As três pernas da missão
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 10.40-42
Leituras: Jeremias 28.5-9 e Romanos 6.12-23
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: 4° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 28/06/2020
1. Introdução
Se é bom dar notícia boa, Jeremias não se concedeu esse direito. A previsão do futuro próximo não fornecia condições para sentir-se bem, dizendo o que agradaria ao ouvido alheio. Essa parte coube a Hananias, que tomou a liberdade de trocar a realidade nua e crua pelo prazer momentâneo de pintá-la com cores que agradam.
Paulo sabe que não adianta querer tocar o céu com os dedos se a escada está estendida no chão. Explica que, por meio da libertação, deixamos de ser escravos do pecado. A escada foi posta de pé e isso nos tornou escravos de Deus. Agora temos condições de tocar o céu, por isso somos servos de Deus e não da lei. Vamos continuar pecando porque não somos mais controlados pela lei? É claro que não! A escada não pode ser deitada de novo.
Em Mateus 10, Jesus é apresentado como o bom pastor que tem compaixão da parte dispersa do rebanho. Os discípulos de Jesus abraçam a missão porque o bom pastor se compadece das ovelhas desgarradas. O compadecimento de Jesus cria a missão. Na missão aos dispersos, os discípulos recebem os mesmos poderes do mestre: expulsar demônios e curar enfermidades. No capítulo 10 acontece, portanto, a definição do que vem a ser o apóstolo: é o pequeno enviado que recebe a mesma incumbência e o mesmo poder, bem como a mesma perseguição do mestre evangelizador do reino e libertador dos oprimidos.
Esta parece ser a linha que une os três textos: a fidelidade ao compromisso com a realidade (Jeremias), com a novidade de vida (Paulo) e com a missão (Mateus).
2. O texto e a vida
No tempo da minha infância, às vezes a comunidade se reunia em uma forma de culto em que o oficiante não era pastor, era alguém chamado leitor. Acontecia um culto de leitura. Desconfio que era percebido pela comunidade como um culto de segunda categoria. Provavelmente por isso era menos frequentado. O Evangelho de Mateus, quando define a missão dos apóstolos, nivela a importância da atividade dos pequenos com a atividade do mestre. Esse nivelamento acontece em poder e em sofrimento. Assim como o mestre, os discípulos vão curar as enfermidades e expulsar os demônios e, assim como o mestre, serão perseguidos.
Impressiona aquilo que se torna uma espécie de poder central na missão: curar doentes e expulsar demônios. Os apóstolos têm a missão de propagar a novidade do reino de Deus. Eles são portadores dessa novidade. E a tarefa de propagar inclui testemunho dado com novidade de vida levada, isto é, testemunho dado com a vivência do que é proposto. Há que vivenciar a justiça do reino. Essa vivência choca-se com a lei do seguimento da velha religião estabelecida. Por isso a missão inclui também uma resistência ativa à forma de perseguição daí decorrente. O que impressiona é a estratégia proposta para resistir à perseguição. Não é conveniado o combate entre os sujeitos da resistência e os sujeitos da perseguição. Não se propõe combater com novas teorias a lei que sustenta o velho sistema religioso e assim impede a novidade do reino de Deus. O que se estabelece é o discípulo pequeno tornar-se apóstolo pequeno com autoridade equiparada ao mestre no que se refere à cura e ao exorcismo. Quem não aceitar essa autoridade estará sujeito às mesmas consequências advindas da desobediência ao Pai que enviou seu Filho, e que agora está enviando seus discípulos. Também nisso há equiparação.
