Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 2.13-23
Leituras: Paulo Roberto Garcia
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 26/12/2010
1. Introdução
Respira-se o ambiente fraterno do Natal. Neste primeiro domingo após o Natal, somos desafiados a refletir sobre um texto com sinais de violência, em especial a violência contra as crianças. Herodes quer tirar a vida da criança!
Por que o Evangelho de Mateus coloca, praticamente na abertura do evangelho, esse texto? Temos de atentar que o evangelho, ao apresentar, logo após os textos celebrativos pelo nascimento de Jesus, uma história marcada pela violência e fuga, quer dar um caráter fundamental a essa perícope. A proteção da vida dos pequeninos é um dos temas centrais do evangelho. Os pequeninos são caracterizados pelas crianças; pelas mulheres; pelos enfermos; pelos endemoninhados, pelos estrangeiros, por todos aqueles que sofrem à margem da vida. Por isso, na abertura do evangelho, surge a contradição entre a alegria e o medo pelo nascimento da criança Jesus. Magos e reis; adoradores e assassinos, violência e proteção. Tudo isso se entrelaça no início do evangelho.
2. Exegese
Antes de apontar detalhes exegéticos na perícope, é importante apontar alguns pressupostos do Evangelho de Mateus. O embasamento desses pressupostos, que apresenta novidades, pode ser encontrado na bibliografia ao final desta reflexão.
2.1 – Um evangelho da Galileia
Diferentemente da maioria dos comentaristas, localizamos o Evangelho de Mateus na Galileia, como fruto de uma comunidade judaico-cristã, escrito entre os anos 80 e 90 d.C. e participante de um embate teológico sobre o verdadeiro judaísmo. São dois grupos judaicos em debate. De um lado, temos o judaísmo formativo, que tem a sinagoga como seu lugar de reunião e a Lei como referência religiosa, encontrando nela o caminho para o perdão de pecados. Do outro lado, temos os judeu-cristãos de Mateus, que têm na casa seu lugar de reunião e em Jesus – o cumpridor pleno da Lei – sua referência de fé e de perdão de pecados. Esses dois grupos têm – pós-destruição do Templo de Jerusalém – um embate na busca de se consolidar como o verdadeiro Israel. A Lei de Moisés ocupa o centro desse debate.
O Evangelho de Mateus quer fortalecer sua comunidade nesse embate teológico, oferecendo aos participantes dela, em especial aos que são influenciados pelo pensamento da sinagoga, elementos teológicos que apontem Jesus não só como o verdadeiro intérprete da Lei, mas como aquele que perdoa os pecados. Desse modo, o evangelho tem duas ênfases importantes: a interpretação da Lei e a figura de Moisés.
2.2 – A Lei e os pequeninos
No embate teológico, a pergunta de fundo é: o que significa guardar a Lei? Para o grupo da sinagoga, guardar a Lei significava cumprir uma série de preceitos que os aproximava de Deus. Imitar Deus na misericórdia (esmolas, vestir os nus) e na piedade (descansar no sábado, comer cumprindo os rituais de pureza, conhecer a Lei). Isso se constituía em obrigação e em lista de preceitos a cumprir. Por isso o grande desafio era normatizar o cotidiano para definir como cumprir cada preceito (ou seja, definir o que era permitido e o que era proibido).
Para o grupo de Mateus, guardar a Lei era compreendido como a prática da misericórdia. Jesus é apresentado guardando a Lei à medida que priorizava a vida, em especial a dos pequeninos. Desse modo, a comunidade é desafiada a seguir os passos de Jesus: “Porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me hospedastes; estava nu, e me vestistes; enfermo, e me visitastes; preso, e fostes ver-me” (Mt 25.35-36). A pergunta dos justos é: “Quando fizemos isso?”. Nessa pergunta percebe-se que a ação em favor da vida dos mais fracos é espontânea; ela parte da existência de fé e não de uma lista de obrigações para cumprir.
Desse modo, percebemos que, no evangelho, cumprir a Lei nasce da espontaneidade da vivência cristã. É o caminho do discípulo.
2.3 – A Lei e Moisés
Há, para os dois grupos que olham a Lei tendo como referencial a fé, uma valorização muito grande de Moisés. Para o grupo da sinagoga, eles eram portadores da tradição oral da Lei (a Torá oral), dada por Moisés aos fiéis intérpretes como um complemento à Lei escrita. Assim, somente as lideranças ligadas à sina- goga e às casas de rabinos intérpretes da Lei teriam a autorização para determinar o certo e o errado em torno dela.
