Prédica: Mateus 18.15-20
Leituras: Ezequiel 33.7-9 e Romanos 13.1-10
Autora: Ivoni Richter Reimer
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/09/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
1. O culto e os textos
Estou concluindo este auxílio homilético no dia de abertura da Semana de Oração pela Unidade de Pessoas Cristãs. Para mim é uma feliz coincidência, pois um dos destaques dos textos bíblicos reside exatamente na unidade marcada pelo desafio da inclusão e do cuidado para com todos os “pequeninos” dentro e fora da igreja, principalmente para com quem erra, peca, se perde do rebanho… A igreja está conclamada a acolher e corrigir os “malvados” (Ez 33.7-9), buscando a unidade e a inclusão junto a quem se “perde”. É nesse sentido que podemos nos reportar a Rm 13.1-10, cuja concepção de exusía está subordinada a Deus, colocando, portanto, freio não apenas aos “maus”, mas também às próprias autoridades – civis e religiosas –, quando estas não trabalham pela justiça, sendo elas mesmas, assim, ilegítimas diante da fonte da qual procedem. O importante é acolher, corrigir, incluir por causa do amor que cumpre a Torá (Rm 13.8-10). Assim, o culto estará marcado pelo poder transformador do perdão, que pressupõe esforços, buscas e diálogos tanto por parte de quem sofre a ação do pecado como por quem peca.
2. Textos e contextos
Escrito em torno do ano 80, após a destruição de Jerusalém pelos romanos, o Evangelho de Mateus busca, mesmo que fragmentariamente, registrar a memória da história de Jesus de Nazaré junto com suas discípulas e seus discípulos. Este é, portanto, um escrito pós-guerra. Os judeu-cristãos tinham sobrevivido, porque fugiram de Jerusalém e se assentaram na região circunvizinha ou mais distante, talvez em Antioquia.
É no contexto de perseguição, fuga, esconderijos e de resgate da memória histórica dos primeiros tempos que as comunidades judeu-cristãs terão que elaborar e efetivar outras formas e outros lugares de reunião, estudo, celebração e organização. As igrejas que se reúnem nas casas tornam-se, nesse contexto, cada vez mais importantes. A afirmação de identidade é uma exigência não apenas interna, mas também externa, visto que agora esse grupo não mais está protegido pela religião judaica1, tida até então como lícita pelo Império Romano.
Nesse novo momento histórico-religioso, o Evangelho de Mateus busca resgatar algumas características fundantes e fundamentais do movimento jesuânico: a participação de mulheres no seguimento e ministério de Jesus; a participação de “pequeninos” em termos sociais e generacionais; a observância cotidiana e prática da Torá para garantir a afirmação de identidade e convivência social com justiça.2
3. Contexto literário e fontes
Em termos literários, a perícope de Mt 18.15-20 situa-se na terceira parte do evangelho (16.21-28.20), a qual coloca Jesus a caminho de Jerusalém. Este caminho está marcado por confrontos com autoridades, bem como por orientações de Jesus a suas discípulas e seus discípulos. Aqui, Jesus e seu grupo encontram-se em Cafarnaum, e é nesse contexto que se organiza o quarto discurso3, que visa orientar a comunidade sobre questões eclesiais (18.1-35) em situações de conflito.
É importante destacar que para essa perícope não há paralelo sinótico, sendo material exclusivo para comunidades das quais e para as quais se escreve o Evangelho de Mateus.4 A fonte da qual se bebeu para construir esse texto jorra principalmente desde Lv 19 (interpretação dos mandamentos), sendo que Mt 18.15-20 apresenta um midrash altamente normativo para a vida sociorreligiosa dessas comunidades. Além disso, observa-se a lei acerca de testemunhas (Dt 19.14-21). Portanto, também através desse texto e da normatização da prática da correção e do perdão objetiva-se afirmar identidade a partir de origens judaicas.
4. Conteúdos de vida e morte – Abrindo a porta
O texto evidencia que há problemas de relacionamento com “os menores”, “os pequenos”, “os devedores” no seio da comunidade. O indício é que há práticas de exclusão, um processo de “limpeza” eclesial por meio da condenação sumária de quem erra, de quem peca. O tema “pecado”, nesse contexto, deve ser entendido a partir de sua fonte (Lv 19), referindo-se, pois, a práticas de não-cumprimento do Decálogo.
