Criança, utopia e Reino dos Céus
Proclamar Libertação – Volume 46
Prédica: Mateus 18.1-5
Leituras: Isaías 55.6-11 e Hebreus 13.8-9b
Autoria: Vernei Hengen
Data Litúrgica: Véspera de Ano-Novo
Data da Pregação: 31/12/2021
1. Introdução
Se você está lendo esta mensagem, é porque sobreviveu à pandemia. Somos sobreviventes. A pandemia virou o mundo de cabeça para baixo. Os dois últimos anos não foram fáceis para ninguém. No Brasil, além da pandemia, houve negligência, indiferença, omissão, desorientação e má vontade política. O sofrimento se abate sobre a maioria da população. Cenários catastróficos!
Estamos finalizando o ano 2021. Não foi fácil fazer essa travessia. Mais um ano difícil. Estamos passando por grandes desafios: na vida, na economia, tentando manter-nos emocionalmente saudáveis. Muitas mortes, milhares de famílias despediram-se e choraram seus entes queridos. A luz de esperança veio com a vacinação. Neste fim de ano, podemos olhar para o caminho trilhado com gratidão, mas também trazer à memória como foi penoso e difícil fazer essa travessia.
Uma das leituras para este domingo é Isaías 55.6-11. O profeta desafia o povo a buscar a Deus. Chama a uma mudança de vida, a deixar-se guiar e orientar por ele. Deus quer vida e liberdade para todo o povo. Esse projeto é revelado a nós pela Palavra, que gera vida e concretiza sinais do Reino de Deus. Lembrando que a boa semeadura precisa sempre acontecer. Confiamos, como diz o v. 10, que a Palavra de Deus sempre cumpre com o seu propósito.
A outra leitura é da Carta aos Hebreus (13.8-9b). Jesus é Senhor ontem, hoje e sempre. Por isso é preciso manter-se firme e fiel a ele, seguir seus ensinamentos, ter os olhos fixos em Jesus e testemunhá-lo.
A partir desses textos e do texto de pregação (Mt 18.1-5), acentuaremos os valores do Reino de Deus para nosso testemunho de fé. Ênfases: a) olhar para o ano que estamos finalizando, em retrospectiva. Podemos comparar a um retrovisor. Mas com os olhos no horizonte. As crianças são sinais/símbolos de utopia; b) em tempos difíceis, como os que estamos vivendo, é necessário resgatar valores do Reino de Deus. As crianças podem nos auxiliar a trilhar esse caminho. Jesus coloca uma criança no centro da roda.
2. Considerações exegéticas
O Evangelho de Mateus faz muitas referências ao Antigo Testamento e utiliza uma linguagem mais rebuscada do que a de Marcos. Coloca Jesus como Messias de Israel, mas que não foi acolhido entre os seus. Apesar de rejeitado, Jesus é Messias enviado aos judeus, morrendo na cruz como o rei de Israel. O autor é Mateus, conhecido como Levi, coletor de impostos. Foi escrito por volta do ano 80 d.C. O Evangelho de Mateus tem propósito catequético. As palavras de Jesus querem ensinar uma comunidade cristã de origem judaica.
O texto de prédica para a véspera de ano-novo (Mt 18.1-5) fala do Reino dos Céus. Jesus usou uma criança como ilustração de fé, serviço e humildade. A criança é referência.
Na Bíblia Edição Pastoral, temos o seguinte comentário sobre Mateus 18.1-5: “A comunidade cristã não é reprodução de uma sociedade que se baseia na riqueza e no poder. Nela, é maior ou mais importante aquele que se converte, deixando todas as pretensões sociais, para pertencer a um grupo que acolhe fraternalmente Jesus na pessoa dos pequenos, fracos e pobres” (p. 1.263).
A criança está no centro. É referência. É parâmetro de humildade, fé e serviço. É indicação para salvação. Nosso texto é curto, conciso e objetivo. Isso nos ajuda muito. Na dimensão exegética, recomendamos os auxílios homiléticos de Antônio C. Ribeiro, em PL 37 (2012), p. 48-53, e de Fernando Henn, PL 38 (2013), p. 310-313.