Já para o grupo de Mateus, Jesus era um novo Moisés. Por isso o evangelho reconta a tradição oral acerca dos gestos e palavras de Jesus, tendo como pano de fundo a vida de Moisés. Ele é salvo de uma matança; vai para o Egito; volta do Egito; proclama uma nova lei em um sermão proferido no monte (5-7); proclama cinco sermões (5-7; 10; 13; 18; 24-25) e, no fim de sua existência terrena, antes de sua ascensão, envia os discípulos desde um monte (28).
Com isso temos Jesus como aquele que é o fiel intérprete e, mais do que isso, um novo Moisés a orientar a vida de fé de seu povo.
2.4 – A perícope
Nossa perícope, como uma abertura do evangelho, prenuncia todos esses temas. Ela se apresenta bem estruturada em um esquema com três unidades (v.
13-15; 16-18; 19-23). A primeira e a última unidades são correlatas. Ambas iniciam com uma ordem dada a José, em sonho, usando o verbo levantar (egertheis) e a mesma frase: “toma o menino e a mãe dele” (v. 13 e 19-20). A essa ordem ele obedece e, no final, há um anúncio de cumprimento de profecia (v. 15 e 23). No centro, está a violência de Herodes contra as crianças. Nessa estrutura se conjugam os dois temas vistos acima: Moisés, cuja vida será espelho da história de Jesus, e a defesa da vida dos pequeninos contra os poderes do mal.
Jesus, ao ser apresentado por Mateus, seguindo a mesma trajetória da vida de Moisés, é anunciado como aquele que vem libertar seu povo e orientá-lo para a terra prometida. Esse novo Êxodo se concretizará na vivência da comunidade. Nela encontramos a formação de uma comunidade de fé que se apoia mutuamente; que se perdoa e atua em favor da vida. Uma comunidade que dá tanto valor à vida vivida em função do reino de Deus a ponto de ser comparada a alguém que, ao encontrar um tesouro ou uma pérola de grande valor, vende tudo o que tem para possuí-la.
O outro tema, a defesa da vida, em especial dos pequeninos, aparece em toda a perícope. Ao apresentar a história de Jesus à luz da trajetória de Moisés, a perícope enfatiza a proteção de Deus ao pequenino Jesus e à sua mãe. Quando lemos a unidade central da perícope (v. 16-18), defrontamo-nos com a violência contra os pequenos. Herodes, em seu intento de matar a criança, pratica uma violência sem limites. Há pranto sem medida e, uma vez mais, a unidade termina com o cumprimento de uma profecia. Essa, porém, de dor e de pranto.
Desse modo, na união das unidades da perícope, temos no centro a violência que se abate sobre a comunidade. Porém a violência não vence. Através dos sonhos, Deus orienta José no caminho de proteção da vida do pequeno Jesus e de sua mãe. A obediência de José é instrumento da salvação de Deus. Assim, Jesus – o novo Moisés – é, ao mesmo tempo, o pequenino protegido, juntamente com sua mãe. Esse tema – a proteção dos pequenos –, tendo Jesus como protagonista, já aparecera no momento da descoberta da gravidez: José, ao tomar conhecimento de que Maria estava grávida, ao invés de denunciá-la para que ela fosse apedreja- da e morressem, ela e a criança, ele “sendo justo” (na perspectiva do evangelho) resolve fugir. Assim, ele chamaria sobre si a maldição, mas preservaria a vida da mulher e da criança. A proteção aparece também quando Deus orienta os magos a não voltar a Herodes, e, finalmente, em nossa perícope, orienta José a fugir para o Egito; mais tarde, a voltar do Egito e, depois, a estabelecer-se em Nazaré.
Toda essa dinâmica vista acima cria identidade e responsabilidade para a comunidade. Da mesma forma que Jesus – o novo Moisés e o Messias cumpridor das profecias – foi, enquanto pequenino, protegido por Deus através da obediência de José, assim também Jesus, em todo o seu ministério, defendeu a vida dos pequeninos. Cabe à comunidade, discípula de Jesus, o desafio de defender os pequeninos que estão ao seu redor. Fazer isso é, para o evangelho, defender e cuidar do próprio Jesus.
