Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: Mateus 12.14-21
Leituras: Isaías 52.7-10 e Colossenses 1.24-27
Autor: Emilio Voigt
Data Litúrgica: Epifania
Data da Pregação: 06/01/2012
1. Introdução
No tempo da Epifania, a igreja celebra a manifestação de Deus no mundo por intermédio de Jesus Cristo. A narrativa da visita dos magos do Oriente (Mt 2.1-12) é a perícope mais conhecida e utilizada nessa época. A referência aos magos indica que a revelação em Cristo alcança toda a humanidade. Também Mateus 12.14-21 testemunha a universalidade da ação salvífica de Deus ao mencionar o anúncio do direito aos gentios. A perícope está em estreita ligação com o evento do batismo de Jesus (Mt 3.17). Nos dois casos, a revelação do filho/servo é obra de Deus.
O texto de leitura do Antigo Testamento traz uma boa notícia ao povo no exílio: Deus reina e está retornando a Sião (Jerusalém). O profeta anuncia que Deus redime seu povo e mostra seu poder às nações. Todos os confins da terra verão a sua salvação. O aspecto do consolo e a abertura para os outros povos constituem pontos de ligação entre a leitura do Antigo Testamento e o texto de prédica. Da mesma forma, Colossenses 1.24-27 tematiza a revelação de Cristo aos gentios.
A delimitação proposta para o texto da prédica é incomum. A maioria das traduções e dos comentários sugere como unidade temática os v. 15-21. O v. 14 é enquadrado habitualmente no contexto da cura do homem da mão ressequida. Na delimitação proposta pela série litúrgica, o v. 14 poderia servir como explicação para o fato de Jesus se retirar (v. 15). Entretanto, sua leitura também pode desviar a atenção. O conflito com os fariseus não é relevante. O foco está na apresentação do servo de Deus e sua missão. Sugiro seguir a divisão mais comum e não considerar o v. 14 como parte dessa perícope.
2. Exegese
O cerne da perícope é a citação de Isaías 42.1-4. O texto de Isaías 42.1-7 já foi abordado em Proclamar Libertação XXI, XXV e XXXV. Embora o Evangelho de Mateus associe a citação de Isaías à atuação de Jesus Cristo, o estudo do contexto do profeta é importante. Os volumes do PL mencionados contêm valiosas informações exegéticas e indicações para a prédica.
Mateus 12.18-21 é a mais longa citação no Evangelho de Mateus. Mas ela não corresponde ao texto hebraico tampouco ao texto grego da Septuaginta (LXX). Vocabulário, formulações e omissões (ex: Is 42.4a – não desanimará nem se quebrará) não permitem determinar exatamente o texto-base da citação. É possível que tenhamos aqui uma tradução ou citação livre do texto massorético, com influências da LXX ou do Targum.
V. 15 – A situação descrita nos v. 15-16, que pode ter influência de Marcos 3.7-12, serve de moldura para a citação. Jesus percebe o plano dos adversários e retira-se dali. O afastamento não indica medo ou fuga, mas aponta para o poder de atração de Jesus: muitos o seguem. Como em Mateus 8.16, todos os doentes são curados. O tempo messiânico, que Mateus liga com a figura do servo de Deus, também é caracterizado por consolo e cura.
V. 16 – O repúdio à publicidade possivelmente não tem ligação com o segredo messiânico de Marcos, mas com a indicação dos traços que caracterizam o servo de Deus no v. 19.
V. 17 – O evangelista explicita que a profecia de Isaías é cumprida em Jesus. Mas o que significa exatamente o cumprimento? O fato de Jesus não querer a publicidade de ter curado todos, de que muitos o seguiram? Possivelmente, a afirmação “para que se cumprisse” não se refere somente aos v. 15-16, mas a toda a atividade do servo, descrita a seguir.
V. 18 – A correspondência grega mais direta do hebraico ebed (servo) seria doulos. Seguindo a LXX, Mateus utiliza o termo pais, cujo primeiro significado é “criança” e, depois, “servo”. A expressão pais reforça a ligação com Mateus 3.17, mesmo que ali seja utilizado o termo hyios (filho). O recebimento do Espírito já foi relatado pelo evangelista em 3.16 e será tematizado logo mais em 12.22-32. Ali os exorcismos são apresentados como comprovação da presença do Espírito. No judaísmo, o derramamento do Espírito era aguardado para os tempos finais. O profeta Joel fala do derramamento do Espírito sobre toda a carne (= todos os povos: Jl 2.28).
A palavra grega krisis pode significar “direito/justiça” (ordem jurídica) ou “juízo/julgamento” (sentença judicial). Com exceção de Mateus 23.33, as ocorrências de krisis no Evangelho de Mateus tendem para o sentido de juízo (cf. Mt 5.21s; 10.15; 11.22; 12.36, 41s; 23.33). Mesmo que esse seja o caso em nossa perícope, o caráter não seria de condenação, mas de salvação. É o que pode ser inferido do v. 21. A partir de Mateus 23.23 e do contexto em Isaías, a tradução “direito/justiça” parece ser mais adequada. Aqui se trata do direito de Deus, respectivamente da justiça de seu reino, que será anunciada e estabelecida em toda a terra.