3. Meditação
O tema gerador para o diálogo entre “os adultos” do texto acontece a partir de uma pergunta: quem é o maior no Reino de Deus? A pergunta geradora faz a cena acontecer daquela maneira. Portanto perguntas precisas são importantes para o ensino e a aprendizagem.
Jesus responde com um gesto, ao colocar uma criança no centro da roda, e com palavras. Chama os ouvintes a ser como uma criança, viver como uma criança, servir sem pensar em recompensa e servir em humildade.
Jesus nos chama a nos tornarmos crianças. Ele inverte os papéis. É assim no Reino de Deus. Também nos chama a semear sinais e valores desse Reino em nosso mundo.
As palavras bíblicas têm poder curador, restaurador. Alimentam a fé e a esperança. Elas nos dão forças para reorganizar a vida e promover rompimentos. Muitas vezes, elas nos confrontam. Palavras bíblicas, normalmente, vêm carregadas de exemplos e simbologias. Elas nos auxiliam nos processos de transformação, de moldar a vida.
Estamos no final do ano: podemos olhar para o ano que passou com gratidão a Deus pela caminhada. É preciso recordar de como essa travessia foi difícil. Para falar da travessia durante a pandemia, recorro à palavra resiliência, assim definida por Lothar Hoch: “Na minha compreensão, resiliência é a capacidade humana de extrair do íntimo do seu ser uma reserva extra de forças para superar as dificuldades. É como se Deus tivesse colocado no fundo da nossa alma, um ‘tanque reserva’! O importante é que saibamos disso e acreditemos nisso. Em outras palavras, quando achamos que o combustível da vida esteja no fim, podemos contar com uma força extra, quase secreta, que habita em nós” (HOCH, 2019, p. 176).
Sim, podemos contar com uma força extra, quase que secreta, que habita em nós. É o que muitos de nós temos experimentado nessa interminável pandemia.
Estamos no último dia do ano civil. Aos meus olhos, vale a pena investir nesse resgate de como as pessoas, grupos e comunidades fizeram essa travessia, essa caminhada na pandemia. O final do ano nos ajuda a “fazer o balanço”!
O que dizer à comunidade? Agradecer pela proteção é uma alternativa, pois estamos vivos. Agradecer pelos nossos familiares que sobreviveram e solidarizar-nos com aqueles que sofreram perdas; agradecer pelos contagiados que se recuperaram; agradecer que temos “o pão nosso de cada dia”; agradecer que nossa comunidade de fé deu um belo testemunho nesse tempo de pandemia. A diaconia foi protagonista, com solidariedade e empatia.
Também vivenciamos muitas perdas, muita dor, muito sofrimento. Muita falta de solidariedade e empatia. Muita divisão, rancor e muitos muros foram construídos. E muitas mortes!
Onde e como fomos atingidos? Olhar no retrovisor e fazer um balanço de como fizemos essa travessia, nesse ano, a partir das diversas dimensões: física (nosso corpo), intelectual (conhecimento), emocional (sentimentos), social (nossa relação com o exterior), afetiva (nossa relação com outras pessoas) e espiritual (nossa relação com Deus, fé/espiritualidade).
Quem é o mais importante no Reino dos Céus?
a) O Reino de Deus apresentado por Jesus como uma criança
Em seu livro “Jesus como terapeuta”, Anselm Grün afirma: “Onde o Reino de Deus estiver em nós, estamos livres de padrões antigos, das expectativas e dos julgamentos das pessoas. Lá somos completos e sãos. Ferimentos e doenças não podem afetar nosso espaço mais íntimo. Lá encontramos nosso ser original e autêntico, entramos em contato com a imagem original e imaculada que Deus tem de nós. Quando entramos em contato com essa visão singular de Deus, nossa vida começa a fluir, a florescer e a dar frutos. Essa imagem original é como uma fonte que jorra em nós e nos fortalece, onde o Reino de Deus, já está em nós, somos puros e claros, nem mesmo a culpa consegue nos atingir” (GRÜN, 2018, p. 200).