3. Meditação
No primeiro domingo após o Natal, enquanto respiramos ares de fraternidade, amizade e paz das celebrações familiares e eclesiais, somos confrontados com uma história que nos desafia. Jesus, o Messias nascido em uma manjedoura, tem sua existência colocada em risco. As forças imperiais, violentas e déspotas levantam-se contra a esperança encarnada. O desejo de perpetuar-se no poder leva Herodes a cometer atrocidades. Porém a criança se salva! Da mesma forma que Moisés, sendo salvo por Deus, libertou seu povo, Jesus, sendo salvo, exerceu um ministério que possibilitou a vida, a liberdade e a salvação.
Jesus anunciou uma nova Lei, que é, na verdade, o resgate do princípio da Lei: a defesa da vida dos mais desprovidos de condições de sobrevivência. No final de seu ministério, essa tarefa de conduzir o povo em direção à terra prometida foi confiada aos discípulos. Ao ser enviada por Jesus para fazer discípulos, a comunidade de Mateus, em sua caminhada de vida e fé, promoveu e defendeu a vida dos encarcerados, dos que estão nus, dos famintos, dos enfermos etc. Ao fazer isso, agiram em favor do próprio Jesus, porque ele está presente na vida de cada um desses pequeninos.
Assim, nossa perícope se constitui em memória e desafio. Relembramos que as forças da morte estavam presentes naquela ocasião e, ainda hoje, colocam em risco a vida de pequeninos que habitam em nossos bairros, cidades e país. Porém a esperança se apresenta na medida em que Deus, através da obediência de José, protege a vida do pequeno Jesus; Jesus protege a vida daqueles e daquelas que estão ao seu redor, e nós, hoje, somos desafiados, em obediência ao envio de Jesus, a dar continuidade a essa tarefa de proteção da vida, sinal do reino e ação em favor dele.
4. Imagens para a prédica
A realidade dos últimos anos é marcada pela violência provocada pela in- tolerância na relação entre os povos. Intolerância religiosa, cultural etc. Os pequeninos são sempre os que mais sofrem, em especial as crianças. Como imagens para a prédica, a sugestão é apresentar situações ao redor do mundo, ou então em nosso país, em que as crianças sofrem pelos desmandos, indiferença, guerra etc. O objetivo é, diante da imagem do pequenino Jesus, perseguido por poderes imperiais que promovem a violência, sendo protegido por Deus através da obediência de José, possamos nós refletir nessas imagens como um desafio para que, através de nosso compromisso de fé, defendamos a vida em uma atitude evangélica. A indiferença aos que sofrem nos ocultam o próprio Jesus. No Evangelho de Mateus, após a alegria e a celebração pelo nascimento, segue-se a proteção do pequenino contra a violência. No primeiro domingo após o Natal, somos desafiados a, em meio à alegria pela celebração, lembrar-nos dos que sofrem.
5. Subsídios litúrgicos
Como subsídio litúrgico, oferecemos uma oração de confissão alusiva ao cuidado junto às crianças. A sugestão é que, diante do desafio de proteger os pequeninos, as crianças sejam tema e símbolo de compromisso nesse culto.
Oração de confissão:
Perdoa-nos, Senhor, quando não recebemos as crianças como tu nos ensinaste.
Ajuda-nos a não olhar para sua etnia, classe social ou religião.
Perdoa-nos, Senhor, quando nos preocupamos só com as crianças do nosso entorno…
… e não com as crianças do nosso país e do mundo, que sofrem todo tipo de violência e abandono.
Perdoa-nos, Senhor, quando não fazemos do grito dessas crianças o nosso
grito.
Livra-nos da insensibilidade. Ajuda-nos a sair da inércia e do descaso. Perdoa-nos, Senhor, quando, nós, a tua igreja indivisa não denuncia a impunidade.
Ajuda-nos a amar e a instruir os nossos adultos de amanhã com os valores do evangelho.
[Glen Ynguil Fernandez; inspirada no Credo sobre os direitos da criança do Pr. José do Carmo da Silva] Fonte: http://www.metodista.br/fateo/materiais-de-apoio/fateo/materiais-de- apoio/liturgia/liturgias/?portal_status_message=Changes%20saved.
Bibliografia
GARCIA, Paulo Roberto. Sábado – A Mensagem de Mateus e a Contribuição Judaica. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.
OVERMAN, J. A. Igreja e Comunidade em Crise – O Evangelho Segundo Mateus. São Paulo: Edições Paulinas, 2000.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).