Beabá do C:
Casa – Criança – Caminho – Conversa – Cristo – Cruz – Conversão
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: Marcos 9.30-37
Leituras: Jeremias 11.18-20 e Tiago 3.13 – 4.3,7-8a
Autoria: Cristina Scherer
Data Litúrgica: 17° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/09/2021
1. Introdução
O texto de Marcos 9.30-37 demonstra movimento, reflexão, ação. Jesus está a caminho de Jerusalém. Sabe o que está por vir. Nesse caminho, faz pausas, conversa, ensina, acolhe, repreende, convida.
Jesus apresenta aos discípulos sua proposta de ação para o discipulado, proposta de amor, acolhida, humildade, serviço e prática da não violência. Faz isso usando como exemplo/metáfora a criança. A prática da opressão que permeia as relações humanas precisa ser erradicada para nascer o novo, baseado na paz, no amor e na reconciliação.
No caminho, Jesus faz uma pausa e volta-se ao espaço geográfico da casa, local de aconchegar-se e partilhar afetos para que a viagem progressiva em direção ao sul e à cruz prossiga. A casa e sua dinâmica anda hoje nos instigam, desafiam e transformam. Voltemo-nos para o texto bíblico que nos convida ao interior de nossas casas para nesse espaço aprender, de maneira especial com as crianças, que são trazidas ao centro como exemplo de aceitação, amorosidade, acolhida, humildade e paz.
2. Exegese
9.30-32 – Missão de Jesus – incompreensão dos discípulos
Marcos 9.30-37 relata o segundo anúncio da paixão de Jesus Cristo. O Evangelho de Marcos apresenta três anúncios da paixão, o que mostra a importância desse tema para a comunidade primitiva.
Essa perícope está situada na Galileia (cf. 9.30-32). É ali que ocorre uma seção de ensinamentos com duas partes: crianças e o tema do primeiro/último.
Marcos enfatiza duas vezes que Jesus será morto. Aqui é reintroduzido o termo jurídico-político “entregue à custódia” (paradidōmi), que irá aparecer na narrativa da sua prisão, julgamento e execução.
Os discípulos não compreendem esse dito e fazem silêncio, não querendo interrogar Jesus. Marcos relaciona o insucesso em compreender e aceitar o destino político de Jesus e suas consequências ao fato de que os discípulos ainda estão presos ao esquema deste mundo (cf. 8.33).
9.33 – Caminho – Cafarnaum – casa
Essa parada na viagem é significativa, pois aqui acontece a instrução sobre assuntos internos de poder e disciplina. Cafarnaum é mencionada como sendo a “casa” de Jesus, o centro das atividades na Galileia: Mateus 4.13 afirma que Jesus havia estabelecido sua residência em Cafarnaum, que em 9.1 é chamada “a sua cidade”. Jesus deu início ao seu ministério público ensinando na sinagoga de Cafarnaum aos sábados (Mc 1.21; Lc 4.31).
9.34 – Silêncio – discussão
Em Cafarnaum, quando Jesus já está “em casa”, ele pergunta a seus discípulos sobre o que discutiam no caminho. Eles calam. Esse silêncio dos discípulos pode ser interpretado como um sentimento de vergonha diante do que vinham conversando. No Evangelho de Marcos e no texto paralelo (Lc 9.46) não fica claro que tipo de grandeza eles discutiam e reivindicavam para si. Mateus afirma que eles perguntaram a Jesus sobre: Quem é o maior no reino dos céus? (18.1).
É no espaço simbólico da casa, em Cafarnaum, que Jesus sente-se à vontade para falar e ensinar e desmascara o desejo dos discípulos por poder e a disputa por obter os melhores lugares. Os discípulos são “apanhados” discutindo para saber quem era o maior entre eles “no caminho” (9.33b; 34a).
A discussão do grupo pelo caminho afeta a relação de igualdade e de amor recíproco entre eles, denotando problemas internos na comunidade. Parece haver a compreensão no grupo de que o caminho para Jerusalém é o caminho para o lugar em que se dará a revelação messiânica. Os discípulos demonstram nada compreender: estão equivocados sobre a pessoa de Jesus e sobre o movimento dele, pois não sabem aonde vai dar o caminho que estão trilhando.
9.35 – Primeiro/último; maior/menor
Como reação diante do inusitado ou já previsto, Jesus reage de maneira familiar, chamando os doze para perto de si (cf. 3.14; 6.7; 10.32; 14.17) e lhes dirige uma pergunta. Em seguida senta-se, como sinal de quem deseja ensinar algo importante sobre a verdadeira grandeza do discipulado! (v. 35).