O foco do livro é outro, mas nos ajuda muito. O excerto, citado acima, nos oferece uma boa janela pela qual podemos espiar o nosso texto. O Reino de Deus é diferenciado. Jesus, em nosso texto, quando nos apresenta o Reino de Deus como uma criança, rompe com os padrões de sua época. As amarras são rompidas. Há libertação.
b) Crianças são sinais da utopia
“As crianças são a parábola da utopia. Esta não está restrita a elas. Mas irradia delas […] as crianças são sinais destas denúncias e desta esperança” […] “Estes (reis e poderosos) apostam em armas e em estratégias militares. O profeta aposta no inverso. Este inverso está no reverso da história. ‘Brotos’ e ‘renovos’, meninos e meninas são sinais e símbolos de que a utopia renasce deste reverso” (SCHWANTES, 2012, p. 233).
Em seu comentário sobre Isaías 6-9,11, Schwantes nos afirma que as crianças são um símbolo para o profetismo. Da mesma forma também para Jesus, conforme o nosso texto. As crianças são sinais, representam utopias. Precisamos de utopias e crianças para podermos sonhar, pois vivemos tempos nefastos em nosso amado e violentado Brasil!
Podemos afirmar: em um país como Brasil, há crianças abandonadas, maltratadas, com pouco (ou nenhum!) acesso às dimensões básicas para viver. Jesus valoriza as crianças e as coloca no centro. Dá a elas o privilégio de serem sinais do Reino de Deus.
Crianças e adolescentes formam uma parcela da sociedade que mais sofre e terão perdas irreparáveis com a pandemia. Sofrem com perdas de familiares (pais, avós, irmãos). Perderam a convivência com amigos e colegas, sem ensino presencial. Sofrem, pois em muitos casos só puderam interagir com telas. A falta de convivência e o ensino remoto têm trazido prejuízos gigantescos às nossas crianças e adolescentes. Cabe a lembrança de que uma parcela grande da população brasileira está lutando para ter o que comer. Famílias com poucos recursos e tempo para acompanhar as crianças nas atividades escolares. A prioridade é sobreviver.
c) Crianças espelham o rosto de Cristo
“Por que, então deveria eu procurar Cristo lá longe, ou até mesmo subir aos céus na ânsia de encontrá-lo? Tenho diante de mim tantas crianças cristãs que são a moradia de meu amado Senhor Jesus Cristo. Vendo-as, estarei vendo o próprio Cristo. Se ouço o que dizem, estarei dando ouvidos a Cristo. Se lhes ofereço um copo d’água, estarei dando de beber a Cristo. Se lhes der de comer, estarei dando de beber a Cristo. Se lhes dou o que vestir, estarei vestindo a Cristo. E assim, na Igreja Cristã, terei o mundo cheio de Cristo. Toda vez que olho e vejo crianças cristãs, vejo a Cristo. Se eu pudesse crer nisso!” (LUTERO, 1983).
Lutero nos lembra de que o rosto de Cristo está estampado no rosto das crianças. As mais fragilizadas precisam ser socorridas, pois Cristo está nelas. Lutero nos diz que precisamos um “mundo cheio de Cristo” e que as crianças são a moradia de nosso Senhor.
O Reino de Deus é apresentado por Jesus com uma criança, pois as crianças espelham o rosto de Cristo e são símbolos de utopia. “Em cada criança vem algo novo ao mundo. Conhecemos a magia desse novo começo da vida no nascimento de uma criança e, por conseguinte, devemos manter aberto para toda criança o seu próprio futuro. A mensagem das crianças aos adultos tem o seguinte teor: ‘Se não vos tornardes como crianças, não entrareis no Reino dos Céus’ (Mt 18,3)” (MOLTMANN, 2012, p. 95).