O texto e esse processo de exclusão demonstram que, mesmo sendo um grupo majoritariamente de gente marginalizada e oprimida em seu contexto histórico-social, os problemas comunitários internos refletem uma dinâmica semelhante aos problemas e processos de opressão externa. Repete-se, aqui, o que se vivencia ali. Para dentro dessa situação de conflito, o objetivo é orientar, colocar limites normativos de comportamento e de ética eclesial, afirmando uma identidade diferencial dentro de um contexto hostil.
Eixo temático dos textos, principalmente de pregação dentro do contexto maior, é o cuidado especial para com os “pequenos” na comunidade eclesial e social (18.1-5; 18.6,10,14). Nesse sentido, 18.14 serve como “ponte” para 18.15 com uma novidade temática: nossa perícope introduz a realidade específica do pecado. A partir do contexto literário podemos entender que, para Mateus, neste caso, quem peca também faz parte dos “pequenos”, que merecem cuidado, acolhida, enfim, perdão, porque Deus não quer que nenhuma pessoa se perca! A graça do perdão de Deus, por isso e nesse sentido, também depende do nosso esforço e estratégica competência evangélica em “salvar” quem peca entre nós, em relação a nós e a nós mesmos (porque também nós pecamos).
A orientação básica é que a prática comunitária deve voltar-se sempre com maior cuidado para “os pequenos”. O ponto referencial para uma ação comprometida com o reino de Deus está sempre “embaixo”, afirmando-se uma inversão de valores existentes naquele sistema que acabou de vencer o povo de Deus por meio da força das armas. Nisto reside uma das práticas de resistência desses grupos pós-guerra, que dão continuidade ao movimento de Jesus. O recado é: que não se repita em nosso meio o que acontece sob o manto dos poderosos. O cuidado, a opção pelos “pequenos” deve ser a marca eclesial. Desta marca fazem parte – seguindo a estrutura do discurso eclesial – a cidadania da criança, a aceitação incondicional de pessoas marginalizadas e que “se perdem”, a festa em processos de acolhida, a correção mútua, o perdão de todas as dívidas.
Afirmando a continuidade da história de Deus com seu povo, a comunidade judeu-cristã ligada ao Evangelho de Mateus compreende-se como igreja/“povo convocado pelo Senhor” (kahal – LXX), que, de maneira escatológica, prenuncia, vivendo já agora, o reino de Deus inaugurado pelo Messias Jesus de Nazaré (Goppelt, p. 264-266). Assim, por intermédio do Jesus Messias, a comunidade judeu-cristã sabe-se inserida no povo de Deus.
Nessa continuidade escatológica, igreja quer se construir como um lugar de engendrar e vivenciar processos e espaços alternativos que fluem e agem na contramão da história que se impõe. Não se trata de adaptação, nem assimilação, tampouco inculturação.5 Aqui se elabora um processo de contraprodução, de contracultura, de experimento do reino de Deus. Essa organização eclesial cria, dentro do mesmo espaço habitado pelo sistema, outros espaços de sobrevivência, de sobrevida, de nova vida, colocando-se como diácona de Deus. Esta é a proposta do discurso eclesial em Mateus. A radicalidade do amor-diaconia, da solidariedade para com os pequenos, que os torna sujeitos de sua própria vida, é tão grande que exige a retirada das “pedras de tropeço” (18.6-9). O que se propõe para a igreja, de acordo com o Evangelho de Mateus, não é uma porção de atitudes “reparatórias”, mas preventivas: para que o dano nem venha a acontecer e que o corpo todo seja salvo.
A comunidade, porém, vivencia a realidade de que o dano de fato continua acontecendo. O amor nem sempre vence o medo, o ódio, a ganância. As pessoas erram, se perdem, pecam. E então como a pessoa lesada, a comunidade e a igreja devem agir? Aqui o texto para pregação responde com a correção irmanal, o perdão e a reelaboração de compromissos.
