Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 10.40-42
Leituras: Jeremias 28.5-9 e Romanos 6.12-23
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29/06/2014
1. Introdução
Até agora, o texto foi tratado em Proclamar Libertação por três pastoras: Ângela Lenke (PL 35), Marli Lutz (PL 18) e Claudete Beise Ulrich (PL 30). Recomendo a leitura desses estudos, que dão subsídios muito importantes e têm boas propostas para prédicas. Trata-se de uma possibilidade. Outra possibilidade abre-se quando lemos o texto à luz do conflito entre uma teologia da retribuição e uma teologia da restauração. A teologia da retribuição está muito presente no pensamento bíblico. Também em nosso nos dias de hoje. Os seres humanos recebem as orientações divinas e são chamados a obedecer; quem obedece tem como retribuição uma recompensa, um galardão; quem não obedece tem como retribuição o castigo merecido. Não são raros os textos bíblicos em que as pessoas desobedientes são ameaçadas com consequências negativas à sua desobediência, a saber, doenças, desemprego, tristeza e até a morte, se não fizerem a vontade da divindade.
Mas esse não é o caso de nosso texto de prédica. Ele traz claramente a dimensão de uma teologia da restauração, ou seja, as consequências dos atos contrários à vontade de Deus não geram vingança por parte de Deus. Não está presente nenhuma ameaça a quem não fizer o que Jesus ensina a seus discípulos. A decisão de abordar esse aspecto deve-se também à ênfase presente nos outros textos previstos para o 3º Domingo após Pentecostes: os dois salmos (33 e 89) indicados no lecionário, bem como Jeremias 28 e Romanos 6. Considero, pois, sábia a decisão de limitar o texto aos três últimos versículos de Mateus 10, pois, apesar de apresentarem diferenças internas, eles compõem uma unidade temática interessante.
2. Exegese
Iniciamos lembrando que o tema de Mateus 10 termina no primeiro versículo do capítulo seguinte. Trata-se de um conjunto de instruções dadas por Jesus ao grupo de pessoas que irão pelas vilas pregar e realizar sinais. Irão fazer visitas domiciliares.
São instruções diretas, dadas na segunda pessoa do plural até o v. 40. No v. 41, é usada uma forma genérica e, no v. 42, Jesus fala a outros ouvintes (não mais ao grupo de pessoas a serem enviadas), apontando para os “pequeninos”. Alguns comentaristas afirmam que os “pequeninos” podem ser as pessoas do grupo, mas também podem ser outras pessoas. Aí reside uma dificuldade, pois visivelmente Mateus ou um redator posterior tomou esse versículo de textos paralelos que ocorrem em bem outro contexto. Em Marcos 9.38, a “pequenina” é uma criança; o mesmo pode ser dito de Lucas 9.48. Já o texto de João 13.20 está em ainda outro contexto, a saber, da traição.
O que se pode dizer é que nosso texto de pregação é um acréscimo posterior à compilação de ditos organizada por Mateus e contida no capítulo 10, conhecida como “sermão missionário”. É muito provável que, inicialmente, a compilação de Mateus passasse de 10.39 para 11.1. Embora haja uma unidade temática com o texto de Mateus 10, não há uma unidade estilística e literária.
V. 40 – Mateus refere-se a uma antiga tradição judaica de dar a mesma distinção a um representante que teria o representado. W. Barclay esclarece que essa distinção era dispensada, em especial, a pessoas sábias e instruídas nas verdades de Deus: “O que recebe ao estudioso é como se recebesse a Deus”. Daí vem a mentalidade de que receber uma pessoa de Deus é como receber a própria divindade. Com esse pensamento Mateus introduz o tema das consequências sem ameaças. Receber alguém que vem em nome de Deus não é algo estéril. Frutifica. Cria reações. Gera consequências. Da mesma forma, ousar fazer uma visita a alguém em nome de Deus, da igreja, da paróquia, tem que ser levado muito a sério, pois algo irá acontecer e irá definir o futuro das pessoas visitadas.
V. 41 – Na redação do sermão missionário feita por Mateus, até agora Jesus não havia feito referência ao grupo a ser enviado como um grupo de profetas ou e pessoas justas. Mas, neste versículo, entram esses dois atores (profeta e pessoa justa) na história. Havia na época de Mateus uma certa hierarquia entre os dons, sendo o maior o de profeta. O v. 41 coloca os dois em um mesmo patamar de importância, rompendo com a ideia de uma hierarquia entre um profeta, “um justo” e quem quer que seja. O texto quer definir que a variedade de galardões são dádivas divinas, que dão igual dignidade e valor a quem os recebe. Atuar pelo bem comum torna todas as pessoas dignas, independentemente do tipo de trabalho que realizam. No mundo em que viviam, umas apareciam mais do que as outras na sociedade, umas tinham suas habilidades mais destacadas do que as outras, algumas tinham uma inteligência mais útil ao sistema do que as outras; por isso tinham uma valorização maior na sociedade e no poder econômico (ou vice-versa). Parece que, no mundo em que vivemos, não mudou muito esse aspecto.
