Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Marcos 9.30-37
Leituras: Jeremias 11.18-20 e Tiago 3.13-4.3, 7-8a
Autora: Renato Küntzer
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/09/2012
1. Introdução
O texto de Marcos 9.30-37 está indicado como perícope de pregação para o 17º Domingo após Pentecostes. Os textos de leitura previstos são Jeremias 11.18-20 e Tiago 3.13-4.3, 7-8a. Jeremias compara sua vida profética a um cordeiro manso levado ao matadouro, pois estão conspirando contra a sua vida. Significativo é que Jeremias coloca a sua causa nas mãos de Deus, por quem foi chamado para ser profeta. Tiago retrata sua comunidade como uma comunidade dividida, em conflitos e propensa a realizar os desejos deste mundo e da natureza humana para os seus próprios prazeres. A isso ele contrapõe a prática da humildade e da sabedoria que vem do céu, que é pura, cheia de misericórdia, bondosa e amigável, que é o evangelho de Jesus Cristo.
2. Exegese
O texto em questão é o segundo anúncio da paixão no Evangelho de Marcos. O primeiro está em Marcos 8.31-9.1, e o terceiro, em Marcos 10.32-45. Todos os três anúncios têm o mesmo padrão:
I – Anúncio da paixão: 9.30-31;
II – Situação de mal-entendido: 9.32-34;
III – Instruções de Jesus: 9.35-37.
Esses anúncios fazem parte do bloco do evangelho dedicado aos discípulos (Mc 8.27-10.52). Como momento central vamos encontrar o relato da transfiguração de Jesus (9.2-10), que proclama a Jesus como o Filho de Deus, confirma o caminho e convida os discípulos a escutá-lo e segui-lo. A reação imediata de Pedro é manifestar o desejo de ficar ali (“bom é estarmos aqui”), pois isso evitaria a caminhada para Jerusalém, que será marcada pela paixão na cruz. A cena expressa o medo dos discípulos, que presenciam a transfiguração. Enquanto isso (9.14-29), os outros discípulos não haviam conseguido expulsar um espírito maligno de um menino trazido pelo pai. Jesus está chocado com a sua falta de fé: “gente sem fé”. O que melhor descreve a situação é expresso pelo grito do pai do menino: “Eu tenho fé, mas ajuda a minha falta de fé” (v. 24). O fato é usado por Jesus para a instrução dos discípulos. E aqui é que se dá o segundo anúncio da paixão.
A moldura do anúncio da paixão é formada pela tentativa de Jesus de preparar os discípulos para a paixão, enquanto eles não estão sintonizados na mensagem. Jesus “estava ensinando os discípulos e dizia a eles…”, mas os discípulos “não entendiam… e tinham medo de perguntar” (v. 31 e 32). Esse é o único versículo em que Marcos emprega o termo agnoeo (“não sei”, “sou ignorante”). E a situação dos discípulos completa-se com uma emoção frequente deles: a de “ter medo” (fobeomai). O que se percebe é que Jesus continua tentando ensiná-los acerca de sua paixão e ressurreição, e os discípulos simplesmente não entendem e reagem com medo de perguntar e esclarecer suas dúvidas.
2.1 – O segundo anúncio da paixão
“O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos homens, e eles o matarão, mas três dias depois ele ressuscitará” (v. 31a).
É a mais antiga versão dos anúncios da paixão. Há grande probabilidade de essa versão ser autêntica, vinda da boca de Jesus. Atestam isso a brevidade e a indeterminação dessa variante e a linguagem.
“O Filho do homem vai ser entregue nas mãos dos homens” é uma formulação independente, que remonta à tradição do cristianismo judeu-helenístico. Esse é o núcleo que está por trás dos anúncios da paixão. A junção desse dito independente com o anúncio da paixão e ressurreição é feita por Marcos e assim harmoniza com 8.31. Diferente de Marcos 8.31, onde a morte de Jesus é tida como necessária (dei), aqui a morte é consequência da entrega (paradídotai). Jesus compreendia a si mesmo e a sua missão a partir da expressão ho hyios tou anthropou, o Filho do homem, visto que Marcos então recebe e desenvolve uma concepção precisa a respeito do Filho do homem, que irá sofrer e ressuscitar, uma imagem relacionada com o anúncio da paixão.
