Sair para semear, confiando na graça de Deus
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Mateus 13.1-9,18-23
Leituras: Isaías 55.10-13 e Romanos 8.1-11
Autoria: Cristina Scherer
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/07/2017
1. Introdução
A parábola da pessoa que sai para semear. Quem já não a ouviu? Quantas vezes já a ouviu? Quantas pregações sobre ela você já fez? Em quantas situações diferentes você a utilizou? O que há de novo sobre essa parábola? São perguntas que nos acompanham quando um texto tão conhecido do evangelho vem ao nosso encontro. Assim queremos deixar que esse texto venha mais uma vez até nós e nos desafie, faça-nos ver o que ainda não vimos e ouvir o que não ouvimos, pois Jesus disse: Quem tem olhos para ver, que veja; quem tem ouvidos, que ouça! Podemos acrescentar: quem tem coração, que coloque a Palavra em prática e seja receptivo a ela! Assim nos colocamos diante dessa parábola com humildade e confiança, a fim de que nos inspire para sempre sair a semear, na confiança da boa e farta colheita com a graça de Deus.
2. Exegese
O texto de Mateus 13.1-9, com os v. 18-23, encontra-se também nos evangelhos de Marcos e Lucas. O capítulo 13 de Mateus apresenta sete parábolas. Interessante é observar que Mateus escreve para uma comunidade judaico-cristã. Para os judeus, os números possuem uma simbologia; no caso, sete significa a perfeição e a totalidade: sete dias da criação; sete anos de fartura e escassez no Egito; o número sete presente no livro de Apocalipse (sete anjos, taças, igrejas) e outras situações. Aqui, neste capítulo, as sete parábolas falam sobre o reino dos céus. Três delas são comuns com outros evangelhos (Mc e Lc): do fermento, do grão de mostarda, do semeador; e quatro são exclusivas de Mateus: do joio e sua explicação, do tesouro escondido, da pérola de grande valor e da rede. Duas possuem explicação: a do semeador e a do joio e do trigo. As sete parábolas de Mateus 13 falam da plenitude do reino de Deus, que deseja cumprir-se neste mundo pela graça de Deus e por nossas ações e decisões.
Nosso texto é uma parábola. “Parábola vem do grego parabolē, verbete formado por duas palavras. Uma delas é para, cujo significado é ‘ao lado de’, ‘ao longo de’, ‘para além de’, como, por exemplo, em parapsicologia. A outra é bolē, que vem do verbo grego que significa ‘jogar’, ‘lançar’. Portanto parábola quer dizer jogar para além de, lançar ao longo de” (GASS, 2014).
Jesus afirma que “aos de fora, tudo se ensina por meio de parábolas, para que, vendo, vejam e não percebam; e, ouvindo, ouçam e não entendam; para que não venham a converter-se, e haja perdão para eles” (Mc 4.12). Jesus sabia que suas palavras, suas parábolas, sua semeadura não encontrariam sempre solo fértil, não encontrariam acolhida, não seriam sempre ouvidas ou lembradas. Ele sabia que muitos não iriam crer e ainda iriam persegui-lo. Mas ele aposta, semeia, lança a Palavra, confia no bom crescimento que provém da ação da graça de Deus neste mundo.
Mateus 11 e 12 são essenciais para entender o que acontece na vida de Jesus e por que ele fala por meio de parábolas em seu ministério. Em Mateus 11.5, quando perguntado se ele era de fato o Messias, Jesus anuncia sua prática libertadora, sua missão, seu compromisso com os/as pequeninos/as do Reino. Ele diz: “Os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”. E convida: “Venham a mim todos e todas que estão cansados/as de suas cargas pesadas, eu lhes darei alívio e descanso, pois sou bondoso e tenho um coração humilde” (Mt 11.28s).
Algumas pessoas aceitam o convite de Jesus e junto dele encontram descanso e alívio, outras apegam-se ao peso da lei, das tradições, não estão abertas para a nova semeadura que ele propõe. Há uma crise instalada. A proposta de Jesus e sua missão não são acolhidas na realidade onde ele vive. As autoridades decidem acabar com a prática de acolhida de Jesus, com o novo jeito de ser, agir e pensar anunciado pelo Messias, que deseja cumprir a vontade de Deus. Decidem acabar com sua missão e prática libertadora. Jesus encontra a oposição das autoridades, que tentam desacreditá-lo e buscam uma forma de “levá-lo à morte” (Mt 12.1-2,14,24). “Pelo fato do reino de Deus não estar sendo acolhido e, ao contrário, ser recebido com indiferença por parte dos religiosos das sinagogas, Jesus sente necessidade de explicar que a culpa não é dele. O semeador joga a semente, mas o resto depende do terreno onde a semente caiu” (BARROS, 1998, p. 75).