Marcos apresenta Jesus como um mestre que, em sua sabedoria, sabe aproveitar oportunidades adversas, como uma discussão entre o discipulado para ensinar. Jesus ensina com autoridade, e não como os escribas (1.22).
Aqui Jesus introduz os princípios fundamentais de sua proposta. Nesse versículo Jesus ensina sobre a condição necessária para quem quiser ser o maior: Quem quer ser o primeiro tem que ser o último e servidor (diakonos) de todos. Marcos radicaliza com um duplo “todos” inserido no texto original: “Seja o último de todos e aquele que serve a todos”. Jesus, o servidor de todas as pessoas, recorda a importância de se fazer algo pelos demais. Em 9.35b é introduzido o tema da liderança da pessoa que serve, sendo aqui o ápice do discurso de Jesus.
9.36s – Conversão – ser como criança
Para ilustrar esse ensinamento, Jesus recorre ao que tem à sua frente, uma criança. Elas representavam, na época de Jesus, o ponto mais baixo da escala social e econômica em termos de status e direitos. Elas não eram consideradas pessoas, e sim não entidades. O gesto de Jesus é radical e surpreendente. Utiliza uma criança como modelo de seu projeto e anúncio. Ele faz isso uma segunda vez na sequência, em 10.13-16.
Jesus coloca as crianças “no meio deles”, retira as crianças da margem e coloca no centro da nova comunidade e do seu projeto de Reino baseado no serviço, na humildade e acolhida.
9.37 – Receber uma criança é receber Jesus
O Mestre desafia seus discípulos a receber (dechetai) uma criança em seu nome e em nome de quem o enviou ao mundo. Jesus está comprometido com a abrangência e inclusividade, enquanto seus discípulos agem e pensam com categorias de exclusão. Jesus é veemente e transforma a divergência aparente em desafio divisório sobre a participação no reino (10.15). Apesar da oposição dos discípulos, Jesus toma as crianças em seus braços. Em 10.16 ele toca nas crianças e as abençoa (kateulogeo), termo esse que aparece somente nesse trecho de Marcos. Agir de maneira inclusiva e amorosa é evidenciar que quem assim faz tem Jesus como o Messias e o serve como tal.
3. Meditação
Jesus e seus discípulos atravessavam a Galileia. Ele está indo a caminho de Jerusalém, onde o aguarda a cruz. No caminho, eles fazem uma parada na casa, Cafarnaum, espaço de aconchego, acolhida, ensino, desafios.
Os discípulos continuam sem entender o anúncio que Jesus faz de sua morte e ressurreição. Mesmo sem entender, não perguntam nada ao Mestre, talvez por não se sentirem à vontade, por respeito, por medo, por falta de entendimento, por inibição. Não temos a resposta correta. O fato é que somente quando chegam a Cafarnaum e se sentem em casa, é que entre eles discutem e abrem seus corações. Na casa, lugar de acolhida e bem-estar, há espaço para abrir o coração, falar do que passa na alma… Jesus perguntou aos discípulos: Sobre o que vocês estavam discutindo no caminho?
O que temos partilhado/conversado, tido como desafio para nossas vidas e horizontes em nossos lares e casas? Qual valor temos dado ao “ficar em casa”. Qual a diferença quando esse “estar em casa” é voluntário ou forçado, como no tempo da pandemia? A casa tem sido, de fato, espaço seguro de acolhida, aconchego, de ficar à vontade para falar e aprender, ensinar e ouvir?
Para muitas crianças e mulheres, a casa tem sido espaço de violência, agressão, pavor, medo, insegurança. Aqui seria importante aprofundar índices de violências e abusos sexuais contra crianças e acidentes domésticos que ocorrem no âmbito da família, por exploração, dominação, opressão, violências, descuido, desamparo, abandono, displicência etc. Sugiro aprofundar esse ponto com a comunidade, abordando como Jesus sentia-se à vontade em sua casa. Como nós nos sentimos hoje em nossas casas, qual o valor que damos a esse espaço necessário e importante para nossa vida de fé? Na casa nos encontramos com quem somos de verdade, sem máscaras, sem subterfúgios. Ali somos quem somos, mas também podemos nos abrir para mudanças, aprendizados e novos paradigmas na vida, tal qual os discípulos na relação com Jesus desde o espaço da casa.
