres mostrar. Por causa de Jesus Cristo, teu Filho e nosso Libertador, tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio de graça: Assim diz o profeta Isaías aos de coração desalentado: Eis o vosso Deus (…); ele vem e vos salvará. Então se abrirão os olhos dos cegos (…). (Is 35.4s)
4. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e Pai, tu enviaste teu Filho amado para superar a nossa cegueira e a de toda a humanidade. Faze com que nós, através de tua Palavra e teu Sacramento, possamos ser libertos para tratarmos da cegueira que castiga e marginaliza e oprime irmãs e irmãos em nossa comunidade e em nosso país. Isso te pedimos por causa de Jesus Cristo que contigo e o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém.
5. Leituras bíblicas: AT – Is 29.17-24; Epístola – At 9.1-20
6. Assuntos para oração de intercessão: Agradecimento pelo fato de que Jesus aceita os gestos de solidariedade por menores que sejam; pelo fato de que Jesus Cristo vence toda e qualquer cegueira que causa marginalização. Interceder pelos que sofrem cegueira física (e outra deficiência física) para que recebam o devido atendimento médico-hospitalar e, em caso da cura ser impossível, recebam cuidados e assistência dobrados, por nós individualmente e pelos órgãos estatais; pelos governantes para que criem leis e estruturas que eliminam ou pelo menos diminuam as causas geradoras de cegueira física; por todos que sofrem de cegueira espiritual, começando conosco mesmos e incluindo todos os desnorteados (viciados, drogados, alcoólatras,…), todos os solitários (viúvos, idosos, jovens e crianças abandonados,…), todos os desempregados e injustiçados (sem-terra, bóia-fria,…), a fim de que surjam sinais concretos e palpáveis de cura plena — até que venha o Reino de Deus em plenitude.
V — Bibliografia
– BAUER, W. Wörterbuch zum Nenen Testament, 5. ed. Berlin, 1963.
– KUNERT, A. E. Meditação sobre Mc 8.22-26. In: DREHER, C. e KIRST, N. ed. Proclamar Libertação. São Leopoldo, 1982. V. VIII.
– LANGE, E. et alii. ed. Blind – sehend. In: Homiletisches Lexikon zu den Predigtstudien. Stuttgart, – 1974.
– LIPPOLD, E. Meditação sobre Mc 8.22-26. In: BORNHÄUSER, H. et alii. ed. Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart, 1983. Ano 5, v. B.
– LOHMEYER, E. Das Evangelium des Markus. In: Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament. 17. ed. Göttingen, 1967. V. II.
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo, 1980.
– MARXEN, W. Einleitung in das Neue Testament. 3. ed. Gütersloh, 1964.
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– SCHABERT, A. Das Markus-Evangelium. München, 1964.