4. Pregação
a) A difícil travessia e a oportunidade para o novo
Resgatar como foi dolorosa a travessia de 2021. Fazer uma retrospectiva com os olhos no horizonte, pois a criança é símbolo da utopia. Ter sensibilidade para essa retrospectiva. Perceber que as pessoas foram sustentadas e carregadas pela mão de Deus nesse ano. Muitos foram os gestos diaconais, de cuidado com a vida, de solidariedade, de aproximações familiares, de empatia. Aqui há a possibilidade de resgatar as ações diaconais da comunidade local e seus grupos. A pandemia nos desafiou e nos proporcionou novas descobertas. Suspeito que ficamos mais seletivos, priorizamos o que é precioso. O fim de ano nos dá oportunidade para rompimentos de círculos e pensamentos viciosos; oportunidade para o novo. Quando Jesus coloca uma criança no centro, aponta para o rompimento e para inaugurar algo novo. Portanto o novo ano é boa e bela oportunidade para romper e inaugurar o novo.
b) Uma criança no centro da roda
No texto crianças são impedidas de chegar perto de Jesus. Jesus é isolado. Jesus é cercado pelos adultos. Cabe a nós e a nossas comunidades refletirmos como impedimos pessoas (penso nas fragilizadas e excluídas) de chegarem a Jesus. Muitas vezes nos comportamos como os discípulos: “tomamos posse” de Jesus, o cercamos e o isolamos. Dessa forma colocamos impedimentos ao Evangelho, de forma especial à comunhão de pessoas.
Quais as formas que usamos para isolar pessoas? Quais são as frestas, fachos de luz, como nos afirmou o saudoso Schwantes, que trazem esperança e nos movem? Colocar uma criança no centro é sinalizar para o rompimento. É apontar para o novo. Lembremo-nos de que o rompimento acontece somente quando há possibilidade para o novo. Crianças representam, anunciam e inauguram o novo, pois carregam consigo sonhos e esperança.
Jesus foi criança. A história de Natal, há pouco vivida, nos lembra disso. Em nossas comunidades, onde há crianças envolvidas, percebemos comunidades ativas e vibrantes. Em nosso país, as crianças precisam ser priorizadas. Crianças devem ser colocadas no centro para que adultos possam se espelhar nelas. Há contraste entre o mundo adulto e de criança. Jesus tem uma atitude pedagógica: coloca uma criança no centro. Faz com gesto, não argumenta somente com palavras.
Crianças espelham inocência, verdade, humildade. Crianças não têm orgulho. Elas se mostram por inteiro, sem maldade, de forma simples e humilde. A raiva é passageira. Podemos nos espelhar nelas em humildade e alegria.
c) As crianças nos inspiram a sonhar com um futuro melhor
As crianças não se preocupam tanto com o futuro, vivem o momento, suas ações são imediatas. Sofrem menos de ansiedade que nós adultos (quem sabe é uma meia verdade!).Viver como as crianças, sem tanta ansiedade, quem sabe não é uma boa alternativa para a vida pós-pandemia.
O texto nos faz refletir sobre o Reino de Deus, que é comparado a uma criança. Joga luz e esperança para dentro de nossa realidade. Moltmann afirma: “A esperança cristã se baseia na ressurreição de Cristo e inaugura uma vida à luz do novo mundo de Deus” (MOLTMANN, 2012, p. 18).
Finalizo com uma inspiração e provocação de Moltmann: “Visto que o Reino de Deus é o futuro de toda a história, ele transcende o futuro histórico e todas as antecipações na história. Justamente desse modo, porém, o reino se torna a força de esperança na história e a fonte dessas antecipações com as quais preparamos o caminho para a vinda de Deus” (MOLTMANN, 2012, p. 53).
Que as reflexões aqui apresentadas possam nos inspirar, identificar e apontar para os sinais do Reino em nosso meio.
Bibliografia
BÍBLIA SAGRADA Edição Pastoral. São Paulo: Sociedade Bíblica Católica; Paulinas, 1990.
GRÜN, Anselm. Jesus como Terapeuta. O poder curador das palavras. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.
HOCH, Lothar. Aconselhamento e cuidado pastoral. Joinville: Grafar, 2019.
LUTERO, Martim. Jesus abençoa as crianças. Meditação de Martim Lutero, 01/01/1983. Castelo Forte. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia,
1983.
MOLTMANN, Jürgen. Ética da Esperança. Petrópolis: Vozes, 2012.
SCHWANTES, Milton. Deixem vir a mim as crianças, porque delas é o Reino de Deus. In: PEREIRA, Nancy Cardoso (Org.). Milton Schwantes: escritos de história e paixão. São Leopoldo: CEBI, 2012.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).