Do sal e da paz mútua
Proclamar Libertação – Volume 39
Prédica: Marcos 9.38-50
Leituras: Números 11.4-6, 10-16, 24-29 e Tiago 5.13-20
Autor: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/09/2015
1. Introdução
O evangelho para este domingo e os textos de leitura são estímulos à prática da fé e a uma convivência pacífica na comunidade de fé que deseja seguir Jesus hoje, procurando viver e praticar o perdão, a oração e a diaconia mútua.
O texto de Números relata a murmuração e as queixas do povo de Israel no deserto contra o Deus que o libertara das cadeias da escravidão no Egito. Ele narra como Deus e Moisés reagem ao povo, que lembra com saudades das panelas do Egito diante da fome no deserto da liberdade. Moisés, encurralado entre Deus e o povo, sente o peso da responsabilidade e prefere morrer. Deus não o deixa desistir, orienta a escolha de setenta anciãos para seus auxiliares, que também profetizam. No meio do povo levantaram-se dois outros homens, que começaram a profetizar. Josué, colaborador de Moisés, protestou e pede que Moisés os proíba. A resposta de Moisés questiona qualquer ortodoxia centralizadora: Tens tu ciúmes por mim? Oxalá todo o povo do Senhor fosse profeta, que o Senhor lhes desse o seu Espírito (v. 29).
O texto de Tiago 5 é mais conhecido. Aponta para a diaconia do cuidado, que caracteriza a comunidade cristã desde os primórdios. Seja na doença ou na alegria, a comunidade está sempre atenta a seus irmãos e irmãs. Ela ora por quem sofre, unge com óleo, fortalece a fé que salva e levanta as pessoas. Essa mutualidade da fé expressa-se numa convivência cuidadora, verdadeiramente diaconal. É caminho de justiça, o que demonstra que, na concepção bíblica, a justiça ultrapassa a letra da lei. Ela se estende a cada pessoa em suas necessidades concretas. É experiência de libertação integral, de corpo e alma, da pessoa toda.
Esses textos servem como moldura para a pregação deste domingo, que se baseia no Evangelho de Marcos 9.38-50. Marcos é o primeiro dos evangelhos sinóticos. Serviu de base para os dois outros: Mateus e Lucas. Tudo indica que foi redigido por uma equipe de comunidade cristã gentílica, possivelmente ao norte da Palestina, fronteira com a Síria, em torno dos anos de 60-70 d.C., finalmente atribuída a Marcos, discípulo de Pedro. Essa comunidade reuniu na narrativa de Jesus sua vivência alternativa no seio de uma sociedade patriarcal. A forma literária é inusitada no mundo antigo: não se trata apenas de um relato do que “Jesus fez, foi e disse”, mas o que “esse Jesus e sua práxis significavam para essa(s) comunidade(s), décadas depois, na sua vivência da fé, da esperança e do amor” (Richter Reimer, p. 29), num tempo muito difícil e hostil (perseguição).
O Jesus de Marcos questiona a sociedade patriarcal, o exercício do poder hierárquico, a prevalência masculina. Ele se manifesta às mulheres e abre um espaço inédito para o seu protagonismo. Mas não só mulheres, também crianças e artesãos fazem parte de seu grupo e acompanham seu ministério profético.
Os estudos sobre a redação do Evangelho de Marcos mostram que sua composição reúne materiais de fontes diversas. Ivoni Richter Reimer informa que havia a narrativa da Paixão, o evangelho da cruz, como a fonte mais importante. Depois temos a fonte dos sinais (milagres, curas e exorcismos praticados por Jesus), a fonte das parábolas, uma fonte de ditos e controvérsias de Jesus, uma fonte apocalíptica e outras com dados biográficos de Jesus e seu grupo. Importante é nos darmos conta de que o evangelho é construído a partir da paixão, morte, cruz e ressurreição de Jesus, para então remontar ao seu batismo no Jordão por meio de João, a descida do Espírito, a tentação, o início do ministério na Galileia dos gentios, a práxis e o anúncio da proximidade do reino de Deus e do seu evangelho, até sua rejeição pelas autoridades judaicas, sua morte de cruz em Jerusalém, fora dos muros, e a ressurreição que vai ser vivenciada novamente na Galileia, testemunhada primeiramente pelas mulheres que o seguiram desde o início até o fim (15.47).