V. 19 – O caráter de humildade e mansidão do servo de Deus já está prenunciado em Mateus 11.29 (“porque sou manso e humilde de coração”) e será retomado em Mateus 21.5 (“Eis aí te vem o teu Rei, humilde, montado em jumento”). Não contender e não gritar aponta para renúncia à violência. Não se trata de uma característica passiva, mas de atitude ativa que visa à promoção da paz. “Nem alguém ouvirá nas praças a sua voz” pode estar ligado à questão da publicidade no v. 16. Mas poderia também ser um indício de que as pessoas não prestam atenção à pregação de Jesus? A queixa de que o povo não ouve a palavra de Deus não é incomum na Bíblia.
V. 20 – Um caniço quebrado não tem serventia. Um pavio que está soltando fumaça precisa ser apagado e substituído. São lixo sem valor. Mesmo assim, o texto afirma que ambos serão preservados. A que se referem essas imagens? Imagens deixam liberdade para interpretações. Um Targum (Targuns são traduções aramaicas da Bíblia Hebraica) reproduz Isaías 42.3 da seguinte maneira: “humildes como uma cana dobrada não serão quebrados; necessitados como um pavio apagando não serão extintos”. Vemos aqui a ligação da imagem do caniço e do pavio com os humildes e pobres. A formulação presume que o caniço e o pavio seriam esmagados e apagados. Além de fragilizados, pobres e necessitados sofrem ações que os debilitam ainda mais. O servo de Deus preserva aquilo que é considerado descarte pela sociedade. Preservar tem sentido ativo, de compromisso e cuidado. Pois somente com atitude ativa o direito será conduzido à vitória. Deus fará triunfar seu direito não apenas em Israel, mas sobre toda a terra. A identificação do servo com os necessitados ficará ainda mais explícita em Mateus 25.31-46.
V. 21 – Esperar significa aqui “esperança”. Mateus acentua que a esperança de salvação para todos os povos está no nome do servo, ou seja, em Jesus, o Messias. A partir desse texto, é comum apontar para um afastamento de Jesus em relação a Israel. Na verdade, o que percebemos é uma acentuação do caráter universal da missão. A missão dada a Israel para transmitir o direito e a salvação de Deus é assumida por Jesus. É fato que Jesus teve sua atividade pública especialmente dirigida ao povo de Israel. Em alguns casos, até há certa relutância em relação aos gentios. Todavia, esses não são excluídos, assim como Israel não é enjeitado.
3. Meditação
A revelação de Deus traz bênção e promessa. Por isso a Epifania é caracterizada por alegria e júbilo. Mas a Epifania também é chamada ao compromisso. O primeiro ato revelador é a criação. Deus revela sua vontade com palavras criadoras: “E disse Deus: Haja luz; e houve luz” (Gn 1.3). E tudo o que Deus fez era bom! A revelação criadora de Deus concede ao ser humano um papel de destaque e a possibilidade de participar de sua obra. Ao ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, foi confiada a tarefa de cuidar da criação divina.
Deus revela-se a Abraão com a promessa de grande descendência e de uma terra que produz com fartura. A partir desse povo eleito, Deus será revelado a todas as nações. Eleição tem o envio como consequência: “de ti farei uma grande nação, e te abençoarei, e te engrandecerei o nome. Sê tu uma bênção! (…) em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12.2-3).
Deus revela seu nome a Moisés com a perspectiva de libertação do povo da escravidão no Egito. Deus faz uma aliança com Israel para, em seu meio, revelar sua justiça. Revelação é ato de misericórdia! Em resposta, o povo de Israel compromete-se a cumprir a vontade divina. Revelação traz responsabilidade e compromisso!
Com a encarnação de Deus em Jesus Cristo, a concepção de eleição se amplia. Não há somente um povo eleito. Todos os povos podem fazer parte da nova aliança. O mistério, que estivera oculto dos séculos e das gerações, agora se manifestou sem restrições (cf. Cl 1.26). Faria bem, na época de Epifania, acentuar o caráter universal da graça de Deus. Assim como não está restrita a um só povo, a revelação de Deus não está restrita a uma igreja ou a um grupo determinado.
O texto para a prédica fala da revelação do servo de Deus. No contexto de Isaías, a identidade do servo não estava tão determinada, o que abriu várias possibilidades de interpretação. Para Mateus, a identificação de Jesus como servo é inequívoca. Mesmo assim, o acento do texto não é tão cristológico como muitas vezes assumido. A perspectiva do texto ainda é teocêntrica. Trata-se do servo de Deus. E esse servo recebeu o Espírito de Deus e promulgará o direito de Deus. Essas observações não querem diminuir o papel de Jesus como servo, mas lembrar que sua atividade não pode ser desvinculada da ação de Deus, testemunhada na Bíblia Hebraica.