2.1 – A parábola e seus verbos
Celebramos o tempo após Pentecostes. Mês de julho é, em algumas comunidades, momento de render graças a Deus pela colheita, pelos frutos da terra, pela boa terra que acolheu a semeadura e é partilhada em mesas e estômagos com alimentos. Envolvidas pela ação do Espírito Santo, somos pessoas chamadas a agir, impulsionadas pelo sopro do vento e pelo calor do fogo (At 2). Deus desafia-nos sempre a agir, a sair para fazer algo em prol de alguém. O Espírito Santo evidencia-se na ação concreta em nosso cotidiano de vida. Nesse sentido, gostaria de lembrar os verbos presentes na parábola do semeador e, a partir deles, deixar-nos envolver pela ação da semeadura em nosso meio, na igreja e fora dela.
V. 2 – Reunir: A multidão que estava em volta de Jesus queria ouvi-lo. Era muita gente. Assim, ele entra no barco a fim de ensiná-los por meio de parábolas. Jesus não faz esse ensino em pé, com empolgação e gritos, porém sentado, demonstrando humildade e mansidão, mesmo diante de um grande número de pessoas.
V. 3 – Falar (por parábolas): Modo único e gostoso de Jesus ensinar, muito comum na cultura judaica, que cativava os ouvintes. Até hoje, nas pregações, as pessoas gostam de ouvir histórias que são tiradas do cotidiano da vida e fazem refletir. É claro que uma história não pode ter mais peso do que a palavra de Deus em si, mas por vezes serve como instrumento que ajuda a compreender a Palavra para que fique gravada com mais facilidade nos ouvidos e corações. Em suas parábolas, Jesus fala sobre o cotidiano da vida. Retira exemplos que giram em torno de três atividades: realidade do campo e do trabalho; realidade da casa e convivência diária; realidade afetiva (cf. BARROS, 1998, p. 75). Quer convidar os/as ouvintes a ampliar, a partir do conhecido, seus horizontes, pensar com um jeito novo e diferente do normal, deixar-se envolver pelo mistério da boa-nova que o reino de Deus traz. Jesus é enfático para com seus ouvintes quando é indagado por que ele fala por meio de parábolas. Ele diz: “A vós outros vos é dado o mistério do Reino de Deus” (Mt 13.11a).
V. 3b – Sair: Lembra a tarefa missionária da igreja. A partir de Pentecostes, podemos sair de nós mesmos, de nossos medos, incertezas, preocupações; sair de nosso individualismo para ir ao encontro de outras pessoas; sair do nosso egocentrismo e colocar-nos no lugar da outra pessoa, com empatia e compaixão; sair de nossos preconceitos, de nossa visão limitada do mundo e pessoas; ampliar os horizontes do reino de Deus em nossa vida de fé, reino que é amplo, acolhedor, inclusivo, festivo (Mt 22.1-14). Sair lembra o movimento de ir ao encontro de pessoas, com braços abertos que abraçam, acolhem, encorajam, fortalecem. Sair é tarefa primária da igreja. Sair lembra missão e ação por meio de gestos e palavras.
V. 4 – Semear: O mesmo que lançar, jogar a semente. Tarefa da pessoa que vive da agricultura no tempo de Jesus. “Na Palestina, a sementeira precede o trabalho de arar a terra. Por isso, na parábola do semeador, é descrito espalhando as sementes sobre o terreno despreparado” (MYERS, 1992, p. 221). Nesse contexto, Jesus usa a imagem cotidiana da agricultura para falar da semeadura de sua Palavra, de seus ensinamentos, de sua missão na região da Galileia e no mundo todo. Afirma que cumpre sua missão com afinco, porém nem sempre suas palavras encontram solo fértil e profundo para que o reino de Deus cresça e frutifique na vida das pessoas.