A discussão dos discípulos no caminho sobre quem deles era o maior manifesta que nada tinham compreendido das palavras de Jesus. Na relação entre eles continuam na busca do domínio e do poder. Lembremos que naquela cultura o status de uma pessoa era muito importante. Jesus os conhece e por isso explica, uma vez mais, qual é sua proposta de vida e do reino de Deus.
O detalhe de Marcos, ao nos dizer que depois de estar na casa Jesus se sentou e chamou os doze, nos permite imaginar a cena de um encontro privado com seus mais próximos. Sentar-se para ensinar, para demonstrar humildade, para fazer uma pausa no caminho e convidar à reflexão e à transformação de vida… Quais têm sido esses momentos em nossa caminhada desde o espaço da casa?
Jesus é objetivo e amoroso em seu ensino: Se alguém quer ser o primeiro, deverá ser o último, e ser aquele que serve a todos. O caminho para ser o maior é oposto ao que pensavam os discípulos de sua época!
Para entender a segunda sentença, temos que ter presente que na época de Jesus as crianças eram tidas como criaturas insignificantes, sem condições de participar da vida social e religiosa. Elas estavam entre os marginalizados da sociedade. O Antigo Testamento dizia que era essencial na vida de cada judeu acolher as pessoas marginalizadas, a saber, os órfãos, as viúvas e os estrangeiros. A imagem de Jesus abraçando a criança não é só um gesto terno, porque as palavras que Jesus pronuncia apresentam uma mensagem diferente. Ele traz a criança para o centro do grupo e a abraça. Ao identificar-se com a criança, com os pequenos da sociedade, Jesus anima a comunidade cristã a acolher essas pessoas em seu nome. A novidade de Jesus e de sua comunidade está justamente em servir, em primeiro lugar, aqueles que a sociedade, por diferentes motivos, despreza e deixa de lado.
Jesus é o menor de todos, pois se fez servo em sentido pleno, até dar sua própria vida. Ser discípulo, discípula é acolher Jesus como o Messias servidor que enfrenta a morte para comunicar vida para todos. É aceitar que o caminho do discípulo e da discípula é como o caminho de seu Mestre. Seus discípulos “deverão” passar pela cruz, para chegar à ressurreição, pessoal e comunitária.
Aqui vale refletir na íntegra o comentário sobre os v. 36-37.
Jesus acrescenta algo novo à cena quando, num gesto simbólico-pedagógico, chama uma criança, coloca-a no meio dos discípulos e “toma-a entre os braços”, “abraçando-a”. A referência a este gesto talvez sugira um ponto de contato com a cena narrada em 10,13-16, onde Jesus abraça e abençoa crianças. O abraço é gesto de apreço, carinho, expressão de amor. Ao abraçar as crianças, podemos perceber em Jesus um modo de agir diferente da cultura do seu tempo. Na antiguidade, a postura frente à criança era neutra ou negativa, especialmente se se tratava de meninas. O mundo grego via na criança, quase sempre, o inacabado ou infantil. Na cultura judaica, a criança é tida como travessa e imprudente, “sem juízo” (Sab 12,24). O amor de Jesus às crianças, expresso no gesto de acolhimento, mostra claramente a postura que deve existir na comunidade frente aos pequeninos e aos pouco considerados. Jesus se identifica de tal modo com estes pequenos, que se põe no seu lugar: “Aquele que receber uma destas crianças por causa do meu nome, a mim recebe” (SOARES, 2012, p. 351).
Por que essa ênfase de Jesus em tomar as crianças como exemplos? O que ele quer dizer/ensinar com isso?
Ched Myers aprofunda essa questão e afirma que a criança é vítima, é excluída da sociedade, assim como os impuros, pobres e gentios, que são representações da marginalização social real. Esse autor propõe que é preciso cortar as estruturas e práticas da violência pelas raízes, a começar pela família. É dentro da família que se evidencia amor ou rejeição, e, segundo as disciplinas psicológicas modernas, a unidade familiar é um sistema social, o que podemos denominar de “sistemas de família”, e dentro desse sistema a criança é sempre a primeira vítima das práticas de violência e de dominação.
A filósofa e psicanalista Alice Miller afirma “ser possível para nós captarmos algum dia a extensão da solidão e do isolamento a que estivemos expostos como crianças e, em consequência disto, intrapsiquicamente como adultos” (Apud MYERS, 1992, p. 325). Ela afirma que crianças são candidatas para exploração pela sua dependência material e emocional de adultos, sendo que elas não têm percepção crítica de manipulações feitas por adultos nem podem reagir contra elas. Essas manipulações não são checadas pelo sistema social mais amplo, pois a família é considerada “domínio privado”.