V. 42 – No mosaico literário montado por Mateus em seu relato evangélico, este versículo está dentro do tema, mas totalmente fora de contexto. Agora Jesus não está mais falando às pessoas que está por enviar, mas as ouvintes são outras. Não diz “o que foi feito a vós”, mas diz “a um desses pequeninos”, que tanto podem ser os discípulos como crianças, conforme Marcos 9.36. Agora o galardão não é mais algo a ser conferido por Deus como recompensa, mas é algo já possuído e que não será tirado (de modo algum perderá). O uso de galardão no v. 41 é diferente do v. 42. No primeiro, galardão está vinculado a um status, ao uso de um dom, enquanto que, no segundo, é algo que muitas pessoas (ou seriam todas) têm e que lhes é retido por seus atos, por menores que sejam. Isto é, também a pessoa com pouca habilidade para os negócios e, consequentemente, com poucos recursos materiais não será excluída.
3. Meditação
A visitação é uma prática comum em nossas comunidades. Em alguns lugares, as visitas são realizadas exclusivamente por pessoas que representam o ministério ordenado; em outros lugares, em combinação com grupos de visitação; e ainda em outros, só por visitadoras leigas. Importante é que as pessoas que fazem a visita se saibam enviadas por Jesus Cristo e que entrem na casa e na vida de alguém em nome do Senhor. Que sejam preparadas para ser agentes da justiça restaurativa nos lares.
Receber visita, receber recompensa, ficar com a recompensa – isso acontece com as pessoas que fazem o que é certo, que fazem o que Deus quer. Fica no ar o que acontece com as pessoas que não acolhem os visitadores, que não reagem à mensagem trazida na visita. Sim, vêm à mente todos os textos que falam de vingança, de justiça retributiva, ou seja, da justiça feita com punição e, de preferência, com dor.
A teologia da retribuição afirma que saúde, riquezas, filhos e vida longa eram sinais de que aquela pessoa estava realmente cumprindo a vontade de Deus. O contrário também é verdade. Pobreza, doenças, ausência de filhos são concebidas como consequências da não observância das leis de Deus e, desse modo, como um castigo de Deus.
A mensagem de Mateus 10.40-42 é “observar todas as coisas que acontecem debaixo do sol”. Nessa observação, pode-se perceber a fraqueza do princípio de causa e efeito. Na vida de igreja, verificamos que há justos que sofrem e injustos que recebem a sorte dos justos. Qual a consequência de ser uma pessoa seguidora de Jesus Cristo? Nos versículos precedentes de Mateus 10 (v. 13 e 14, p. ex.), o tom é ameaçador. Nos últimos três versículos, muda o foco. Não há mais ameaças, mas Jesus introduz a teologia afirmativa da restauração. Informa que a aceitação de sua pregação não está relacionada a qualquer tipo de restituição, e sim à restauração da dignidade das pessoas ouvintes. O v. 42 diz que a pessoa caridosa, solidária não perderá seu galardão. “Não perder” é uma coisa; “deixar de ganhar” é bem outra. O texto afirma o galardão de quem já o tem.
Para chegar a essa conclusão, precisamos entender o uso do termo grego misthos, que é traduzido nas diversas edições brasileiras da Bíblia por galardão, recompensa, salário, recebimento. As edições de Almeida e da NTLH até mesmo colocam o título: As recompensas. Isso dá a entender que quem pratica o bem ganha alguma recompensa. Mas, a partir de uma visão de restauração, o galardão rompe com a compreensão de recompensa, tanto no sentido de vantagem adquirida como no de ameaça. Não sendo de recompensa, a mensagem do texto aponta para mudanças nos critérios de valorização. Isso deve ser valorizado. A valorização do ser humano passa pela restauração das relações rompidas, seja pela falta de respeito a profetas e pessoas de fé, seja por não dar um simples copo de água. Essa ruptura não leva ao castigo, nem a sacar o galardão, mas motiva, incentiva a pessoa a repensar e restaurar.
Chama a atenção o título colocado na “Luther Bibel”:Aufnahme um Jesu willen (acolhimento por causa de Jesus). Nota-se que ele já vem com uma interpretação mais avançada do que os títulos das versões antes mencionadas.
Mais três pensamentos sobre o texto:
1 – O texto rompe com a sabedoria clássica de Israel, que preconiza uma relação de causa-e-efeito típica da tradição teológica judaica e introduz a graça, a equiparação graciosa, livre das recompensas;
2 – O julgamento a que estaremos sujeitos no fim dos tempos antecipa-se na fé e nas atitudes que tomamos na vida diária a partir da fé;
3 – O texto rompe com o comércio, a barganha com Deus, com a mentalidade de troca: dinheiro por bênção.