V. 4, 5, 7, 8 – Caiu: Revela o aspecto da graça de Deus, que age independentemente de nós. “Com essa parábola, Jesus quer ensinar-nos que o Reino é dom de Deus e não depende só de nossos esforços. A semente, a sua palavra de vida, é lançada pelo próprio Deus. A ação do Espírito é como a energia do vento que sopra em todas as partes (Jo 3.8). É como a semente que germina por si só (Mc 4.26-29). E, ainda, a força do Reino é comparável com a energia da semente de mostarda que, sendo ‘a menor de todas as sementes, cresce e se torna maior que todas as outras hortaliças’ (Mt 13.32). Portanto fazer parte da comunidade de Jesus é acreditar nessa graça de Deus que age em e através de nós” (GASS, 2014). Nós somos instrumentos da semeadura de Deus neste mundo, em que o fruto surge onde nem mesmo imaginamos, onde a colheita é farta mesmo quando estamos sem esperança para com o plantio. Deus e sua graça carregam-nos e são maiores do que nossa ação de semear.
2.2 – A explicação da parábola: quatro tipos diferentes de solo
Para a cultura judaica, os números são importantes. Agora nos são apresentados quatro tipos de solos que nos lembram os quatro elementos para a vida, quatro pontos cardeais, quatro evangelhos, quatro vezes dez soma quarenta: quarenta anos no deserto do povo de Israel, quarenta dias no dilúvio, quarenta dias de jejum de Jesus e preparo para assumir sua missão. Para cada tipo diferente de solo, uma ação destaca-se:
1. Comer – as sementes foram comidas por aves predadoras.
2. Queimar – o solo não era rico, profundo, não tinha nutrientes para o crescimento da planta, e o sol queimou os primeiros brotos.
3. Sufocar – os espinhos cercaram a semente que brotou e pouco cresceu. Não houve espaço suficiente para seu crescimento. O que hoje ainda sufoca a boa semente da Palavra em nosso meio?
4. Dar/produzir – remete à farta produção de frutos abundantes: cem, setenta, trinta por um. Aqui a multiplicação anormal para a situação da agricultura no tempo de Jesus simboliza a superabundância escatológica da plenitude divina, superando todas as medidas humanas (MYERS, 1992, p. 222). “O agricultor palestinense tipicamente deveria esperar o resultado de cerca de sete por um; a produção de dez vezes maior seria considerada colheita estupenda. A colheita da parábola, pois, simbolicamente representa o dramático abismo existente nas relações da vassalagem entre o camponês e o senhor da terra. Com semelhante lucro, o agricultor poderia não só comer e pagar seu aluguel, seus dízimos e débitos, mas realmente ainda a propriedade da terra e, assim, pôr termo à sua escravidão para sempre. ‘O reino é como isso’, diz Jesus: ele vê a abolição das relações opressoras de produção que determinavam os horizontes do mundo social do agricultor palestinense” (MYERS, 1992, p. 222-223).
3. Meditação
Anunciamos a palavra de Deus cumprindo o chamado que Deus nos fez na certeza de que frutificará na vida de algumas pessoas, na certeza de que se cumprirá a profecia de Deus neste mundo: “Assim será a minha palavra, que sair da minha boca; ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei” (Is 55.11).
O que significa ouvir a palavra e deixá-la que produza algo novo em nós? Quantas pessoas afirmam-se cristãs, ouvintes e praticantes da Palavra, mas produzem frutos contrários aos do Espírito Santo (Gl 5.22)? O desafio de Pentecostes à comunidade cristã é deixar que o Espírito Santo a conduza, guie, ilumine com seus dons, transforme solos áridos e espinhosos em terras receptivas para o amor e ensino de Jesus Cristo.
Podemos confessar, a partir dessa parábola, que também por nossas próprias ações e decisões a semeadura da palavra de Deus sufoca e não cresce em nossa realidade. Que há pessoas cristãs assim como há diferentes tipos de solo não é novidade. A pergunta que essa parábola faz não é que tipo de solo você e eu somos. Creio que Jesus queria que todos os seus ouvintes deixassem a Palavra e seus ensinamentos transformá-los. Então a pergunta pode ser outra: Que transformação, a partir da graça de Deus, a Palavra gera em nosso viver? O que diariamente a palavra de Deus nos revela que nos atinge em nosso modo de ser, pensar, agir no mundo? Como estou aberta, receptiva para que a palavra de Deus aja em mim, por meio de mim e para mim?