Assim, a sujeição da criança no sistema familiar é o sinal da socialização dentro das estruturas sociopolíticas de dominação mais ampla. Todo adulto que for humilhado quando criança não deixará de reproduzir essa humilhação de forma inconsciente. Do ponto de vista psíquico e social, o adulto introjetará e projetará o sofrimento e a indignação profunda que acumulou em si desde a infância, culminando em depressão, desespero, opressão e reprodução da violência intrapessoal.
Qual então é o caminho? É passar da raiva para a reconciliação, sem idealizar a infância, essa é a transformação da estrutura psíquica que somos convidados a realizar em idade adulta. Algo que pode necessitar da ajuda de outras pessoas/profissionais em nossa vida.
A libertação que Jesus Cristo deseja promover em nossas vidas é um convite que gera acesso e aceitação, como nos apresenta Marcos 9.37. “A criança não é mera simbologia no evangelho, ela é pessoa. Lidar com esta pessoa equivale a lidar com nosso próprio passado reprimido, tanto as raízes da violência quanto futuro transformado, nosso e de nossa descendência” (MYERS, 1992, p. 328), cientes de que se não recebermos o reino de Deus como uma criança, jamais entraremos nele (cf. Mc 10.15).
4. Imagem para a prédica
Os adultos exigem razões. Perguntam-se sobre as razões de sua vida, sobre sua missão na terra, e outras coisas parecidas. Criança nunca faz perguntas assim. Brincar com água, brincar de pique, empinar pipa, brincar de casinha: essas alegrias pequenas bastam às crianças. São razões suficientes para viver. Às crianças basta pouco. Por isso são felizes. […] As crianças vivem no mundo dos sentidos. Para elas, o real é aquilo que entra pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz, pela boca, pela pele. Elas são os seus corpos, inteiramente… entidades paradisíacas (ALVES, 2000, p. 46).
Você e sua comunidade conhecem o Programa “Missão Criança” da IECLB? Ele visa cumprir com a tarefa missionária de batizar, educar na fé cristã e promover a vivência comunitária da fé. É uma ótima oportunidade para colocar e abraçar as crianças no centro da vida da comunidade e tê-las como exemplo, tal qual Jesus Cristo ensinou.
Converse com a comunidade sobre essa proposta e coloque-a em prática! Será uma experiência transformadora e libertadora.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados
“Confesso-te, Senhor, hoje não foi um dia bom. Aquela menina vendendo flores… Aquela mãe sem dinheiro para o remédio do filho… Aquele telefonema que atrapalhou meu trabalho… A notícia do desemprego do meu amigo… Confesso-te, Senhor, minha limitação, minha indignação diante das coisas que eu não consigo mudar e ao mesmo tempo minha indiferença para com aquelas coisas que posso mudar. Acolhe-me, Senhor, e transforma meu jeito de viver!” (Inês de França Bento)
Hinos
Veja opções de hinos no LCI: 533 a 554.
Canção: Direito de ser criança
Eu quero um lugar onde eu possa brincar.
Eu quero o sorriso de quem sabe amar.
Eu quero um pai que abrace bem forte.
Eu quero um beijo e um abraço de mãe (bis).
Refrão: Eu quero o direito de ser criança,
de ser esperança de um mundo melhor.
Eu crescer como gente.
Eu quero um mundo diferente.
Será que eu posso contar com você ! (3x).
Eu quero meus passos marcando esse chão.
Eu quero o direito de ter o meu pão.
Eu quero uma mão que me mostre o caminho.
Eu quero a vida, eu só quero o amor (bis).
Eu quero os homens unindo as mãos.
Eu quero um mundo mais justo e irmão.
Eu quero os jovens vivendo a esperança.
Eu quero as crianças cantando assim (bis).
Bibliografia
ALVES, Rubem. Culto Arte: Celebrando a vida – tempo comum. Petrópolis: Vozes, 2000.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.
SOARES, Armando Gameleira; CORREIA JÚNIO, João Luiz; OLIVA, José Raimundo. Comentário do Evangelho de Marcos. São Paulo: Fonte Editorial, 2012
Dicas de leitura para aprofundar textos bíblicos sobre crianças:
A Bíblia e as crianças – Revista Ultimato. Disponível em: .
RAMOS, Luiz Carlos. A criança da Bíblia. Disponível em: .
KLEIN, Remí. A criança, a Bíblia e a história. Protestantismo em Revista, São Leopoldo: EST.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).