Proclamar Libertação – Volume 33
Prédica: Marcos 9.2-9 (10)
Leituras: 2 Reis 2.1-12; 2 Coríntios 4.3-6
Autor: Werner Fuchs
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 22/02/2009
Enquanto a igreja dorme na luz, o mundo perece nas trevas.
Keith Green
1. Desafio
Um Deus que intervém na história através de Moisés, Elias, Eliseu, Jesus, Pedro, Tiago, João, Madalena, Valquíria, Sebastião. A “tocha” passa de um para outro, de uma para outra. Mas, ao contrário da olímpica, a partir de Jesus ela se reparte e multiplica. Milhares de luzes no meio das trevas. Cegueiras do coração e escuridão política, confrontadas com a “imagem de Deus” por excelência. É por isso que a glória de Deus brilha singularmente no rosto de Cristo (2 Co 4.6).
Marcos 9.2ss constitui de fato o eixo dos três textos. Transcendência na imanência, glória no sofrimento, interpelação para não permanecer nas nuvens. A transfiguração é importante justamente porque remete de volta ao cotidiano, à concretude e ao transitório, agora com uma visão abrangente, histórica, planetária. Estamos às portas da Quaresma. O sofrimento de Jesus, assim como os padecimentos humanos e sociais, não permite escapismos nem reducionismos na espiritualidade.
Por isso mesmo a realidade eclesial nos denuncia: cidadania acanhada, sensibilidade política atrofiada, ética inconsequente, testemunho profético inexistente, solidariedade eventual, sociedade consentidamente desigual, louvores na redoma, santidade sem sacrifício nem aroma (Ef 5.2; Hb 13.15s). Deus entre os pobres não é tema (ao contrário de Jesus, Mt 11.25); participação em política pública, pequena.
A transfiguração é antecipação da glória futura para dentro da realidade crua e nua. Descendo do monte é que se gera a transformação no intuito de Deus, de cunho histórico, universal, social. A maioria das pregações, porém, limita-se ao individual, pessoal, sentimental ou, no máximo, inclui o relacionamento familiar. Quando pregadores se aventuram para o mundo social e econômico, acabam na ética individual nesses contextos ou caem no triunfalismo espetacular imediatista. Não respiram os ares da relação entre a humilde serva e o derrubador de poderosos do cântico de Maria (Lc 1.46ss) ou entre o oprimido que alcança justiça e o criador de céus e terra, do Salmo 146. Antes, fazem rodeios ao se deparar com o termo “justiça” ou identificam diretamente o pobre e humilde com o cristão.
Esse conservadorismo poderia ser uma opção ideológica do pregador. Contudo, poucos se decidem de modo consciente por esse posicionamento. Poderia também ser soberba auto-suficiente e seletiva diante da palavra-acontecimento de Deus. Entretanto, mais do que fatores subjetivos, existem causas estruturais. Bons salários e gratificações, popularidade e convívio exclusivo com beneficiários do sistema econômico vedam olhos e lábios. Uma causa pouco considerada é que o pregador sobe ao púlpito todos os domingos. No desejo, válido, de ser concreto, concentra-se no que é factível para ele e os fiéis durante a semana: santidade pessoal, pequenas vitórias na vida familiar. No entanto, lutas por transformação social, direitos humanos, defesa de minorias, segurança alimentar, agroecologia ou preservação ambiental não se constroem em uma semana. Meses de cansativas reuniões e articulações poderão, ou não, dar resultado. Parece que não rendem para o sermão dominical. O imediatismo não se coaduna com a visão magna da dinâmica histórica. Contudo, o episódio da transfiguração impede o recuo ao doméstico-domesticado e obriga a saborear a palavra transformadora universal: “Ouçam-no!” (Mc 9.7). Há surpresas nesse caminho.
2. Pesquisa
1 – O ensino sobre o Filho do Homem constitui o contexto (a partir de Mc 8.31 e na sequência, seu sofrimento – Mc 9.12). A perícope representa uma interpelação, uma exortação, dirigida aos discípulos. Jesus os “toma”, “leva” ao alto do monte, é transformado “diante deles”, e Elias e Moisés “lhes” aparecem. A voz imperativa no v. 7 dirige-se a “eles”. Ouvir é o sinal mais característico do discípulo (Is 50.4). Nesse caso, são ensinados por um episódio fora do comum.