Uma pergunta é central em Marcos: Quem é Jesus? A resposta decide sobre a fé que professamos. No evangelho, Jesus recebe muitos títulos: Filho de Deus, Filho do homem, Messias, Senhor, Filho de Davi, Santo de Deus, Profeta, Mestre, Pastor, Nazareno. Cada título destaca uma perspectiva da interpretação da comunidade sobre o significado de Jesus para sua vivência de fé. O que interessa aqui é reafirmar que a resposta não pode jamais ser apenas retórica. Para a comunidade de Marcos, a resposta verdadeira implica o seguimento de Jesus e a prática de seu evangelho, da boa notícia que ele trouxe e pela qual morreu e ressuscitou: a prática do amor e da compaixão de Deus, que perdoa, salva, liberta.
2. O texto, o contexto, a mensagem
O Evangelho de Marcos tem algumas características próprias. Depois da preparação ao ministério de Jesus (1.1-13), ele pode ser dividido em duas grandes partes: a) ministério na Galileia (1.14-21), local da revelação de sua messianidade; b) Jesus a caminho e em Jerusalém (8.22-16.8), local de sua rejeição e morte na cruz, embora fora das portas. O acréscimo conclusivo corresponde ao testemunho da comunidade seguidora de Jesus (16.9-20). Marcos 9.38-50 está situado na parte em que Jesus caminha para Jerusalém após o primeiro anúncio de sua paixão. Nessa parte, temos um conjunto de ditos de Jesus que têm a finalidade de abrir os olhos dos discípulos, que custam a entender sua prática e mensagem. Pouco antes dessa perícope, Jesus ensina que decisivo no seguimento é a disposição de servir (9.33-37). Nesse trecho, há uma informação importante: quando Jesus desmascara a mentalidade competitiva em seu grupo, ele acolhe uma criança em seus braços. Ivoni Richter Reimer informa que essa é uma criança escrava (paidion), sujeita a maus-tratos e abusos de toda ordem; enquanto a criança que vivia com pai e mãe é normalmente nominada pela palavra teknon. Quer dizer, o gesto de Jesus não apenas sugere as crianças em geral como sinal da presença do reino de Deus, mas justamente as crianças mais exploradas e empobrecidas.
Na perícope 9.39-50, encontramos instruções radicais de Jesus para o discipulado de serviço. E ela começa com uma exortação à tolerância. Assim como acontecera com Moisés, também os discípulos ficam incomodados que “outros” que não “seguem conosco” realizam exorcismos em nome de Jesus e, ao que parece, com sucesso. Jesus responde de modo muito claro: “Não o proíbam” (v. 39). Revela aí uma abertura para com as pessoas que, mesmo crendo nele e fazendo o bem a outros, não o seguem estritamente ao não fazer parte do seu grupo mais restrito. Há aí uma polêmica certamente já presente na comunidade de Marcos e no seu entorno, que deve ter motivado a seleção dessa passagem do ministério de Jesus. Quem não é contra nós é por nós (v. 40), a própria formulação inclui as comunidades contemporâneas que receberam esse evangelho. Há que meditar sobre esse ensino de Jesus, pois ele parece ainda muito atual em nossa realidade religiosa brasileira.
Na sequência, Jesus continua sua exortação, radicalizando ainda mais seu ensinamento. Ele insiste que no seu discipulado não se deve escandalizar ninguém, especialmente a gente mais humilde, aquela que crê em Jesus (v. 42). Escandalizar é “ser pedra de tropeço” para outra pessoa, é “fazer pecar”, “desviar”. Jesus condena qualquer forma de praticar escândalo porque significa a possibilidade de desviar da graça de Deus. E as metáforas que usa são duras: é melhor entrar no reino de Deus maneta, perneta ou com um olho só do que sofrer no inferno (geena), o lugar fora de Jerusalém onde se depositavam o lixo, corpos moribundos ou abortados (Richter Reimer, p. 157). Conclusão: é melhor perder um órgão do que arder nesse terrível lixão (cf. a imagem de um lixão no Brasil no filme Lixo extraordinário na internet).
