Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 1.18-25
Leituras: Isaías 7.10-16 e Romanos 1.1-7
Autor: Erni Drehmer
Data Litúrgica: 4º Domingo do Advento
Data da Pregação: 19/12/2010
1. Introdução
O texto é indicado para o tempo de Advento e expressa-o por si só. O anúncio do nascimento de um Salvador e de sua origem divina está expresso também nos textos paralelos. Em Isaías, há um paralelismo até mesmo no nome: “Emanuel”. Em Romanos, o apóstolo Paulo registra a descendência de Davi, ao mesmo tempo em que acentua a santidade divina, que, segundo o apóstolo, se confirma com a ressurreição. O que une o texto de Mateus com Isaías e Romanos é o destaque do nascimento do Salvador como cumprimento de uma promessa divina de enviar a seu povo alguém que o orientasse e conduzisse à salvação. Os três textos estabelecem uma interessante unidade, retratada em três dimensões de ação divina: a presença de Deus entre seu povo (Isaías); o nascimento divino de Jesus em meio a provações e inseguranças humanas (as dúvidas de José superadas pela mensagem divina em Mateus); a ressurreição como prova final e irrefutável da filiação divina de Jesus (Romanos). Essa unidade pode servir como interessante argumentação para a pregação.
2. Exegese
Em Mateus, não temos relatos diretos sobre concepção e nascimento de Jesus. O que se relata são as consequências desse fato. Os desdobramentos para José, por um lado, e para Herodes, por outro (em 2.1, fala-se da preocupação de Herodes, despertada pela notícia do nascimento daquele que deveria ser “rei dos judeus”). Com isso o autor reafirma duas coisas: o nascimento de Jesus aconteceu em Belém e foi gerado pelo Espírito Santo. Nada muito além disso.
Diferentemente do relato de Lucas, em Mateus há um destaque especial para José. Esse “sempre fazia o que era direito” ou “sendo justo…” Há um consenso de que essa referência não quer tanto acentuar a fidelidade à lei (conforme o determina Deuteronômio 22.20s), mas sua bondade. Convém lembrar que noivado (ou contrato de casamento) implicava peso semelhante ao casamento. Quebra desse contrato correspondia a adultério, que, conforme a lei descrita em Deuteronômio 22, era castigado com apedrejamento ou poderia, no máximo, ser reduzido para açoites. O dilema colocou-se para o homem José: uma acusação de infidelidade fatalmente se desdobraria em uma execração pública de Maria. Mas o texto expressa claramente que José não tinha interesse em tomar tais atitudes. Com a decisão de desmanchar o contrato de casamento de forma secreta, ou seja, através de uma carta de divórcio, ele estaria tomando sobre si toda a culpa, sem uma acusação pública. Aqui o conceito de justiça de José manifesta-se tanto em seu compromisso com a lei como em sua bondade para com o ser humano. O divórcio deverá ocorrer sem execração pública (δειγματίσαι) e em segredo (λάθρα).
As reflexões e planejamentos humanos de José são interrompidos por uma súbita intervenção divina. O autor não se interessa em desdobrar qualquer familiarização com o contexto social de José e Maria, que poderiam levar a uma solução humana para a situação após eventuais discussões entre o casal. Tão-somente interessa ao autor tornar visíveis a ação e o plano de Deus. O meio é o sonho. Deus, em forma de anjo, aparece a José em sonho. Trata-o como amigo de Deus, que é iniciado nos planos de Deus. José é chamado de descendente de Davi, isto é, descendente de Davi e herdeiro das promessas dirigidas a essa família. José é instado a aceitar Maria em sua casa como esposa. As desconfianças são dissipa- das. Com isso a criança não somente é protegida da condição de órfã, como também passa a ser da linhagem de Davi, já que à criança adotada cabiam os mesmos direitos que às crianças geradas do próprio ventre. Revela-se aqui o Deus protetor e guiador. Ao mesmo tempo, é o Deus que cria e age. O anjo revela a José que a gravidez de Maria não é fruto de qualquer pecado, mas de intervenção divina.
