Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 16.13-20
Leituras: Isaías 51.1-6 e Romanos 12.1-8
Autor: Everton Ricardo Bootz
Data Litúrgica: 11º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/08/2014
1. Introdução
O texto de Isaías é do Dêutero-Isaías (capítulos 40-55) ou seja, durante a aspiração de esperança movida pelas vitórias de Ciro na Babilônia. O término do exílio está próximo. Isso trazia alento para a tarefa que estava adiante: reconstruçãodo templo e da cidade de Jerusalém. O templo sobre o monte de Sião (v. 3) havia sido destruído, assim como toda a cidade de Jerusalém. Terá início a reconstrução, na qual o deserto vai transformar-se em Éden (jardim). O v. 4, que introduz o tema central, pode ser interpretado assim: vocês foram exilados porque não obedeceram à lei, ao pacto davídico; eis agora uma nova oportunidade, uma nova lei, uma nova justiça. O povo bronco é como pedra bruta, que é cortada para a nova construção (v. 1).
O texto de Romanos fala dessa nova vida, uma vida comunitária, não individualizada, como povo de Deus. Para tanto, é necessária uma renovação mental, ou seja, uma nova abordagem da vida e de como vivenciá-la, tal qual em Isaías. É imprescindível uma reconstrução do zero. Há uma nova lei: vive-se para o outro agora, não mais para si. Somos insuficientes enquanto agentes individuais. Enquanto coletividade, nossas diferentes potências complementam-se, tornando a vida comunitária possível, a proposta do reino de Deus viável. O todo é maior do que a soma de suas partes.
O texto de Mateus retoma o tema da pedra, presente em Isaías, e o tema da importância da coletividade em Romanos. Jesus leva em conta o que as pessoas pensam dele, o que os discípulos pensam dele. Leva em conta a importância de cada discípulo para a construção do Reino, em especial, nesse texto, a importância de Pedro como pedra para a nova construção social.
2. Exegese
O Evangelho de Mateus é uma versão propagandística das primeiras comunidades cristãs, a fim de que sua proposta evangélica não sucumbisse entre os escombros de Jerusalém. Em 70 d.C., a cidade de Jerusalém foi destruída pelo futuro imperador Tito. A classe sacerdotal judaica, juntamente com os saduceus e os escribas, foi desmantelada, a despeito de o grupo dos fariseus ter sobrevivido. A desesperança era grande, também entre os novos conversos (judeu-cristãos). Surge então o Evangelho de Mateus com o intuito de resgatar a esperança de que Jesus Cristo ainda era uma ideologia religiosa viável.
A autoria do texto é desconhecida, mas a presença do pensamento das primeiras comunidades cristãs da Palestina é forte. O Evangelho de Mateus quer introduzir a imagem de Jesus Cristo como a de um judeu de linhagem histórica, como sendo o Messias profetizado no Antigo Testamento, para que os judeus ainda não conversos tivessem ânimo para converter-se. Muitos judeus tradicionais estavam desanimados com a própria fé diante da destruição e perseguição perpetrada pelos imperadores romanos. O Evangelho de Mateus surge alguns anos depois da queda de Jerusalém, por volta de 80 d.C., como uma alternativa esperançosa para essa parcela da sociedade na Palestina.
Essa introdução é importante, pois a perícope em estudo é um exemplo de como o autor do evangelho introduz essa proposta evangelística. O Evangelho de Mateus pode ser dividido em três grandes ciclos: 1º ciclo: 1.1-16.20; 2º ciclo: 16.21-25.46; 3º ciclo: 26.1-28.20. O 1º ciclo é composto por textos que proclamam o reino de Deus na Galileia; o 2º ciclo, por textos que mencionam o caminho de Jesus em direção a Jerusalém e a predição da paixão; o 3º ciclo, por textos da narrativa da paixão e pelo relato da ressurreição. Nossa perícope situa-se bem no final do primeiro ciclo, como que introduzindo o segundo. É uma perícope conectiva. Essa posição estratégica é proposital à medida que introduz Pedro como um importante articulador judeu da fé cristã em Jerusalém e na Palestina, por conseguinte.
Nossa perícope é uma aplicação do texto de Marcos 8.27-30 com um fim particular. Nesse texto original, os v. 17 e 19 não estão presentes; nem depois em Lucas (Lc 9.18-21). São os versos em que Pedro é escolhido por Jesus como seu grande sucessor (v. 17), comparando-o e nominando-o como uma pedra (v.18), sobre a qual sua igreja será edificada; um verdadeiro Hermes, intermediando Deus e os seres humanos (v. 19). A igreja medieval interpretou os v. 17-19 como base para a eclesiologia papal. Contudo a intenção do articulador textual era mais provinciana. Pedro havia sido o grande articulador da fé cristã na Palestina e, em especial, em Jerusalém. Paulo, por outro lado, havia sido o grande articulador da fé cristã fora da Palestina. Enquanto a fé cristã vingava extraordinariamente na diáspora, a mesma definhava na Palestina após 70 d.C.