“E eles o matarão”: Jesus previu e conscientemente enveredou pelas vias da paixão, pois o andamento de suas atividades fazia-o contar com uma morte violenta. Marcos usa o termo vago e indeterminado “o matarão” (apoteknousin), quando outras tradições utilizam o verbo “crucificar” (staurosai), mais preciso e possivelmente atualizado pelo evento histórico. Jesus esperou e anunciou a sua paixão e morte, pois, continuamente ameaçado, contou com a sorte dos profetas.
“Mas três dias depois ressuscitará”: a expressão “três dias” (treis hemeras) acusa sinais de considerável antiguidade. Aparece com frequência, além dos textos do anúncio da paixão, e em nenhuma vez a sentença faz referência aos três dias da Sexta-feira à Páscoa. A expressão, saindo da boca de Jesus, é um costume semita que dá a ideia de “vários” e “alguns”, de um tempo de intervalo indeterminado não muito longo, um “em breve”. Morto, em breve ressuscitará. Já a mesma expressão e o dito formulado em retrospectiva a partir dos acontecimentos históricos da paixão podem expressar exatamente o período de três dias entre a Sexta-feira da Paixão e o Domingo de Páscoa.
“Não entendiam… tinham medo de perguntar.” Essa composição do evangelista demonstra a postura típica da falta de entendimento e medo dos discípulos a respeito da paixão. Repete-se em Marcos 10.32, em uma situação similar. Essa formulação, própria de Marcos, traz à tona a situação dos discípulos que não entendem e têm medo de perguntar.
2.2 – A situação de mal-entendido
Depois do segundo anúncio da paixão, segue um acontecimento que reflete a falta de entendimento dos discípulos. O tema da discussão pelo caminho é importante para o evangelista, o que delata sua atividade redacional. A discussão dos discípulos dá-se sobre qual deles era o mais importante (meidson), discussão essa que tem um paralelo em Marcos 10.35ss. A discussão dos discípulos no caminho mostra o quanto o tema afeta a relação entre eles e reflete, provavelmente, um problema maior presente na vida da comunidade para a qual Marcos dirige o seu evangelho. O dito de Jesus acerca da verdadeira grandeza introduz as instruções.
Quanto às instruções de Jesus, há aqui uma perícope formada por duas pequenas cenas (v. 35 e v. 36-37), cada qual culminando com uma frase instrutiva de Jesus. Ambas as cenas, individualmente, são caracterizadas por sua brevidade. Abre a sessão de instruções aos discípulos.
“Se alguém quer ser o primeiro, deve ficar em último lugar e servir a todos” (v. 35). O dito é um paralelismo sintético e, visto que tal dito foi transmitido em diversas versões, deve-se considerá-lo anterior à redação de Marcos. O tema gerador da controvérsia (quem era o mais importante) não é muito distinto do problema encontrado em Marcos 10.35ss e da própria frase de Jesus, orientando que o discipulado aconteça no serviço a todos (10.43-44).
A cena com a criança (v. 36, 37) é novamente encontrada em Marcos 10.13-16. Há inclusive gestos idênticos no versículo 36 e 10.16 (segurar e abraçar). O gesto de Jesus em segurar, pôr no meio e abraçar uma criança motiva a orientação aos discípulos, que segue no v. 37.
O gesto de “receber uma criança” dá a entender que não é um gesto corriqueiro, ou seja, supõe uma prática de marginalização e uma situação de inferioridade das crianças. O mesmo se repete em Marcos 10.14, quando o gesto de receber as crianças é comparado ao acesso ao reino de Deus. Já em nosso texto, o seguidor que receber uma criança em situação de inferioridade na sociedade estará recebendo o próprio Jesus e o próprio Deus.
3. Meditação
Marcos expõe o contraste entre a revelação crescente de Jesus, associada aos anúncios da paixão, e a crescente incompreensão que isso provoca dentro da ótica humana. Marcos tem muito interesse em sublinhar isso. Essa fase da revelação de Jesus torna-se francamente escandalosa, pois está associada à cruz. No contexto maior da moldura que cerca os três anúncios da paixão, as curas dos cegos (Mc 8.22ss e 10.46ss) têm um significado claramente simbólico. Se Deus não nos abrir os olhos, se não transformar a maneira dos discípulos de ver as coisas, eles não serão capazes de entender a cruz do Filho do homem e muito menos o que significa seguir Jesus no caminho da cruz.