5. Correção, perdão e compromisso – Adentrando na casa
O texto de Mt 18.15-20 situa-se literariamente de forma estratégica no meio do discurso eclesial: é como uma mola propulsora que, bem ancorada e equilibrada, dá o impulso exato e necessário para a direção pretendida. A base e o equilíbrio estão dados pela gratuidade de Deus, elaborada em 18.1-14: a acolhida e aceitação de pequenos e perdidos. A direção pretendida é a construção de relações socioeclesiais qualitativas, que testemunhem a presença redentora de Deus. Assim como Deus me/nos trata, assim é preciso tratar as outras pessoas. Caso contrário, Deus retirará de mim/nós o bem já recebido (18.23-35).6 Qual e o que seria, então, em nossa figura, a mola propulsora? Exatamente a disposição de investir tempo e esforços para com aquelas pessoas que erram, que pecam em relação a mim/nós e, portanto, também em relação a Deus. O resultado desse esforço, que se espera positivo, será testemunho para a própria ação de Deus, que serve de base para toda a estrutura desse empreendimento.
Vejamos alguns detalhes do texto de pregação:
v. 15: introduz o tema do pecado no discurso eclesial, e a preocupação está em orientar a pessoa e a comunidade a acharem o perdido e ganhá-lo de volta, questionando, com isso, a prática da exclusão, da excomunhão (veja Mt 18.10-14), que talvez estivesse acontecendo e espelhando um dos problemas comunitários. Referindo-se a Lv 19.17-18, recorda-se o mandamento áureo do amor ao próximo, também ao inimigo. Mt 18.15 aposta no resultado positivo dessa primeira investida.
v. 16: parte da eventualidade de fracasso no diálogo pessoal com quem cometeu pecado. Recomenda, somente neste caso, levar uma ou duas testemunhas para a conversa reconciliatória (Dt 19.14-21). Levar testemunhas era uma prática judaico-rabínica, e elas tinham uma função específica: auxiliar na admoestação da pessoa pecadora com o objetivo de dificultar e preferencialmente impedir sua condenação.
v. 17: não mais pressupõe, positivamente como no v. 15, que esse procedimento tenha êxito. Por isso, somente agora a igreja deve ser informada, como última instância. E somente ante a possibilidade de fracasso diante da igreja/comunidade reunida, na busca por reconciliação, deverá acontecer a exclusão. O sentido da exclusão está dado com a utilização dos termos “gentio e publicano”: trata-se de gente com quem não queremos nos relacionar. O texto não contém nenhuma norma de como se concretiza a exclusão, mas parece que, neste caso, ela é definitiva (diferente de 1Co 5.5 e 2Co 2.7-10, onde a porta do juízo final ainda permanece aberta).
v. 18: abre uma nova pequena unidade. Por causa da gravidade da definitiva situação de exclusão, são introduzidas as palavras “em verdade vos digo”, que têm função normativa e são seguidas pelos termos “ligar” e “desligar”, as quais reforçam a decisão legal tomada pela igreja (v. 17). Trata-se aqui de termos sinônimos para reter pecado ou perdoar. Essa decisão mostra ou busca evidenciar o peso institucional já existente no final do século 1, mesmo que de forma incipiente: essa decisão eclesial não se restringe às relações na terra, mas invade as realidades celestiais; vale para o aqui e agora e para o além e eterno. O poder é total, legitimado pela fórmula quiriacal introdutória. Tudo indica que essa estratégia pudesse servir como modelo pedagógico para prevenir e evitar exclusões. Infelizmente, o texto não informa sobre a especificidade das ações e dos sujeitos transgressores, sendo que não podemos ter um quadro mais claro da realidade e dos problemas daquela(s) comunidade(s).
Para encerrar, os v. 19-20 novamente introduzem a fórmula quiriacal para dar autoridade ao novo assunto: o destaque é numérico e aposta na unidade ou unanimidade daquilo que se quer, se pede. A oração é prática judaico-cristã, e seu atendimento está ligado e até depende da prática comunitária. Aqui se trata da oração em favor da reconciliação de pessoas que pecam e com isso dividem a comunidade. Essa oração, portanto, deve fazer parte da agenda comunitária. E comunidade existe a partir de duas ou três pessoas. Não mais são necessárias nem sequer dez pessoas (número necessário para o culto sinagogal) para que o culto a Deus aconteça. Na verdade, para Jesus não importa a quantidade, mas a qualidade. Esta qualidade repercutirá por si própria e testemunhará do amor disposto à reconciliação. A marca dessa qualidade fica registrada com “em meu nome”, um acento cristológico que sustenta tanto a vida cotidiana como a prática cultual, que dá sentido tanto à diaconia diária quanto à diaconia dominical. Cristologicamente isto significa, para o Evangelho de Mateus, relembrar o Deus Conosco, Emanuel.
