Não temais os que matam o corpo
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: Mateus 10.26b-33
Leituras: Jeremias 31.31-34 e Romanos 3.19-28
Autoria: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: Dia da Reforma
Data da Pregação: 31 de outubro de 2019
1. Introdução
Há dois anos celebramos 500 anos da Reforma. No ano passado e em 2019, nossa igreja proclamou e proclama com alguma ousadia o tema Economia, Política e Igreja, para aprofundar a reflexão naqueles âmbitos que dizem respeito a toda a criação de Deus, ao seu funcionamento justo e à sua sustentabilidade. Será que conseguimos avançar no rumo de radicalizar a Reforma, ou seja, ir às raízes da Reforma, atualizar as atitudes reformadoras e seu impacto para o nosso tempo? Sempre se corre o grande risco de repisar um assunto tão importante com discursos bem-intencionados, mas vazios e inócuos, sem qualquer correia de transmissão com a realidade de nossa sociedade civil, do Estado ou de nossas comunidades eclesiais. Em nosso país, certamente uma reforma do judiciário, com seus arroubos de infalibilidade, com seus partidarismos e seus escandalosos salários, é uma necessidade urgente. Uma pregação vigorosa no Dia da Reforma certamente não é tudo o que temos a fazer. Mas já é um bom começo!
No século XVI, a igreja ainda tinha uma posição de influência decisiva na sociedade. Hoje, as igrejas sérias quase não conseguem se fazer ouvir, pois em grande parte foram alijadas para o campo das religiosidades abstratas, quando não anacrônicas, ou do socorro espiritual diante das adversidades da vida, quando não apenas para enfeitar a vida com um pouco de transcendência. Mas ainda temos um dom e uma tarefa como cristãos e cristãs da reforma de confissão luterana: tecer os âmbitos da fé com todos (!) os âmbitos da vida. Divulgar e publicar sem medo, com posturas e atitudes públicas, o que até agora ficou por demais restrito às paredes da igreja.
2 Exegese
Não tenham medo deles! De quem? Dos lobos, dos homens que vos arrastarão aos tribunais e vos açoitarão em suas sinagogas, de governadores, dos perseguidores (v. 16-23). Não há nada encoberto que não venha a ser revelado – procede da fonte de ditos isolados (Q) e aparece quatro vezes na tradição dos evangelhos; é por eles interpretado de maneira diversa. Em Marcos 4.22 e Lucas 8.17, como declaração sobre o destino da pregação de Jesus – o segredo do reino de Deus será revelado a todas as pessoas; em Lucas 12.2, como advertência frente à hipocrisia dos fariseus – não leva a nada, pois o que está em segredo se tornará público; em Mateus 10.26, o dito fundamenta a admoestação ao destemor – a pregação não conseguirá frear toda inimizade e contrariedade. Os evangelistas provavelmente não sabiam mais qual era o sentido original desse dito. Talvez tivesse sido um provérbio: tudo virá à luz (Jeremias, 1970, p. 219s). Os versículos 32 e 33 provavelmente são um acréscimo.
A perícope faz parte do assim chamado “sermão missionário de Jesus”. O ensino e a prática de Jesus, que até então tinham ficado apenas no círculo mais restrito de discípulos e discípulas, não estão destinados a uma ordem secreta. É necessário que o evangelho se misture com a realidade, qual vinho novo rompa os odres velhos. Isso implica oposição, riscos, perigos, que estão mencionados nos versículos precedentes. A sociedade e, sobretudo, os poderosos não aguentam profetas, mas paradoxalmente precisam deles para não sucumbir. Por isso três vezes recomenda confiança: Não temais! (v. 26,28,31). Contudo, não apenas as testemunhas de Jesus correm riscos; o próprio evangelho levado a público também corre riscos de ser enfraquecido e até mesmo pervertido, como nos mostrou a história da igreja. Por isso é necessário que a igreja esteja em permanente reforma. Por fim, temer a Deus, que pode destruir corpo e alma, é muito mais inteligente do que temer os eternos defensores de privilégios que, na pior hipótese, apenas conseguirão matar o corpo. A vida é eterna, os viventes não.