José é nomeado pai da criança a ser gerada por Maria. A ele é concedido o direito inalienável de dar o nome a seu filho, mas não da escolha do nome. A ordem é: o nome dele será Jesus. O nome está relacionado à missão que irá cumprir. Que missão é essa? Ele será o salvador. Para o povo judeu, o Salvador viria para libertar o povo da dominação estrangeira. No entanto, contrariando essa expectativa, o messias salvará o povo “dos pecados deles” (v. 21b). Assim, o opressor não é de ordem política, mas é o pecado que aprisionou o povo, que o envolve como uma erva daninha e o sufoca.
A profecia do Antigo Testamento é invocada para apontar para o nascimento de Jesus como seu cumprimento. O nome dado ao messias no texto de Isaías é Emanuel, isto é, “Deus conosco”. Como se chega a igualar o nome Jesus com “Deus conosco”? No nome Emanuel está contida a promessa de Deus dirigida desde Abraão e a todos os líderes do povo de Israel: “Estou convosco”. Essa promessa recebe como resposta dos agraciados por ela a afirmação de fé: “Deus conosco”. Ora, sendo Jesus quem liberta do pecado, o qual separa Deus de seu povo e o aprisiona, acontece a reconciliação entre Deus e o povo, e assim se concretiza o desejo de Deus de estar com seu povo. Por isso o nome Jesus a ser dado à criança que vai nascer traduz a essência de sua missão: concretizar a presença de Deus entre seu povo, anunciada desde os tempos mais remotos, e promover o restabelecimento da condição de Deus e seu povo.
O evangelista retorna ao relato dos fatos (v. 24) e mostra a atitude de José: ele é justo e, como tal, obedece a uma ordem divina. Recebe Maria como sua esposa e assim resolve a questão de suas dúvidas e inseguranças. Faz parte dessa obediência a abstinência de qualquer relacionamento sexual com Maria, o que encontra paralelo na compreensão antiga de que uma mulher dedicada à geração de um filho divino estava indisponível para um contato íntimo humano. Seguindo a ordem divina, José dá ao menino o nome de Jesus.
3. Meditação
Confusão – esse é o termo que melhor consegue definir o estado em que se encontra a cabeça de muita gente em relação à sua fé. E não apenas dos chamados “vacilantes” ou “turistas acidentais” em nossos templos e celebrações. Também pessoas com uma bagagem considerável na tradição de participação na vida comunitária balançam perigosamente. Por quê? A progressão geométrica com que surgem novas “igrejas”, novos espaços comprados ou canais exclusivos nos meios de comunicação para difundir teologias, novas interpretações de prosperidade, enfim, novas interpretações, releituras altamente interesseiras do que é salvação e intervenção divina na história – tudo isso chega às famílias com uma eficiência mercadológica indiscutível e literalmente “dá um nó” na prática de piedade de muita gente.
Desafio – esse é o termo que melhor define a tarefa que se tem de pregar sobre esse texto. Um homem é orientado por Deus, em sonho, a confiar que a gravidez de sua mulher não é fruto de adultério, mas é obra de Deus, que tem um claro propósito: gerar o Messias, o Salvador, que salvará seu povo do pecado que o afasta de Deus. Que não concederá a esse povo o que ele quer, mas o que ele precisa. Como falar disso em meio a promessas de riqueza, de prosperidade com direitos adquiridos junto a Deus, na condição de seus filhos e filhas, herdeiros de seu reino? Como falar disso numa sociedade brasileira em que a cada 15 segundos uma mulher ainda é agredida por seu companheiro, apesar de todos os avanços já conseguidos em termos de proteção e atendimento à mulher?
Em meio a essa confusão de ideias e compreensão de salvação, é mister que se reafirme o nascimento de Jesus Cristo como a concretização do projeto de Deus de fazer morada entre as pessoas. Deus conosco, “Emanuel”, está entre nós e nasce de uma mulher. Deus está conosco, não para nos proteger dos sofrimentos e das dores, mas para nos dar a mão e nos acompanhar em meio a elas. Deus conosco, não para nos conceder conforto, riqueza, solução de todas as nossas dúvidas, mas para nos libertar do pecado, que nos afasta de sua presença e que se manifesta na injustiça, na exploração, na exclusão e produz sofrimento, dor e morte. A presença de Deus neste mundo confirma-se em Jesus Cristo, anunciado desde os tempos mais antigos como o Salvador, gerado pelo Espírito Santo e desafiando um homem a superar suas suspeitas tipicamente humanas para submeter-se confiantemente à vontade de Deus.