No meio comunitário cristão, encontramos pessoas que se dizem assíduas participantes, mas não deixam que a Palavra transforme suas vidas. Ela age, ela caiu em diferentes tipos de solo pela ação graciosa de Deus, pois por nossa própria força, capacidade ou competência nada podemos fazer para que haja bons frutos. É o Espírito Santo que age e opera em nós (cf. explicação de Martim Lutero do 3º Artigo do Credo Apostólico).
Jesus, mesmo sabendo de seu oponente diante de sua missão, não receou. Nós hoje, como igreja e comunidades cristãs, presenciamos muitas dificuldades e tentações que nos assolam: desânimos, dúvidas, desencorajamento, sofrimentos, exclusões, falta de comunhão e partilha verdadeira, falta de profecia diante da realidade, falta de amor e compromisso com a igreja. Nem por isso vamos deixar de semear, de lançar a semente, de contar a parábola, de anunciar o evangelho, de proclamar a boa-nova da salvação no mundo de aves predadoras, espinhos sufocantes, solo infértil, sol escaldante. Ajamos com amor e confiança na graça de Deus, na certeza de que haverá abundância de frutos, haverá boa colheita, pois ela não depende de nós, mas da graça e do amor de Deus, que são muito maiores do que nossa vontade e capacidade de semear a boa palavra.
Jesus convida-nos, com sua parábola, a confiar mais na graça de Deus, na semeadura, na boa esperança da produção de frutos, independentemente de nosso esforço ou capacidade em anunciar a Palavra. Deixemos Deus ser Deus! O texto de Mateus convida-nos a confiar que a palavra de Deus segue transformando realidades e vidas, comunidades, para que sejam mais abertas, inclusivas, acolhedoras, vivenciadoras do amor, paz e perdão, inaugurados por Jesus Cristo.
4. Imagem para prédica
Elas levam a vida no cabelo
“Por mais negros que crucifiquem ou pendurem em ganchos de ferro que lhes atravessam as costelas, são incessantes as fugas nas 400 plantações da costa do Suriname. Selva adentro, um leão negro flameja na bandeira amarela dos cimarrões. Na falta de balas, as armas disparam pedrinhas ou botões de osso; mas a floresta impenetrável é o melhor aliado contra os colonos holandeses. Antes de escaparem, as escravas roubam grãos de arroz e de milho, pepitas de trigo, feijão e sementes de abóbora. Suas enormes cabeleiras viram celeiros. Quando chegam nos refúgios abertos na selva, as mulheres sacodem cabeças e fecundam, assim, a terra livre. Elas levam a vida nos cabelos” (Eduardo Galeano, 100 Relatos Breves, p. 38).
5. Subsídios litúrgicos
Versículos bíblicos que poderão ser usados durante a liturgia do culto
“Que as palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, ó Senhor!” (Sl 19.14).
“Se nos calarmos, as próprias pedras gritarão” (Lc 19.40).
“Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que espada alguma de dois gumes, e penetra até a divisão da alma e do espírito e das juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e intenções do coração” (Hb 4.12).
Para a motivação da confissão dos pecados
“Para chegares ao que não sabes, hás de ir por onde não sabes.
Para chegares ao que não gozas, hás de ir por onde não gozas.
Para vires ao que não possuis, hás de ir por onde não possuis. Para vires a ser o que não és, hás de ir por onde não és.
Para vires a saber tudo,
não queiras saber coisa alguma. Para vires a gozar tudo,
não queiras gozar coisa alguma. Para vires a possuir tudo,
não queiras possuir coisa alguma. Para vires a ser tudo,
não queiras ser coisa alguma.” (São João da Cruz –1542-1591)
Motivação para o Glória/Louvor
“É a graça que me encoraja quando minha alma está abatida. É a graça que me sacia quando minha alma está sedenta.
É a graça que me diz quem eu sou de verdade quando gostaria de me autopromover.
É a graça que me lembra dos meus deveres quando me esqueço do sentido de minha vida.
É a graça que me conforta quando estou abalado/a. É a graça que me ergue do chão quando caio.
É a graça que garante o meu futuro quando estou pessimista.” (Johnson Gnanabaranam)
Bibliografia
BARROS, Marcelo. Conversando com Mateus. CEBI: São Leopoldo; São Paulo: Paulus, 1998.
GASS, Ildo Bohn. Mateus 13,1-23: A semente que cai em diferentes solos. Artigo on-line do CEBI, 2014.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. Paulinas: São Paulo, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).