Duas figuras do cotidiano são empregadas por Jesus para explicitar que Deus está no controle absoluto do seu projeto de salvação para a criação. Nenhum dos pássaros mais comuns – o pardalzinho (stroution) era a vida mais barata (dez centavos) no mercado da época – está fora dos cuidados de Deus; quanto mais vocês! Nenhum dos milhares de cabelos que a gente tem na cabeça e que são diariamente arrancados por alguma escova ou pente cai sem que Deus o saiba. Uma hipérbole! O exagero quer demonstrar como são infundados os medos e a falta de confiança em Deus. Nada está oculto ou esquecido por Deus. E vós valeis muito mais do que os passarinhos, as flores, a erva do campo… Não tenham medo! A fé vence o medo!
As formulações meu Pai, ou Pai nosso, a que já nos acostumamos por séculos, eram uma novidade – para algumas pessoas, chocante – na época neotestamentária. A confiança e a intimidade que traduzem estavam na contramão dos ensinamentos judaicos a respeito da absoluta santidade de Deus. No Primeiro Testamento, aparecem apenas em Isaías 63.16 e 64.8.
A postura de discípulos e discípulas tem consequências para o seu bem e seu mal. A graça que salva e que sana é de graça, mas não é barata. Somos justificados gratuitamente mediante a redenção que há em Cristo (Rm 3.24). A língua hebraica tem o modo verbal consecutivo que desconhecemos em nossas línguas ocidentais. Não se trata de um indicativo (salvação por graça) ao qual deve seguir um imperativo (uma nova lei), como interpretaram alguns teólogos europeus. Mas é graça que tem consequências (modo verbal consecutivo), sem receio de uma sutil justificação por obras, e se não tiver consequências, não é mais graça recebida. Almeida traduz homologēsei en emoi como “me confessar”. Eu traduziria: Todo aquele que disser que está comigo diante dos homens, eu também direi que está comigo diante de meu Pai que está nos céus. A imaginação que está por trás de homologēsei en emoi é que “a confissão gruda no seu objeto” (Rienecker, 1956, p. 25). Confessando a Cristo, discípulos e discípulas ficam grudados em Cristo (como os ramos na videira) e o representam em sua temporária ausência física. Basta ao discípulo ser como o seu mestre, e ao servo como o seu senhor (v. 25).
3. Meditação
Neste discurso Jesus planta sua confiança fundamental nos corações de discípulos e discípulas. Essa confiança deve moldá-los e saná-los. Homólogos ao Mestre podem encarar sua missão sem medo. A gente se sente jogado de um lado para o outro.
De fato, o cristianismo eclesiástico de hoje – desde sua oficialização por Constantino, diga-se de passagem – não precisa temer represálias por causa de sua pregação. Se, de um lado, a fé e os princípios cristãos marcaram as sociedades alcançadas pelo evangelho, no sentido de mais tolerância religiosa, liberdades de pensamento, de fé e de práticas religiosas, direitos humanos básicos e, ultimamente, também extensos, de outro lado, é necessário perguntar se as pregações ainda contêm aquele conteúdo libertário e crítico em relação ao senso comum, ao Zeitgeist, à cultura dominante de nossa era. Temos que nos perguntar se nossas igrejas, organizadas como associações religiosas, não estão domesticando a força libertária do evangelho, substituindo-a por um discurso mais adaptado ao que as pessoas querem ouvir, porque seu objetivo principal é fechar o ano com o orçamento em dia, sem perda de membros nem de cadáveres de fichário que talvez poderiam irritar-se e sair da associação.
Não custa lembrar que um tema do ano como “Terra de Deus – Terra para Todos” (1982) já causou grande celeuma. A defesa dos povos indígenas remanescentes de um massacre de 500 anos bem como a defesa de descendentes de quilombolas geram muita divisão, contradição e ameaças dentro das igrejas. Se pastores e pastoras pregassem hoje contra a usura – como Lutero recomendou aos pastores de sua época pregar –, que hoje está estruturada como sistema financeiro dentro de nossa sociedade, as pessoas provavelmente balançariam as cabeças, sentir-se-iam chocadas ou diriam que isso não tem nada a ver com espiritualidade evangélica. Se pregarem contra a acumulação de bens e em favor da partilha, provavelmente serão acusadas de comunistas. Se, em nome da sustentabilidade ecológica, pregarem contra o crescimento ilimitado num planeta limitado em recursos, provavelmente serão proscritos como defensores de interesses estrangeiros. E por aí vai!