Os versículos 40-42
Todas as informações acima parecem estar condensadas nos poucos versículos que formam a base da pregação neste 4º Domingo após Pentecostes. O núcleo está na unidade entre Deus, Jesus e a pessoa agente missionária. A unidade está no compromisso e simplesmente reside neste fato: o que vale para um, vale para outro. Esse princípio missionário não é uma singularidade de nosso texto. Repete-se nos quatro evangelhos: Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim; e quem vos rejeitar a mim me rejeita; quem, porém, me rejeitar rejeita aquele que me enviou (Lc 10.16); Qualquer que receber uma criança, tal como esta, em meu nome, a mim me recebe; e qualquer que a mim me recebe, não recebe a mim, mas ao que me enviou (Mc 9.37); Em verdade, em verdade vos digo: quem recebe aquele que eu enviar, a mim me recebe; e quem me recebe, recebe aquele que me enviou (Jo 13.20); Quem receber esta criança em meu nome a mim me recebe; e quem receber a mim recebe aquele que me enviou; porque aquele que entre vós for o menor de todos, esse é que é grande (Lc 9.48).
Temos, portanto, como marca missionária, esse compromisso entre as partes: quem se dispõe a ser agente na missão de Deus tem o exato tamanho de Deus em poder e em sujeição à perseguição. E Lucas ainda traz um componente que está na raiz dessa marca: “o menor de todos é que é grande”. Como diz Gorgulho, trata-se da missão dos pequenos (GORGULHO; ANDERSON, 1981). Por isso valem os critérios de Jeremias, mostrando a Hananias que não adianta bendizer o mal, e de Paulo, mostrando aos romanos que não adianta legalizar a fé.
A missão dos pequenos
Imaginemos alguém, no tempo dos primeiros apóstolos de Cristo, sendo enviado por ordens do imperador romano para missionar em nome da preservação e do crescimento de seu império. Certamente estaria entre suas atribuições a correção de desvios das ordens imperiais, a condenação e punição dos súditos culpados por uma eventual transgressão de tais ordens.
Também é possível imaginar que alguém com o encargo de levar a causa adiante em nossas igrejas, congregações e comunidades, sinta-se incumbido de corrigir quem não tenha cumprido alguma norma estabelecida ou alguma tarefa assumida. Algo assim certamente faz parte do esforço de manter o que se constituiu. Não foi por acaso que a frase cunhada por Zagalo “vocês vão ter que me engolir” pegou o chão fértil da propagação. Na mesma linha estão frases como “vou dizer umas verdades para ele”, “vou mostrar com quantos paus se faz uma canoa”, “o que é teu está guardado” etc. São frases que navegam nas águas do pensamento da imposição do que é correto no sujeito incorreto, no pior estilo colonizador.
Por isso sugiro que a pregação deste domingo não feche o foco no horizonte paroquial, mas abra o foco para o reino de Deus. A instituição de organismos para abrigar o ponto de partida de uma missão tem lá o seu ônus. Isso, porém, não deve, na minha opinião, ser central na pregação sobre Mateus 10.40-42.
Aqui Jesus instrui os pequenos enviados a não viver corrigindo o errado, porém a viver praticando o reino. A missão para a qual Jesus enviou seus discípulos não tinha como atribuição aplicar corretivo em quem estivesse vivendo de modo errado ou praticando um erro. Em lugar disso, a partir de Mateus 10.40-42 e de seu contexto, podemos constatar que o portador e a portadora da missão de Deus têm as seguintes atribuições:
1) Andar em novidade de vida. Quem anda em novidade de vida pratica a coerência entre o seu próprio modo de vida e o modo de vida que sugere a outras pessoas com aquilo que diz e faz (Rm 6). Além disso, em segundo lugar e não em primeiro, quem anda em novidade de vida pode tornar-se referência, exemplo a ser seguido, pois a coerência de vida testemunha uma paz que dá vontade de se ter. Andar em novidade de vida inclui, pois, o testemunho como depoimento (Mt 10.5-13). É depor a vivência em prosa e verso e não passar adiante um produto ensacado, que é como poderia ser compreendida uma norma, uma lei, uma regra, uma exigência do tipo tem que ser assim e não pode ser diferente.
2) Proclamar o reino de Deus. O anúncio do reino de Deus não acontece na base da afirmação de que pode ser que aconteça. Não é na base da afirmação de que talvez seria bom contar com isso (Mt 10.27). Uma proclamação acontece na base da afirmação de que já está estabelecido. Na tensão entre a realização do reino de Deus “já agora e ainda não”, sua proclamação depõe em favor do “já agora”. “Embora haja forças demoníacas a vencer, Deus manifesta seu poder. O mundo não escapou das mãos de Deus. Já agora Deus é Rei e Senhor, embora seu reinado sofra resistência” (BRAKEMEIER, 2019, p. 27).