2 – A revelação é dada aos discípulos. Não se trata de uma instrução de Deus a Jesus, p. ex., confirmando seu chamado. Por isso não cabe o paralelo entre a subida ao monte por Jesus e por Moisés, apesar dos elementos semelhantes do imaginário: monte, nuvem, seis dias, voz (Êx 24.15), três acompanhantes, separados dos demais (Êx 24.1), tenda (Êx 33.7), brilho, temor (Êx 34.29s), “Ouçam-no!” (Dt 18.15). O número de três escolhidos repete-se quando há necessidade especial de testemunhas (Mc 5.37; 14.33; cf. 13.3). São vanguarda. Experimentam “em hora antecipada e em alturas solitárias” o que um dia há de preencher todas as terras (Pohl, p. 270).
3 – O que foi metamorfoseado é a “aparência” de Jesus (Lc 9.29). No dia-a-dia de Jesus havia pouco “brilho”, mas poeira, fome, cansaço, perseguição, vida sem pátria e sem proteção. A “casca de humilhação” é visivelmente iluminada pelo que ele de fato é (cf. 2Pe 1.16ss). “Vestes resplandecentes e superbrancas”, mais brancas do que a brancura possível na terra (v. 3), significam “luz sem nenhuma sombra”. É o branco dos seres celestiais (Êx 34.29; Dn 7.9; Mc 16.5; Ap 6.2 etc.). Mas é antecipação, ou transparência, “da luz que ele possuía agora, em meio a seu caminho de sofrimento, de forma oculta. O céu está realmente ao seu lado!” (Pohl, p. 271). Além da veste sobrenatural, aparece a companhia celestial: Elias e Moisés (v. 4). Os discípulos os reconhecem, ou seja, recebem uma revelação interior. A companhia desses dois expoentes da velha aliança, servos fiéis e igualmente sofredores, honra e credencia Jesus como Messias. Mais tarde, os discípulos o veriam suspenso entre dois criminosos.
4 – Reações dos discípulos: a) Incompreensão: Pedro sugere fazer uma tenda, porque ficou com medo, perplexo, e não sabia o que dizer (v. 5s). O desejo de ficar ali faz parte da dificuldade de entender a missão de Jesus, que passa pelo sofrimento na vida real (Mc 8.32). A resposta de Deus é a própria nuvem-tenda, o céu que desce. (Em Mc 1.11, a voz foi ouvida “dos céus”; aqui vem “da nuvem”.) A visão passa a ser uma audição reveladora, explicativa. “Ouçam-no” no seu ensino sobre seu padecimento. O próprio Deus está falando por meio dele – por amor ao mundo. b) Guardam silêncio, não dão publicidade à sua experiência “carismática”, para não acabar antes da hora com o ministério de Jesus (cf. Mc 14.61ss). c) Continuam discutindo entre si (por isso incluir o v. 10 na pregação), não sobre ressurreição em geral, mas sobre a do Filho do Homem. Ela pressupõe sua morte. Por ora, não conseguem conceber isso. Porém não se fechar à reflexão é crucial para um salto de qualidade na fé e na ação.
3. Reflexão
1 – Que reflexão os frequentadores de culto fazem sobre si mesmos, sobre sua vida? Será que constroem dicotomias? Ou se contentam com esquemas simplórios? Conseguem relacionar fé e vida numa dimensão histórica, planetária, sociopolítica?
A oportunidade gerada pelo texto é excelente. Subir a montanha, fazer um “retiro”, sair do contexto, da rotina, adquirir uma visão panorâmica de si e do mundo, bem como da palavra-acontecimento de Deus. O extraordinário enriquece o comum e o comunitário. O incomum divino credencia a trajetória no cotidiano permeado do divino.
A transfiguração de Jesus significa tanto a revelação da transcendência já existente agora como o antegosto da glória futura a ser universalmente revelada no fim dos tempos. No presente, temos nosso ponto de equilíbrio fora de nós mesmos, em Jesus, e na perspectiva histórica somos forasteiros neste mundo (Hb 13.14).
Há perigos: acomodar-se, construir tendas no lugar errado. Ou não construir em lugar algum. Na história do cristianismo, o primeiro risco foi maior. O lugar errado nem sempre é nas alturas. Geralmente é um reduto excludente: o lar, o domingo, a teologia “correta”, a “panelinha” cristã, mantras do jargão eclesiástico, instituições poderosas. Há também uma tensão entre a missão despojada e desalojada, itinerante, e a omissão ou inconstância que não consolida nada. Em contraposição, descer da montanha significa multiplicação. A tocha não fica na mão de poucos iluminados.
Há dificuldades de compreensão, tanto dessa dinâmica entre transcendência e imanência (dificuldade essa causada, não por último, pelo racionalismo iluminista e contra-atacada pelo fundamentalismo “ortodoxo”) como da verdade de que é preciso agir dentro da poeira e sujeira do dia-a-dia para que aconteça o projeto divino. Nas cruzes e encruzilhadas da vida, a percepção do agir de Deus é outra que nas cerimônias dominicais. Por causa dessas dificuldades é preciso dialogar em cima dos fatos, lembrar um ao outro as revelações passadas, refletir conjuntamente sobre o que Deus vai mostrando no meio das lutas.