Visto assim, o termo galardão perde o sentido de recompensa como cura, milagre ou prosperidade, mas ganha o sentido de fé na salvação em Jesus Cristo.
4. Imagens para a prédica
A prédica poderá abordar a diferença entre uma justiça retributiva e uma justiça restaurativa. A maior parte das sociedades conhecidas na história da humanidade construiu uma ideia de justiça retributiva. “Aprontou, tem que pagar. ” Chega-se ao cúmulo de afirmar que “bandido bom é bandido morto”, ou seja, a retribuição pelo mal cometido tem que ser por meio de uma punição. E quanto maior a punição, melhor. A Bíblia também está cheia dessa mentalidade. Mas a Bíblia também nos dá outros caminhos. A justiça restaurativa é um deles.
De acordo com o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios: Este programa reúne pessoas envolvidas e afetadas por um fato delituoso para dialogar sobre o crime e suas consequências. Busca reparação de prejuízos emocionais, morais e materiais e restauração da relação entre vítima e réu. É um procedimento voluntário, “um meio para a formação da cultura de paz” (Disponível em: ). Esse jeito de encarar os seres humanos e suas características adéqua-se bem ao que Jesus propõe na composição de Mateus: uma sociedade voltada para a valorização integral das pessoas e não apenas o quanto elas valem para o sistema.
Uma historinha que pode ilustrar a prédica é a do vendedor de balões: Era uma vez um velho homem que vendia balões numa quermesse. Evidentemente, o homem era um bom vendedor, pois deixou um balão vermelho soltar-se e elevar-se nos ares, atraindo, desse modo, uma multidão de jovens compradores de balões.
Havia ali perto um menino negro. Estava observando o vendedor e, é claro, apreciando os balões. Depois de ter soltado o balão vermelho, o homem soltou um azul, depois um amarelo e finalmente um branco. Todos foram subindo até sumir de vista. O menino, de olhar atento, seguia cada um. Ficava imaginando mil coisas…
Uma coisa o aborrecia: o homem não soltava o balão preto. Então se aproximou do vendedor e perguntou:
– Moço, se o senhor soltasse o balão preto, ele subiria tanto quanto os outros?
O vendedor de balões sorriu compreensivamente para o menino, arrebentou a linha que prendia o balão preto e, enquanto ele se elevava nos ares, disse:
– Filho, não é a cor; é o que está dentro dele que o faz subir.
O que está dentro de cada pessoa e fá-la subir são o galardão, o valor, a herança, a dignidade conferida por Deus – patrimônio que não pode ser retirado nem desvalorizado por nenhum sistema social, cultural ou religioso.
Outra imagem que pode ser usada é a da multa de trânsito por uma transgressão. A teologia da restituição não afirma que a multa não vem. Vem, mas já com o carimbo de PAGA, pelo que Jesus fez na cruz por nós.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
P – Jesus, amigo e irmão de todas as pessoas. Aqui estou porque te busco de todo o coração. Tu viveste a liberdade maior possível. Entregaste tua vida para nosso bem e nossa salvação. Contigo aprendi o que é amar e ser livre.
C – Hoje em dia, com facilidade pensamos que somos livres, porque podemos comprar muitas coisas e encher nossa vida com muitos afazeres. Mas, pensando bem, tem nisso também muita vaidade.
P – Ajuda-me, Senhor, a viver a verdadeira liberdade cristã em humildade e ousadia, com paixão pelo evangelho e pela graça que me faz ser livre em ti.
C – Que eu aprenda a viver o amor para com os meus semelhantes e, se for o caso, que eu aprenda a amar também os meus inimigos. Tem compaixão de mim e liberta-me para a tarefa de anunciar com coragem e fé o evangelho da paz e do perdão.
P – Querido Deus, acolhe meu coração contrito e pequeno diante da tua luz e concede-me caminhos claros em novos horizontes.
Absolvição (P):
Jesus Cristo diz: “Eu dou a vida eterna para as minhas ovelhas. Jamais perecerão, e ninguém as vai tirar das minhas mãos” (Jo 10. 28).
Oração de coleta:
C – Santo e eterno Deus, nós te rendemos graças por este culto. Tu queres servir-nos, enchendo as nossas mãos e agraciando-nos abundantemente com perdão, conforto, consolação. Nós queremos servir-te, aceitando o que nos dás e transmitindo-o pela prática do amor ao próximo. Ajuda-nos a fazê-lo com humildade e na força do Espírito Santo que te pedimos nesta hora. Por Jesus Cristo, teu Filho, nosso Salvador, que contigo e o Espírito Santo vive e reina eternamente. Amém.
Bibliografia
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento Comentado, v. I. Buenos Aires: Ed. La Aurora, 1973.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).