Na época em que o Evangelho de Mateus foi redigido (80 d.C.), tanto Pedro como Paulo já estavam mortos. A ideia era reforçar a imagem de Pedro entre as primeiras comunidades na Palestina, abaladas pela destruição de Jerusalém, província onde Pedro teve forte influência nas primeiras duas décadas do cristianismo. Assim, esses versos (17-19) podem ser considerados um adendo posterior, acrescido pelo autor do evangelho propositadamente, a fim de exaltar Pedro. Em Marcos, a originalidade textual é preservada, ou seja, logo depois da confissão de fé de Pedro (v.16) segue a reprimenda de Jesus (v. 20). Explicitado esse ponto, podemos verificar os outros versículos de nossa perícope.
A cidade mencionada bem no início (v.13), Cesareia de Filipe, é relevante. Para concluir esse primeiro ciclo, Jesus encontra-se no extremo norte da província da Galileia, perto do monte Hermon, nascente do rio Jordão. Essa cidade foi construída pelo tetrarca Filipe em homenagem ao imperador Augusto. Perto dali, Herodes, o Grande, pai de Filipe, construiu um colossal templo também para o imperador Augusto. É sintomático perceber como o autor de Mateus situou nosso texto de forma a instituir não apenas Jesus como o Cristo (v.16), filho de Deus (título reservado apenas aos imperadores), como também Pedro como o possuidor das chaves do reino de Deus, exatamente num lugar que encarnava o poder político de adoração aos imperadores.
O v. 14 introduz a concepção popular de Jesus, comparável a João Batista, Elias, Jeremias e outros profetas de igual categoria. Essa popularidade mostra a impressão que Jesus projeta na população da Galileia pelo fato desses três personagens bíblicos terem sido corajosos, de devoção singular, profundamente comprometidos com valores socialmente relevantes, homens de grande simplicidade e severa autodisciplina. No v. 15, Jesus procura saber qual sua imagem entre os discípulos. A resposta vem pela boca de Simão, representante dos doze discípulos: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. O que tem perturbado os estudiosos é a resposta de Jesus frente a essa confissão de fé (v. 20): advertiu os discípulos para não divulgar sua natureza cristológica, ou seja, messiânica. Messias era o “ungido” de Deus, pessoa capaz de purificar outros, a ponto de ter acesso livre a Deus Pai.
O termo original grego do verbo advertir (v. 20) pode ser traduzido como falar com raiva, falar solenemente, finalizar algo ou prevenir algo de ocorrer. Pode-se até interpretar que Jesus estava com raiva de Pedro, mandando que se calasse, já que apenas três versículos depois Jesus o repreende ferozmente (v. 23: Arreda, Satanás), nominando-o novamente de pedra, mas dessa vez como de tropeço. Seja como for, o texto deste domingo não deixa de ser uma expressão de fé tanto da população como dos discípulos sobre a prática libertária de Jesus.
3. Meditação
Pelo fato dos v. 17-19 serem uma intercalação textual, sugiro trabalhar apenas com os versos restantes, essencialmente com as confissões de fé da população (v. 14) e de Pedro (v. 16). Sugiro trabalhar com os personagens mencionados (João Batista, Elias e Jeremias) e sua possível interpretação simbólica para os ouvintes eclesiais. Sugiro levar em conta também a situação das comunidades primitivas de Mateus: desoladas pela destruição de seu sistema religioso e social em 70 d.C., sendo Jesus a proposta de renovação de esperança messiânica (v. 16).
Destarte, poder-se-ia iniciar a meditação retratando a situação da Palestina após 70 d.C. com a destruição completa do templo (Isaías 51), da cidade de Jerusalém e do judaísmo, assim como concebido até aquela data. Trazer para os dias de hoje, comparando a realidade de outrora com fatos atuais similares, os quais também acarretam desesperança social e depressão pessoal: corrupção política (Copa do Mundo de Futebol 2014, ano eleitoral), desequilíbrio ecológico, ideologias religiosas retrógradas, crise financeira mundial etc. Também mencionar crises particulares: desemprego, separações familiares, enfermidades, limitações de diferentes ordens.