Nesse lugar tenebroso, o fogo não apaga nem o verme morre. Há imagem mais terrível do que essa? Ela foi muito explorada na história do inferno da literatura ocidental. Mas aqui se deveria recuperar a tradição de Jesus mais uma vez: é dos pequeninos que se trata, é das pessoas simples que nele creem que devemos falar. São essas pessoas que não podemos escandalizar.
Por fim, a perícope traz mais uma metáfora importante: a figura do sal. A intenção em todo o trecho foi contradizer a discussão estéril entre os discípulos sobre quem é o maior entre eles. Jesus põe por terra esse debate por beleza! O que importa é o serviço, é reconhecer que o reino de Deus faz-se presente a partir de crianças pobres, as quais não podem ser escandalizadas em hipótese alguma. Quem quer seguir Jesus questiona a sociedade que despreza as pessoas simples, os pequeninos, os frágeis, os analfabetos, as pessoas com deficiência. Mãos, pés e olhos de quem segue Jesus estão prontos para outras ações, que dignificam as pessoas, que as conduzem por caminhos justos, que libertam e curam. Por isso, completa Ivoni Richter Reimer, é preciso fortalecer a comunhão: tenham sal em vós mesmos, afirma Jesus no final desse debate intenso com seus amigos (v. 50). Sal, na tradição judaica, referia-se à Torá, a palavra que dá gosto à vida no relacionamento humano que se baseia na justiça. “Ter sal” aqui é, portanto, seguir os mandamentos de Deus, é vivê-los no cuidado e no serviço ao outro, começando pelos mais necessitados de apoio e justiça. Esse é o caminho para viver a paz mútua, a “paz uns com os outros” (v. 50). Ivoni Richter Reimer conclui essa parte de seu comentário escrevendo: “Isto significa que […] os escândalos podem ser vencidos: construir e preservar a paz significa superar as ameaças que se apresentam como competição, como desejo de ter privilégios e desprezar os pequeninos. Essa superação só poderá ser conseguida no poder do espírito que se dispõe a servir” (p. 158).
3. Meditação
A mensagem de Jesus não está jamais pronta, acabada, como se fosse uma doutrina cuja única finalidade é ser reproduzida fielmente, sem mudar uma vírgula sequer. Essa perícope traz muitos conteúdos a serem meditados para a prática da fé no evangelho hoje. Jesus ensina a tolerância para com os de fora e com isso nos prepara para saber dialogar com quem não participa de nossa comunidade de fé ou nosso grupo de referência. Em matéria de prática da fé, é necessário aprender continuamente a discernir as situações, as ações das pessoas, as motivações, a finalidade, o benefício ou malefício que podem proporcionar. Não o proíbam, responde Jesus, ao ser informado de que havia gente que, em seu nome, expelia demônios, curava, atendia a quem padecia necessidade e sofrimento. Não é a pertença formal ao grupo de Jesus que aqui define a justeza da ação exorcista, mas antes o bem que porventura está sendo praticado em prol de outrem. Esse critério pode servir muito bem para que avaliemos as práticas religiosas de muitos pregadores e exorcistas do nosso tempo. Mas também aqui vale o critério maior do serviço que caracteriza o discipulado de Jesus. Se pessoas, em nome de Jesus, mais se servem dos outros do que servem a essas pessoas, temos um sinal claro de que algo está mal, que ocorre distorção, pois o bem do outro não foi realmente atendido ou buscado.
Quanto a praticar escândalos, essa é uma advertência que não caduca jamais. A igreja deu origem, ao longo da história, a muitos escândalos de todo tipo, fazendo tropeçar muita gente crédula, abandonando-a à própria sorte em matéria de fé e de vivência cotidiana. Os exemplos estão presentes por toda parte, seja na exclusão das mulheres do ministério, seja na infantilização do conjunto dos fiéis, seja nas perseguições aos hereges ou na Inquisição, ou ainda quando (devido às divisões) fez com que muitos abandonassem a fé e se tornassem inimigos do povo de Deus. O chamamento de Jesus é muito claro: melhor é perder mão, pé ou olho e entrar com alguma deficiência no reino do que arder no lixão da história e do esquecimento, em que não há memória de mais nada.