A presença real e verdadeira de Deus entre nós ajuda-nos a enfrentar nossas próprias inseguranças e medos, mas também a superar todas as formas de insegurança e medo criadas por mecanismos sociais de exclusão, exploração do mais fraco, egoísmo, ganância. Todas essas atitudes são tipificadas a partir de uma realidade só: o pecado, o afastamento de Deus. Pecado do qual Jesus, o Salvador, nascido de Maria, nos quer libertar.
4. Imagens para a prédica
As dúvidas de José, clareadas e afastadas pela intervenção do mensageiro divino, oferecem uma boa ponte de embarque para a pregação: Deus nasce em meio às tensões e dualidades da vida humana. Num contexto familiar do casal José e Maria, marcado também por eventuais tensões, como de qualquer casal, Deus escolhe o meio e o caminho de chegar ao mundo. Isso nos autoriza a afirmar: para encontrar Deus neste mundo, não precisamos nos transportar para um mundo acima do qual vivemos. É em meio às dualidades e tensões desse mundo que Deus nasce em Jesus Cristo. As dualidades e tensões têm cara e nome, e de- veríamos poder desenhar essa cara e declinar esse nome.
Deus conosco revela a aparência de nossas dificuldades e sofrimentos e vem dizer, através de Jesus Cristo, nascido de mulher, que está entre nós. Não para cumprir e atender nossos desejos pessoais de prosperidade, sucesso, fartura, mas para estabelecer seu reino de paz, esperança, inclusão, vida digna. Creio ser essa uma boa forma de embarcar no texto, além de trazer para mais perto da realidade de cada ouvinte o ato totalmente divino do nascimento totalmente humano do Filho de Deus.
Uma palavra de Ernst Lange (tradução livre): “Jesus não é nenhum milagre, ele não cai do céu, ele é homem (ser humano) como nós, nascido de mulher e colocado sob a lei (Gl 4.4). Mesmo assim (e para isso a igreja tem tentado apontar com sua pregação insistente sobre a concepção virginal), Jesus não é um pico de produção no processo de autocivilização da raça humana, não é um acaso bem-sucedido da evolução, não é uma rara e casual exceção. Ele é um milagre, um crédito de Deus para sustar a bancarrota da humanidade” (Ernst Lange, em Christsein heute und morgen, p. 203).
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida:
Esta é a fé da misericordiosa graça que a palavra de Deus e sua obra exigem: Que você creia que Cristo nasceu para você e que seu nascimento aconteceu
para o seu bem. Pois a Escritura Sagrada não afirma apenas: Cristo nasceu, mas diz: Nasceu para vocês. Também não afirma apenas: Eu anuncio uma alegria, mas diz: Eu anuncio uma alegria para vocês. (Martim Lutero)
Confissão de pecados:
Deus gracioso e misericordioso. Mais uma vez nos preparamos para comemorar o Natal. Apesar de termos prometido para nós mesmos que desta vez seria
diferente, já sentimos que queremos nos preocupar mais com a correria típica desta época do ano e menos com a reflexão e a compreensão do que significa o teu nascimento entre nós. Perdoa-nos por isso. Ajuda-nos com essa confusão em nossas vidas. Dá-nos teu perdão e a força do Espírito Santo para que possamos mudar, de fato, nossas atitudes no dia-a-dia. Por Jesus Cristo, Senhor e Salvador, imploramos por teu perdão quando cantamos:
C: Perdão, Senhor, perdão.
Oração do dia:
Senhor, peço-te por alegria, não pela grande alegria celestial, mas pela pequena alegria terrena, que dá asas ao coração e me faz sorrir e cantar. Dá-me a
alegria que vence ira e raiva; abraça tudo ao redor; supera a melancolia; afugenta a teimosia; desvanece a tristeza e desfaz a intransigência. Senhor, dá-me a alegria de poder estar ao lado de outras pessoas; de saber que tu te tornaste pessoa, que nasceste, viveste e morreste por mim. Amém. (Deus se faz gente, Ed. Sinodal, p. 118)
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Matthäus. 5.ed. Berlim: Evangelische Verlaganstalt, 1981.
SCHNIEWIND Julius. Das Evangelium nach Matthäus, in: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1954.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).