É para isso que está sendo feita a interpelação “Ouçam-no!”. Jesus é referência, ele tem “luz própria”, luz sem nenhuma sombra, como uma lâmpada incandescente. Somos convidados a refleti-lo nos dois sentidos (de reflexão e de reflexo).
2 – Sugestão de roteiro para a pregação:
a) Leitura do texto – Mc 9.2-10.
b) Transfiguração = Jesus tem “luz própria”.
c) Fatos que nos arrancam do dia-a-dia, colocando-nos no “alto do monte”.
d) Fatos que nos tiram das alturas e fazem “cair na real”.
e) Consequências dessa dupla dinâmica. P. ex., louvor pessoal com visão histórica, planetária; percepção da presença de Deus na história: Moisés, Elias etc., antecipação da glória divina para dentro do cotidiano.
f) Tentação de ficar ali, nas alturas – resposta de Deus: “Ouçam a Jesus!”
g) Dificuldade de entender a antecipação da glória dentro da vida diária de sofrimento, a imanência sendo transparente para a transcendência.
h) Risco de não refletir adiante (p. ex., sobre o significado da “ressurreição”, v. 10).
i) Esse Jesus com luz própria continua a iluminar o caminho de seus seguidores, para que sejam luzes.
4. Imagens
Ilustrações para quê? Experiências de quê? Trata-se de desenhar “momentos” de transcendência na imanência, “janelas” em que o temporal é iluminado pelo eterno, “cenas” em que o enlevo é cortado pelo cotidiano, “abalos” existenciais que expandem o pessoal para dentro do universal e “interpelações” da transformação histórica no meio da caminhada rotineira. Rupturas da vida real, mas sem dicotomias. Complementaridade aberta para o divino. Cidadania do reino. Eis algumas tentativas:
1 – A menina portadora de deficiência mental passa por um período de surto psicótico. Medicações pouco ajudam. Parece endemoninhada. Mãe, avó, familiares angustiados. Por alguns momentos, fica lúcida. Aí canta um corinho, aprendido há anos e aparentemente esquecido: “Sou uma florzinha de Jesus…”. Consolo e força para a família. Deus está com ela.
2 – O casal assiste a um interessante e instrutivo programa na TV, talvez sobre convivência familiar, educação de filhos (coisa rara). De repente, o bebê de oito meses acorda e chora. Pede fraldas limpas, mamadeira. Os pais gostariam de continuar na frente do televisor, mas “decidem” atender a criança. Quando retornam, o programa já acabou. Mas sabem que o que fizeram por necessidade banal valeu a pena.
3 – A moça formou-se na faculdade. Já trabalhava, agora consegue um bom aumento. Decide comprar seu primeiro carro, zero km, financiado a perder de vista. Felicidade. Realização pessoal. Faz uso responsável. Durante um desses engarrafamentos gigantescos na metrópole, tem um lampejo de “consciência planetária” e dá-se conta da irracionalidade, do desperdício e da degradação ambiental que o automóvel representa. Passa a praticar alternativas mais saudáveis. Adere a um movimento de preservação ambiental.
4 – Passeatas, protestos coletivos, acampamentos representam algo como um “batismo”. Depois deles, ninguém volta a ser o que era antes. Expansão da consciência.
Percepção da força coletiva, até mesmo em aparentes derrotas. “Deus está mesmo com esse povo lutador!”
5. Subsídios para o culto
Penitência:
A realidade eclesial nos denuncia.
Cidadania acanhada,
Sensibilidade política atrofiada.
Ética inconsequente,
Testemunho profético inexistente.
Solidariedade eventual,
Sociedade consentidamente desigual.
Louvores na redoma,
Santidade sem sacrifício nem aroma. Deus
entre os pobres não é tema, Participação
em política pública, pequena.
Oração após a mensagem:
Senhor, Deus do universo e da história, ajuda-nos a te perceber, ajuda-nos a te ouvir, ajuda-nos a reconhecer tua revelação em Jesus Cristo. Para que ele nos transforme, para que ele nos envie, para que nos ajude a ficar com os pés no chão, para que ele esteja conosco nas lutas por transformação pessoal e social, na certeza da tua glória presente e vindoura! Amém.
Bibliografia
BOBSIN, Oneide. Auxílio Homilético sobre Mc 9.2-9. In: HOEFELMANN, V. e SILVA, J. M. da. Proclamar Libertação, v. 28. S. Leopoldo, 2002. p. 108-114.
POHL, Adolf. Comentário ao Evangelho de Marcos. Curitiba: Esperança, 1998.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).