Em Jesus, a manifestação de Deus assume uma forma concreta de ser humano. A concretude da manifestação não está apenas na forma humana. Ela está no objetivo e no modo de agir. O servo veio promulgar e fazer vitorioso o direito de Deus. Não é um direito que quebra e destrói, mas que levanta e resgata dignidade. É o direito que se coloca ao lado do fragilizado. Diante de uma situação de sofrimento, a atuação de Deus representa amparo e cuidado. A atividade de Jesus Cristo demonstra que a graça e a misericórdia são elementos centrais da revelação divina.
Poderíamos transferir o chamado do servo para a tarefa missionária da comunidade cristã? Com o devido cuidado, sim. A ação salvífica de Deus em Jesus Cristo é única, pois justificação acontece somente por meio de Cristo. Mas a comunidade que segue Cristo também segue seu exemplo. Quatro elementos da perícope de Mateus 12.15-21 podem ajudar a refletir sobre nosso papel nesse seguimento:
A revelação – “Eis aqui o meu servo, que escolhi” (v. 18). É o próprio Deus que escolhe e apresenta (revela) o seu servo. No sacramento do Batismo acontece, de certa maneira, uma repetição desse ato. O Batismo marca o início da vida cristã. Nesse momento em que a pessoa é apresentada e integrada à comunidade, também lhe é reconhecida sua filiação divina. Por intermédio do Batismo Deus nos requisita como sua propriedade.
A capacitação – “Farei repousar sobre ele o meu Espírito” (v. 18). A filiação divina vem acompanhada de compromisso. Mas isso não acontece sem capacitação. O Batismo coloca-nos na esfera de atuação do Espírito. Pelo Batismo recebemos o Espírito e somos capacitados para a tarefa.
A tarefa – “Anunciará o direito aos gentios” (18); “fará o direito triunfar” (v. 20). O direito de Deus será vencedor à medida que se estabelecer na terra, ou seja, quando as pessoas praticarem a justiça e a misericórdia, a exemplo do servo de Deus. Os termos “vitória” e “vencedor” estão na moda em círculos cristãos. Não raro, vencer é entendido como assunto meramente pessoal, limitado à segurança da salvação, ao sentir-se plenamente satisfeito, ao êxito nos objetivos, à prosperidade. A vitória pela qual somos chamados a trabalhar tem uma dimensão comunitária e ética.
A forma de atuação – “Não contenderá, nem gritará, nem alguém ouvirá nas praças a sua voz” (v. 19); “não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega” (v. 20). Humildade, paciência e mansidão são valores necessários. Mas não são sinônimos de passividade e não podem ser dissociados da busca pela justiça e promoção da paz.
4. Imagens para a prédica
Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega – Essa citação de Isaías permite trabalhar com elementos bem concretos. Esses elementos podem ser trazidos para a prédica ou incorporados na liturgia. Um pedaço quebrado de taquara, junco ou cana reproduz a imagem da cana quebrada. Pavio de lamparina é pouco conhecido em nosso mundo moderno. Talvez um palito de fósforo queimado seja mais familiar. A partir dessas imagens, pode-se trabalhar a questão: quem são e onde estão, em nossa sociedade e comunidade, as canas quebradas e os pavios que ainda fumegam?
Não se ouvirá sua voz nas praças – Por um lado, essa afirmação aponta para uma característica do servo, que não busca publicidade, não usa estratégias de marketing para chegar a seu objetivo. Por outro lado, é possível que a plateia não o queira ouvir ou que os outros sons e vozes sejam mais altos. Mesmo no ambiente de uma igreja, nem sempre se ouve a voz de Deus. Às vezes, em meio à pregação, ouvimos mais as vozes interiores de nossos problemas, afazeres, planos e sonhos. Caso essa questão quiser ser tematizada, pode-se fazer um “minuto de silêncio” em meio à prédica para levar a comunidade a refletir sobre os sons e vozes que ouve.
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida:
A saudação com a leitura de Mateus 3.16-17 é uma possibilidade de apontar para o tema do culto.
Confissão de pecados:
Lembrar a dificuldade que temos com a preservação da criação, com o anúncio do direito e o cuidado com o necessitado. Como comunidade cristã, recebemos e somos chamados a transmitir adiante a mensagem de Deus. Às vezes, temos receio de aceitar essa tarefa, outras vezes fugimos dela. Muitas vezes, também não sabemos reconhecer os pequenos e silenciosos sinais de concretização do direito de Deus no mundo.
Oração de intercessão:
Ressaltar o aspecto do cuidado como característica do servo de Deus e da comunidade cristã. Em algum momento da oração, pode-se parafrasear a canção “Cuida bem, Senhor”, de Rodolfo Gaede Neto: Senhor: cuida bem das pessoas que estão à minha frente, das pessoas que me seguem no caminho, das pessoas que se encontram ao meu lado. E caso for também de teu agrado, cuida bem de mim, Senhor. Incluir também o nosso compromisso de cuidar dos outros.
Bibliografia
FIEDLER, Peter. Das Matthäusevangelium. Stuttgart: Kohlhammer, 2006. (Theologischer Kommentar zum Neuen Testament).
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus. V. 2: Mt 8-17. Zürich: Benziger; Neukirchen-Vluyn: Neukirchener, 2007. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament).
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).