Alguns querem que a igreja seja uma confraria de bem-estar e bem sentir emocional, um lugar onde se pode receber uma massagem na alma. Claro que a igreja deve ser aquele lugar em que as pessoas são consoladas e animadas, mas não é para se sentir enlevadas, e sim para ir encorajadas para a luta. Até mesmo as rasas polarizações partidárias, amplificadas pelas assim chamadas redes sociais, inviabilizam qualquer discussão um pouco mais séria e aprofundada sobre os problemas da sociedade; é um instrumento poderoso e diabólico, operado pelo confundidor mor. Pode-se observar hoje que há grupos fora das igrejas empenhando-se por propostas mais próximas do evangelho de Cristo, pois os de dentro têm medo. Não temais, diz Jesus. Fiquem grudados em mim e eu os manterei grudados em Deus, o Pai. Nada escapa ao seu controle!
Essa fé não seria algo infantil? Confiar na providência divina dessa forma vai contra toda leitura da existência. Aos realistas históricos só resta ridicularizar essa confiança ingênua. E não adianta dizer que se trata da visão da fé sobre a realidade, pois também essa postura não resiste a questionamentos mais sólidos. Não só pardais caem dos telhados, nem só cabelos caem das cabeças. Milhões de pessoas são vítimas de ideologias destrutivas, milhões de crimes são cometidos contra crianças, o império elimina com violência possíveis competidores, com as justificativas mais estapafúrdias; a corrupção de políticos gera a morte das pessoas que dependem dos serviços públicos, o desenvolvimento tecnológico acaba com o emprego e o meio de vida de muitas famílias, o crescimento desenfreado e a ambição por cada vez mais lucros estão acabando com a boa criação de Deus. Defender uma fé ingênua e infantil num Deus que cuida de tudo beira uma imaturidade banalizante, é de um infantilismo que não quer tornar-se adulto e reconhecer sua parcela de cooperação na criação de Deus. Por outro lado, confiança ou fé em Deus não é um princípio de explicação do mundo ou de interpretação da história. Deus não olha o que está visível; a fé também não. Ela vê o que está escondido. Hanna Wolff (1994, p. 265-274), teóloga e psicóloga jungiana, sugere que se pense o escondido como o subconsciente.
Os imperativos Não se preocupem!; Não tenham medo!; Pedi e dar-se-vos–á!; Batei e abrir-se-vos-á! denotam uma determinação existencial, uma sensação existencial que só é possível a partir da integração do eu (Selbst em Carl G. Jung). Talvez seja isso que o profeta Jeremias anuncia como sendo a nova aliança que produz intimidade entre Deus e seu povo (31.33s). A pessoa que está dividida em si mesma, na qual está ocorrendo uma luta psíquica interna, não o entenderá, só ironizará como fantasia quando algum desses imperativos a atinge. Trata-se de uma confiança originária, de uma segurança primitiva. Quando tal confiança abrangente é comunicada a uma criança nos seus primeiros anos de vida, uma sensação de ninho aconchegante, então ela fica marcada com potenciais psíquicos para enfrentar a vida e superar seus desafios de uma forma positiva. Entretanto – poder-se-ia objetar –, tal mundo são não existe. Sim, mas ele sempre foi buscado pela humanidade pensante. E nele provavelmente determinações subconscientes fazem mais estragos do que anseios conscientes.
Nosso tempo declarou notadamente a preocupação como elemento existencial da vida. As pessoas sentem-se deslocadas, sem raízes, não se sentem mais em casa. Isso conduz a um medo existencial. “As imagens do subconsciente de pessoas modernas estão repletas de bloqueios que não querem se abrir; quando recebem algo, não conseguem deixá-lo entrar”. Mas nosso tempo tem saudade e anela pela imagem humana sã que se encontra em Jesus e que corresponde a uma imagem sã de Deus. Em seu livro, Hanna Wolff apresenta Jesus como um dos raros seres humanos que integraram animus e anima – as porções masculinas e femininas do ser humano. Daí a sua confiança originária, primitiva, total no Pai. Essa fé de Jesus é que nos cabe almejar.
4. Ideias para a prédica
A corrente principal é de um cristianismo de bem-estar com todos. Cada qual pensa que não é tão pecador assim e que vai para o céu. Estamos de acordo com a ordem vigente, mesmo que pelos seus frutos miseráveis se pode entender que, na verdade, a ordem econômica e social é uma desordem. Participamos dessa desordem pecaminosa, mas não estamos dispostos a reconhecer nossa parcela de responsabilidade. Não tendo noção do nosso pecado, não temos como compreender a graça. Aqui está a ligação com a leitura de Romanos. Estamos de acordo com o desenvolvimento geral da sociedade. “Só não se dá bem quem não quer.” Todos têm chances iguais – esse é o senso comum mentiroso que precisa ser enfrentado. Nossa igreja é bem vista. Fazemos festas bem visitadas. Fornecemos lideranças para a comunidade civil que vão exercitando suas competências nas diretorias de nossas comunidades. Somos cidadãos e cidadãs respeitáveis. Não ofendemos ninguém e ninguém nos ofende. Não queremos saber de polícia nem de justiça, por isso não nos metemos em assuntos que podem ser polêmicos.