Cada anúncio é sempre seguido de um acontecimento que revela o quanto os discípulos são incapazes de assimilar o que Jesus revela sobre si mesmo e sobre seu futuro. Jesus deixa claro o escândalo da paixão, que consiste na entrega do Filho do homem ao poder brutal dos homens. Há uma consciência clara da oposição e da perseguição que Jesus vinha sofrendo por parte das autoridades políticas e religiosas desde o início das atividades de anúncio público do evangelho. A reação dos discípulos de não entender e ter medo em perguntar caracteriza também o medo em relação ao sofrimento prestes a ocorrer. Dá a entender que preferiam não ter escutado a revelação de Jesus e tampouco entender as consequências para o seguimento a Jesus.
Marcos levanta a crítica a uma cristologia triunfalista, como a que encontramos nas esperanças messiânicas da época de Jesus. Viam no Messias o triunfador que destruiria os inimigos do povo com grande poder. Não basta somente que Jesus lhes abra os olhos para poder entendê-lo quando se revela como o crucificado, mas é necessário, quando começa o caminho da paixão, que os discípulos estejam dispostos a segui-lo pelo mesmo caminho da cruz. É necessário abalar toda e qualquer segurança ou autossuficiência presente nos discípulos e na comunidade para a qual Marcos escreve o evangelho. A cruz do crucificado é o centro de toda a fé cristã, e a sua sombra há de projetar-se sobre todo o seguimento a Jesus, que deve ser também depois da Páscoa um seguimento no caminho da cruz. Não é o caminho de uma comunidade triunfalista que identifica o serviço e o acolhimento de uma comunidade. Só o caminho da cruz se identifica pelo serviço e acolhimento a todos.
Há determinadas concepções sobre Jesus, práticas que geram conflitos entre os discípulos e nas comunidades, que merecem uma censura ou um puxão de orelhas. Isso está tematizado nas duas pequenas cenas que envolvem conflitos. Marcos não pretende desacreditar os discípulos, mas afirmar que o mesmo pode ocorrer a qualquer pessoa que ocupe o lugar que tem dentro da comunidade. Exatamente no caminho da paixão discutiam entre si quem era o maior. Não faz referência ao que tinham em mente na discussão sobre o que significa ser o maior. Mas é uma discussão que se encerra com uma frase de Jesus (v. 35b). O ser maior é interpretado como ser o primeiro. E quem quiser ser o primeiro deve ficar em último lugar e servir a todos. Chama a atenção que deve ser o servidor de todos. O ato de segurar uma criança, colocá-la no meio, abraçando-a, são gestos contundentes de amor que se deve adotar em comunidade frente aos pequenos e pouco considerados. Necessita ser uma prática da comunidade em nome de Jesus (“em meu nome”), voltando os interesses àqueles e àquelas em situação de risco social. Porque Jesus se identifica com os pequenos, a comunidade também necessita se identificar com os mesmos.
4. Imagens para a prédica
Seguir Jesus, vivenciar o discipulado e assim permanecer em Jesus (seguir os seus passos, a sua prática, deixar-se orientar, deixar-se fazer a cabeça) é uma decisão pessoal, mas que implica uma prática comunitária. Quem não conhece a expressão “uma mão lava a outra”? Isso funciona em nossa sociedade. E funciona mal. Pois assimilamos a ideia das segundas intenções, e a lei da troca de favores mata a gratuidade e o amor ao próximo. Todo o pensar, desejar e agir torna-se calculista. Inclusive em relação a Deus. De tudo esperamos uma recompensa; enfim, a gente merece. Deus derruba esse sistema de recompensa e de troca de favores. Deus desce livremente. Por amor se antecipa e demonstra seu amor por nós. Deus não retribui. É doador que se antecipa. Deus critica severamente esse modelo de sociedade e não compartilha do uso de seu nome para justificar o sucesso de uns e o azar e a desgraça de grande parcela de filhos e filhas seus. Antes nos chama à responsabilidade pela prática da justiça.
Se, porém, hoje não se ensina outra coisa por meio da opinião de pessoas senão méritos, recompensas, vantagens pessoais, não tenham medo de repetir à luz do dia e de anunciar abertamente a boa-nova do evangelho de Jesus Cristo, que Deus tornou conhecida.