Por que tropeçar ou fazer tropeçar alguém no caminho da fé e da graça de Deus? O que pode levar alguém que conhece o amor de Deus por meio de Jesus a escandalizar uma criança pobre ou uma mulher injustamente caluniada? Melhor que se lhe pendurasse uma pedra de moinho ao pescoço para ser lançado ao mar […] (v. 42). Palavra de Jesus guardada na memória das comunidades e na oralidade de seus seguidores e seguidoras. Palavra dura, terrível, se pensarmos em sua radicalidade. No entanto, ela revela que justamente na comunidade de fé tais distorções são possíveis. Tais ameaças podem fazer-se presentes e arruinar a comunhão, a koinonia da fé e do amor mútuo. Daí porque Jesus exorta: tenham sal em vocês e entre vocês. O sal da comunhão, do amor mútuo, do mandamento maior. Isso trará paz mútua, paz criadora de novas relações de amizade e de companheirismo. Essa paz, sim, prepara para o serviço adequado e libertador. O serviço que transforma situações, salva e liberta.
4. Preparando a prédica
A pregadora ou o pregador tem diante de si um texto do evangelho alta- mente crítico e desafiador para si mesmo, para a comunidade a quem serve com seu ministério de amor e cuidado e para o povo de Deus. As relações sociais no Brasil são por demais marcadas por hierarquias, desleixo no limite, por violências de muitos tipos. O tal homem cordial aventado por Sérgio Buarque de Holanda não passa de uma visão ideológica que procurou, mesmo à revelia do seu autor, encobrir a realidade humana que nos caracteriza. Precisamos encarar essa realidade com os olhos da razão crítica, mas também a partir da fé. E essa nos ensina a olhar invertendo as prioridades, os valores dominantes. Isso pode significar conflito, pois nem sempre a mensagem da paz e do amor mútuo convence. Faz parte do caminho da cruz apostar no lado inverso da realidade que grita e clama. Isso pode significar apostar em quem não tem fama, nem posses, nem outra espécie de grandeza visível. Isso também pode desafiar a comunidade que tem fé em Jesus a olhar para além dos seus limites e aprender de outros e com eles e elas o que significa fazer o bem sem olhar a quem ou dar de beber um copo d’água em nome de Cristo a quem não nos parece merecê-lo. É fácil escandalizar as pessoas. Difícil é convencê-las de que somos fiéis ao evangelho, ao Cristo da cruz e da ressurreição e que apostamos tudo em seu nome e no seu discipulado. Ter sal para salgar a massa, o mundo, ser sal e fermento, para usar outra figura dos evangelhos, diz respeito ao seguimento de Jesus. Se o sal vier a se tornar insípido, como lhe restaurar o sabor (v. 50)? Bom é o sal, disse Jesus. Sejamos sal, para salgar com uma vida em comunhão que conduz à paz verdadeira: a paz com justiça, a paz que salva, cura, perdoa pecados e constrói um mundo novo e libertado de
todas as formas de opressão, miséria e desumanidade.
5. Subsídios litúrgicos
O símbolo do sal pode ser bem utilizado nesse culto ou reunião. Trabalhar com seu sabor, sua finalidade e usar a metáfora para aprofundar o desafio de ser comunidade cristã no mundo atual. No final do culto, um círculo de mãos dadas poderá servir como gesto de paz e de envio para proclamar paz ao mundo, à sociedade que necessita dessa paz criadora que se baseia na justiça, no acolhimento, no cuidado de uns pelos outros, no sal do amor e no sal da justiça, Jesus!
Carlos Bravo Gallardo escreveu: “Se os discípulos têm sal que preserva da ambição, então a comunidade viverá em paz”.
Hinos:
Cancioneiro O Povo Canta: 140, 182, 264;
HPD II: 350, 368, 429. 443.
Bibliografia
GALLARDO, Carlos Bravo. Jesus – homem em conflito. O relato de Marcos na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1997.
REIMER, Ivoni Richter. Compaixão, cruz e esperança. Teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 2012.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).