3) Produzir sinais do reino na vida de outras pessoas. A missão de Deus não só inclui o viver de acordo e a proclamação da realidade do reino, mas também a produção de resultados que confirmam e afirmam a existência do reino. Embora Jesus diga que não veio trazer a paz, mas a espada (Mt 10.34), ele não fornece armas aos discípulos que se tornam apóstolos. Ele lhes confere poder de curar doenças e expulsar demônios. Essa é a produção de sinais do reino na vida de outras pessoas. A missão do reino não se realiza com debates teóricos ortodoxos, mas com semeion, isto é, com sinais que fazem reconhecer o reino de Deus. Jesus, o remetente dos pequenos apóstolos, sabe que o melhor jeito de encarar o embate com os perseguidores emissários do Império Romano é expulsar os demônios e curar os doentes subjugados ao império.
3. Meditação
Quando uma pessoa se destaca localmente naquilo que faz, outra pessoa, hierarquicamente superior, seguindo sua visão de gestora, pinça aquela pessoa do seu local de atuação e a insere em lugar estratégico. Agora a pessoa com atuação local destacada depara-se com uma nova situação, diferente daquela em que se destacou. É desafiada a repetir a proeza da atuação destacada agora em um contexto mais amplo, coordenando a atuação de pessoas que fazem o que ela fazia. O objetivo suposto é atingir outras e mais pessoas. Algo parecido acontece em diferentes instituições. Também na política, o destacado político local costuma ser convidado a candidatar-se a deputado, pretendendo uma atuação regional, um raio mais amplo de atuação.
Não é essa compensação que Jesus promete aos seus enviados, não obstante ele também fale de recompensa (lempsis /rendimento, compensação) quando designa discípulos a serem apóstolos. A promessa de recompensa não é, porém, um pinçar do apóstolo de um lugar menos significante para um lugar mais abrangente. Quem abraça a missão de Deus dada por Cristo é afirmado e confirmado naquilo que faz, onde o faz, com o acolhimento e sendo compensado junto com quem o acolhe.
4. Imagens para a prédica
Um banquinho de três pernas não se torna manco em chão irregular.
As três pernas da missão que se adaptam ao chão irregular são:
– viver a novidade do reino;
– proclamar a existência do reino;
– produzir sinais do reino.
Ou:
– A comunidade é o guarda-chuva da instituição, não o contrário.
– Deus é o guarda-chuva da agência missionária, não o contrário.
– O Batismo é o guarda-chuva da pessoa missionária, não o contrário.
Um banquinho de quatro pernas não se adapta a um chão irregular. A quarta perna pode referir-se a qualquer instituição que pretenda assumir a missão em lugar de Deus, pinçando pessoas da comunidade para serem profissionais da missão e que, pinçadas, não conseguem ajudar Deus a enviar as pessoas batizadas da comunidade.
Ontem acompanhei uma mulher idosa batizada, com dificuldade de caminhar, numa visita à casa de outra mulher idosa batizada, com dificuldade de caminhar. As duas conversaram durante duas horas. Essa atividade vai promover as três pernas da missão durante um bom tempo na vida dessas duas mulheres idosas batizadas, com dificuldade de caminhar. Elas, por algum tempo: 1) vão viver distraídas das maldades deste mundo a partir das doces recordações da boa tarde (novidade); 2) vão pronunciar doces palavras sobre Deus e a igreja a partir das recordações da boa tarde (proclamação); 3) vão sentir menos dor ao caminhar concentradas nas emoções da boa tarde (sinal).
Bibliografia
GORGULHO, Frei Gilberto S.; ANDERSON, Ana Flora. A justiça dos pobres – Mateus. São Paulo: Paulinas, 1981.
BRAKEMEIER, Gottfried. Fazer o bem faz bem: uma introdução à ética. São Leopoldo: Sinodal, 2019.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).