Sabemos que Mt 18.20 é por demais conhecido. Por isso será importante resgatá-lo no contexto da perícope: a presença de Cristo não se restringe ao número reunido dominicalmente e não serve para justificar o pequeno número de membros de uma comunidade/paróquia, mas marca exatamente o jeito como celebramos a vida, resolvendo conflitos cotidianos, movidos por atitudes de diálogo pessoal e comunitário, que objetivam processos de perdão, de inclusão. Assim como Deus, também nós devemos alegrar-nos somente com a inclusão, com o “encontrar e ganhar quem está perdido”, e não com sua condenação e exclusão.
6. Abrindo janelas – O encontro na palavra
O culto todo deverá ser diaconia que objetiva reconciliação. Os hinos, as orações, alguns símbolos podem destacar essa postura. Para a pregação, sugiro que se utilize a imagem da mola propulsora para ilustrar a temática e a dinâmica de trabalhar situações de conflito (como elucidado acima), objetivando testemunho eficaz. A fim de encorajar as pessoas para esse processo, poderão ser elaborados/renovados alguns compromissos comunitários (talvez em forma de oração ou um painel ou jogral, elaborados por grupos da comunidade). Enfim, é bom recordar que não são somente os “malvados” ou os “maus” que pecam, mas, conforme Paulo e Lutero, não há sequer uma pessoa justa, e todos nós carecemos da graça e do perdão cotidianos eternamente.
Notas:
1 Na Guerra Judaica, entre os grupos judeus organizados, sobreviveram apenas os fariseus, que começam a formatar, em Jámnia, a partir de 80, o rabinismo formal. Decide-se, a partir do Concílio em Jámnia, a expulsão dos nazarenos/nazireus (=judeu-cristãos) das sinagogas judaicas, também como forma de amainar conflitos de identidade religiosa junto as autoridades romanas.
2 É importante lembrar disso, porque na mesma época havia outras tendências e vivências, refletidas, p.ex., em literaturas deuteropaulinas e pastorais.
3 O Evangelho de Mateus contém cinco grandes discursos de Jesus: 5.1-7.29 (Sermão da Montanha); 9.36-10.42 (Instruções sobre Missão); 13.1-52 (Parábolas sobre o Reino); 18.1-35 (Instrução Eclesiológica); 24.1-25.46 (Discurso Apocalíptico).
4 Sem poder aqui discutir pormenores da estrutura, parece que Mt 18.15-20 forma uma
inserção textual dentro desse discurso eclesial. Deve ter sido parte da tradição eclesial mataica e talvez foi colocado aqui exatamente por causa do cuidado com os pequenos, também os pecadores.
5 Outras formas de elaborar organização socioeclesial, que assimilam dinâmicas sistêmicas de dominação, podem ser encontradas em outros textos bíblicos, como nos códigos domésticos de Cl 3; Ef 5; 1Pe 2-3.
6 Sobre esta lógica retributiva libertadora, veja REIMER, Haroldo; RICHTER REIMER, Ivoni, na interpretação de Mt 18.23-35.
Bibliografia
GOPPELT, Leonardo. Teologia do Novo Testamento. Vol. I: Jesus e a Comunidade Primitiva (Tradução de Martin Dreher). São Leopoldo; Petrópolis: Sinodal; Vozes, 1976.
MOLZ, Cláudio. 16º Domingo após Pentecoste. Prédica: Ezequiel 33.7-9. In: Verner HOEFELMANN; João A. M. da SILVA (org.), Proclamar Libertação, vol. 27. São Leopoldo: Sinodal; IEPG, 2001. p. 230-236.
REIMER, Haroldo; RICHTER REIMER, Ivoni. Tempos de Graça. O Jubileu e as tradições jubilares na Bíblia. São Leopoldo; São Paulo: CEBI; Paulus; Sinodal, 2000.
RICHARD, Pablo (org.). O Evangelho de Mateus. A igreja de Jesus, utopia de uma igreja nova. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, vol. 27. São Leopoldo; Petrópolis: Sinodal; Vozes, 1997.