Fazer um redirecionamento temático, apontando que há uma resposta para cada uma de nossas desesperanças. A resposta é a fé em Jesus Cristo como Filho do Deus vivo (v. 16). Esse Deus manifesta-se de diferentes maneiras, a exemplo de diversas pessoas guiando a humanidade através da história com mão forte. Então conectar a atuação de Deus em nossas vidas, social e particularmente, através dos três personagens do v. 14. Assim como o povo galileu esperava que Jesus estivesse à altura de responder a suas necessidades sociais e particulares, assim também nós podemos ter a certeza de que Cristo é a resposta para todos os nossos males.
a – João Batista pode ser interpretado como aquele personagem histórico que exige conversão. O batismo era símbolo de morte (afogamento) e renovação de vida (ressurreição): morte de antigos valores (sociais, ideológicos) e renovação para outros valores de vida. Se a realidade nos confronta com a certeza de que este mundo está perdido, então a fé é aquela força que resiste e proclama: Mas um outro mundo é possível! João Batista é aquela característica em Jesus que reverte a situação, primeiro dentro de nós, depois fora de nós, mediante uma práxis evangélica. É a conversão diária.
b – Elias pode ser interpretado como aquele personagem histórico que exige culto a Deus em detrimento do culto a outras forças que nos rodeiam. No século IX a.C., Elias lutou contra a política de boa vizinhança que permitia o culto a Baal, o deus das estações, do plantio e da colheita. Que forças nos seduzem hoje em dia? Somos servos do deus Mamon? Do deus da beleza – Adônis, Vênus? Somos workaholics? Podemos lembrar as palavras de Martim Lutero: “Onde está o seu coração, lá está seu deus” (Mt 6.21).
c – Jeremias pode ser interpretado como aquele personagem histórico que exige um compromisso persistente. Jeremias lutou para que o povo voltasse a obedecer à aliança feita com Deus antes do desterro babilônico. Infelizmente fracassou. Mesmo diante da impossibilidade de êxito, Jeremias nunca perdeu as esperanças, mantendo-se à altura de sua tarefa como profeta: denunciar a corrupção político-social e anunciar a concretização do reino de amor e de justiça paulatinamente entre nós, a despeito dos reveses.
O v. 14 também menciona que algumas pessoas comparavam Jesus a outros profetas. Sinta-se livre para aportar outro personagem profético com quem você se sinta mais conectado. Enfim, concluindo a meditação, pode-se ressignificar o v. 20, que nos diz para refrear o anúncio do evangelho, com o v. 20 do capítulo 28 de Mateus, a grande comissão (Mt 28.19-20), que nos incentiva a fazer exatamente o contrário.
4. Imagens para a prédica
Símbolos: Como sugerido na meditação, há três figuras históricas importantíssimas para o cristianismo e para esta prédica: João Batista, Elias e Jeremias. Um símbolo visual para João Batista é a água de nossas pias batismais ou a própria pia (se há Batismo, atrelá-lo à imagem de João Batista). Elias pode ser sinalizado com o próprio templo no qual se está cultuando. Jeremias, por sua vez, pode ser sinalizado com um objeto de anúncio: megafone, corneta, trompete, uma folha de papel (resma) enrolada em forma de cone, por onde emitimos algumas palavras de anúncio.
História: Uma história que pode ajudar é “Fazendo a Diferença”, encontrada na internet, onde uma pessoa devolve estrelas-do-mar espalhadas pela praia ao mar num trabalho aparentemente em vão, podendo ser relacionada com a temática de Jeremias.
5. Subsídios litúrgicos
Os textos fornecem versos passíveis de serem usados em diferentes partes da liturgia. Assim, sugiro os seguintes subsídios litúrgicos.
Versículo de abertura:
“Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus” (Rm 12.1s).
Absolvição dos pecados:
“Porque o Senhor consolará a Sião; consolará a todos os seus lugares assolados e fará o seu deserto como o Éden e a sua solidão como o jardim do Senhor; gozo e alegria se acharão nela, ação de graças e voz de cântico” (Is 51.3).
Oração do dia:
“Querido Deus, somos teu povo e nação santa; queremos atender, inclinando nossos ouvidos a ti; porque de ti sairá a lei, sendo luz e estabelecendo a justiça entre nós (a partir de Is 51.4). Fala Senhor, porque teu povo te escuta!”
Confissão de fé:
“Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16).
Bibliografia
EISELEN, Frederic Carl; LEWIS, Edwin; DOWNEY, David G. The Abingdon Bible Commentary. New York: Abingdon Press, 1929.
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. 17. ed. São Paulo: Paulinas, 1982.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).