Onde a adaptação ao estilo de vida comum contradiz a vontade de Deus manifesta na pregação e atuação de Jesus? Cristãos e cristãs não praticam o que sabem porque têm medo. A nova aliança, com Deus inscrevendo em nossos corações a sua lei (Jeremias 31), nos apresentando Jesus como modelo de confiança e fé, nos anima a romper com a comodidade e com a zona de conforto enganosa em que nos encontramos.
Em que aspectos a comunidade eclesial local pode oferecer alternativas de vida, com mais solidariedade com os empobrecidos, desprendimento e engajamento por justiça social, vivência a partir da graça e não de uma ideia de meritocracia (ligação com Romanos)?
Quais são nossos medos que resultam em falta de confiança e de fé no projeto de Deus para a salvação de sua criação? Se houver um projeto concreto em que a comunidade pudesse se engajar, nem que seja só temporariamente, seria um efeito concreto da pregação.
5. Subsídios litúrgicos
Sugestão de hinos
– No tempo em que vivemos, imprescindível é que sempre confessemos bem claro a nossa fé (HPD 1, 76; Livro de Canto da IECLB 461, especialmente
o verso 4).
– A verdade vos libertará (O Povo Canta, 70/71) – Não temais os que matam o corpo.
Sugestão de leitura
Se possível em responsório, o Salmo 139, para reforçar a confiança na onipresença e efetividade de Deus.
Confissão de pecados
Senhor, nosso Deus, comemoramos hoje a Reforma da Igreja, ocorrida há 500 anos. Por ela agradecemos! Pedimos-te que nos concedas a humildade de reconhecer que também nós individualmente necessitamos de reforma. Fracassamos em nossos bons propósitos. Mesmo que não o sintamos, todos pecamos e carecemos da tua glória. Estamos determinados por preocupações e medos que nos impedem de agir conforme a tua vontade. Trazemos-te essa realidade e pedimos que nos ajudes a superá-la. Confessamos-te os nossos pecados e pedimos perdão por eles. Ajuda-nos a cumprir melhor a missão da qual nos incumbiste. Tem piedade de nós, Senhor!
Oração de coleta
Deus, Pai todo amoroso, tu que através do profeta anunciaste que inscreverias a tua lei nos corações do teu povo, e que em Jesus Cristo mostraste tuas intenções de justiça, sanidade e salvação da espécie humana, nós te pedimos: olha também para nós nestes dias de insegurança na fé, concede-nos o espírito da Reforma para que sejamos imbuídos do Espírito de Jesus e anunciemos o teu Reino sem medo, na firme confiança de que tu tens tudo sob controle. É o que te pedimos, por Jesus Cristo, teu Filho amado, que contigo e com o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.
Intercessão
Santo Deus, o Dia da Reforma nos alegra, porque a Reforma nos trouxe de volta o evangelho do teu Reino. O Dia da Reforma nos faz pensar se não está na hora de buscarmos novamente, com mais força e intensidade, o evangelho do teu Reino para os nossos dias. Somos uma igreja pequena e modesta, mas tu nos deste dons e nos equipaste com capacidades que não podemos esconder, por temermos alguma contrariedade. Fortalece nossa consciência evangélica e nossa disposição de nos envolvermos nas questões econômicas, políticas e sociais em nosso país. Dá aos pregadores e às pregadoras o vigor e o destemor de quem está firmemente ancorado em tua graça. Dá que aprendamos a nos envolver com a governança de nosso município, estado e nação, testemunhando tua santa vontade e justiça. Consola as pessoas tristes e desanimadas, doentes e enlutadas. Protege-as contra todo mal e dá-lhes a certeza de tua presença e bênção para suas vidas.
Bibliografia
JEREMIAS, Joachim. Die Gleichnisse Jesu. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1970.
RIENECKER, Fritz. Sprachlicher Schlüssel zum Griechischen Neuen Testament. 9. Aufl. Giessen; Basel: Brunnen, 1956.
WOLFF, Hanna. Jesus na perspectiva da psicologia profunda. São Paulo: Paulinas, 1994.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).