Contribuem para o assunto essas duas citações de Lutero, retiradas do livro da “Liberdade Cristã”: “Por isso a pessoa deve, em todas as suas obras, estar orientada e visar somente isto: servir a outros e ser-lhe útil em tudo o que faz, nada tendo em vista senão a necessidade e a vantagem do próximo. Essa é a verdadeira vida cristã, aqui de fato a fé atua pelo amor, com a qual serve ao outro gratuita e espontaneamente, de modo que não calcula com gratidão e ingratidão, lucro ou dano”.
“Eis que em Cristo meu Deus deu a mim, pessoa indigna e condenada, sem nenhum mérito, por mera e gratuita misericórdia, todas as riquezas da justiça e da salvação, de sorte que, além disso, não necessito absolutamente de mais nada a não ser a fé que crê que as coisas são de fato assim. Assim me porei à disposição de meu próximo como um Cristo, do mesmo modo como Cristo se ofereceu a mim, nada me propondo a fazer nesta vida a não ser o que vejo ser necessário, vantajoso e salutar a meu próximo, visto que pela fé tenho abundância de todos os bens em Cristo.”
Necessitamos disciplina e boa vontade para deixar Deus fazer a nossa cabeça, a fim de realizar o seu serviço, pois por nossa própria iniciativa e desejo a gente gostaria de exercer poder, influência e conseguir vantagens em relação ao próximo. No entanto, somos orientados a fazer as coisas levando em conta, primeiramente, a vantagem do outro.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
– Senhor, pedimos perdão por todas as vezes que negligenciamos a tua justiça, quando na condição de teus filhos e filhas acabamos reproduzindo gestos e atitudes de egoísmo e exclusão, que se enraizaram em nossa sociedade de consumo e competição. Por isso pedimos: Perdão, Senhor, perdão.
– Pedimos perdão por todas as vezes em que em nossas relações pessoais temos dificultado um relacionamento saudável e transparente com as pessoas que nos cercam na família, em nosso ambiente de trabalho, em nosso lazer. Ali temos sido demasiadamente egoístas, vaidosos, orgulhosos, irritados. Por isso pedimos: Perdão, Senhor, perdão.
– Pedimos perdão pelas vezes que fazemos uso de repetidas e fúteis práticas construídas sobre o poder e o domínio de uns sobre os outros na imposição de vontades pessoais, negligenciando o testemunho, a missão e o serviço comunitário. Por isso pedimos: Perdão, Senhor, perdão.
Oração do dia:
Senhor Deus, misericordioso e doador da vida! Anima-nos a revisar com profundidade a nossa vida, nossas atitudes, nossas comodidades. Permita superar o que nos afasta das pessoas, da comunidade, de Deus. Permite descobrirmos novos rumos que nos aproximem das pessoas e de suas necessidades. Permite que sejamos constantemente corajosos conosco mesmos, quando nos dermos conta de nossa fragilidade e quando a tua palavra nos impregnar com a responsabilidade pela vida. Amém.
Oração de intercessão:
Intercedemos:
– Por tua igreja, diante da tarefa do testemunho público da causa de Jesus, que o leva a enfrentar todas as crises e adversidades a caminho de Jerusalém, onde haverá de sofrer o peso da cruz. Quantas não são as cruzes colocadas no caminho da igreja! Não permita que desviemos delas, mas saibamos carregá-las em proximidade e comunhão na causa de todos os irmãos e irmãs solitários, sofridos e excluídos.
– Pelas autoridades públicas, para que exerçam o seu serviço em favor do bem comum e das necessidades urgentes de crianças, adolescentes e jovens em situação de risco social. Que saibam dar prioridade à destinação dos recursos públicos em favor da educação, da saúde preventiva e de programas de geração de renda.
– Por todas as pessoas cujas vidas estão fragilizadas por enfermidades, fome, violência, falta de esperança. Na superação dessas fragilidades, façam-se presentes os sinais do reino de Deus, que se concretizam pelo apoio e proximidade de pessoas comprometidas com a mesma causa.
Bibliografia
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Edições Paulinas, 1977. p. 425-447.
GNILKA, Joachim. El Evangelio según San Marcos. Salamanca: Ediciones Sígueme, 2001.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).