Prédica: Mateus 20.1-15(16a)
Autor: Hans Alfred Trein
Data litúrgica: Domingo Septuagesimae
Data da Pregação: 11/02/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
I — Introdução
As parábolas de Jesus no NT certamente são os embriões mais cativantes que estimulam a reflexão: Em primeiro lugar, quando se trata de uma parábola desafiadora e desconcertante como esta. Como semelhantemente escandalosas, só para dar uma ideia estilística, podem ser mencionadas: a parábola do administrador infiel (Lc 16. 1-9); a parábola do juiz iníquo (Lc 18. 1-8). Em segundo lugar, quando desconcertados tomamos conhecimento sobre a razão pela qual Jesus falava em parábolas Mc 4. 11-12 e paralelos sinóticos.
Se somos discípulos, perguntamos, lutamos e temos chances de apreender, mesmo se for protestando.
Atualmente experimentamos o que se pode chamar de crise da PALAVRA. Os meios de comunicação de massas e o nosso uso e abuso (também no âmbito da igreja) banalizaram e esvaziaram a PALAVRA. Recordando a parábola do semeador, em outra dimensão, podemos constatar assustados: Não adianta o semeador semear cascas de semente, e depois explicar o mau resultado de sua plantação com as evasivas (nesse caso) simplórias e alienantes de terra mal preparada e condições climáticas adversas, pois também a boa terra não conseguirá produzir bons frutos.
Por isso é importante a reflexão seria e sincera sobre esse texto. A PALAVRA deve ser semeada como semente de boa qualidade.
II — Informação
1. Artifício dramatúrgico
Algumas parábolas de Jesus apresentadas nos evangelhos finalizam com uma frase interpretativa, como é o caso desta parábola. Isso pode ser positivo, no sentido de contribuir para uma interpretação correta, mas pode ser negativo, no sentido de limitar a Interpretação, como única viável, quando na realidade ela reflete uma compreensão historicamente limitada.
Não há dúvida de que o ponto central desta parábola, com características cênicas visualmente imagináveis, é o pagamento do salário e suas consequências. Todo o restante è construído, para culminar no confronto entre lei e evangelho, entre merecimento e graça.
À primeira vista parece que estamos presenciando uma cena típica, um empregador prepotente, diante de empregados impotentes, e isso, num tempo sobre o qual pairava o fantasma do desemprego. O murmúrio dos que se sentem injustiçados, já decepcionados pelo aperitivo da inversão na sequência do pagamento, é abortado serenamente peio poderoso empregador.
No entanto, o fato de os primeiros presenciarem o pagamento aos últimos não passa de um artifício dramatúrgico, sem o qual certamente não haveria o protesto. A inversão na sequência do pagamento não significa preferência pelos últimos, como já tem sido Interpretado erroneamente, e também está contido na frase interpretativa do v. 16a. Na reação de protesto dos primeiros, por causa do salário igual, a narração antevê a reação dos próprios ouvintes ou leitores, permitindo-lhes um diálogo com o proprietário da vinha.
Jesus muitas vezes se vale de escândalos em suas parábolas; faz isso com intenção pedagógica: Esses escândalos são o espinho com que as parábolas penetram no âmago do ser. Assim elas se tornam o eterno escândalo do mundo; o escândalo quer acordar o mundo para a verdade, que também é paradoxal e escandalosa. A cena escandalizante provoca o pequeno juiz que está dentro de cada um. Atualmente, rádio e TV conseguem um bom Ibope com programas como Você é o juiz.
2. Interpretações já dadas
Mesmo na impossibilidade de averiguar interpretações da tradição oral, pode-se dizer seguramente que o evangelista Mateus foi um dos primeiros intérpretes de peso.
a) O contexto de Mateus se revela elucidativo; a parábola interrompe claramente o acompanhamento da sequência de Marcos: Mt 19.30 – Mc 10,31 continua com Mt 20.17 – Mc 10.32. A parábola é matéria exclusiva de Mateus e tem características de corpo estranho dentro do seu contexto.
Tematicamente o contexto trata do seguimento dos discípulos, que termina com Mt 19.30 – Mc 10.31: Muitos primeiros serão últimos e últimos serão primeiros. Esta é a palavra chave que levou Mateus a incluir esta parábola. Ela parece ter que reforçar a admoestação contra a soberba entre os discípulos, contida em Mt 19.27-30. Nas mãos do evangelista esta parábola se torna unm parábola discipular. No intuito, porém de alcançar o sentido original, temos que rejeitar a compreensão de Mateus como infeliz. Sob suas mãos, este evangelho que trata da alegria doadora de Deus se tornou uma palavra de castigo, uma amarga rejeição dos primeiros que calculam com o prêmio, porém se enganam redondamente. Neste sentido, a parábola já foi interpretada como juízo contra os primeiros que, com seu murmúrio obstinado contra a decisão de Deus (e sua bondade), jogam fora a sua salvação. Eles são excluídos dos poucos escolhidos, no acréscimo do v.16b, feito provavelmente após o segundo século.
O v.16a ameniza o protesto que, em nome dos primeiros, todo ouvinte dessa parábola é provocado a fazer. Além disso, a frase do v.16a se tornou um provérbio popularmente corrente. Em conexão com a parábola ele fatalmente levará a uma interpretação que não acerta o sentido do texto: além disso, se omitido, fica preservado o protesto em toda a sua intensidade.
b) A igreja romana e, seguindo a ela, a luterana pregam esse evangelho no Domingo Septuagesimae, no início do jejum dos clérigos, i.e., no início do tempo de arrependimento antes da Paixão. Fixando-se na narrativa extensa do assalariamento dos trabalhado¬res desde a primeira hora da manhã (6 horas), sempre se pregou, nesta conexão, o chamado para a vinha de Deus.
A interpretação da parábola, como chamamento para a vinha de Deus, não acerta o seu sentido, pois não considera justamente o ponto alto do acontecer parabólico: o pagamento do salário e suas consequências Se o calendário eclesiástico requer que se continue pregando o chamado para a vinha de Deus, o texto base deve ser outro.
No entanto, por que não pregar sobre o arrependimento que e basicamente o objetivo dessa parábola escandalosa, no Domingo Septuagesimae? Somado a isso é importante perguntar pela oportunidade dessa proclamação evangélica e profética, para que o texto não seja reduzido no impacto que pode causar numa ocasião adequada. A ligação do texto com o Domingo Septuagesimae fica portanto, relativizada.
(Urge repensar e atualizar o calendário eclesiástico dos textos, a Ordo Praedicatorum. A existência de uma O.P. para evitar a repetição muito seguida de textos é puro comodismo. O critério de que estará sendo pregado sobre o mesmo texto em outros lugares ao mesmo tempo – mania de unidade externa! – expressa um sentimento de solidariedade não mais sustentável diante dos desafios locais diferentes. A execução de um programa em nível de IECLB poderia ser auxiliada por uma programação de textos.)
c) Outra interpretação: A parábola se dirige contra a mentali¬dade estratificada dos que estão constantemente calculando, em todos os setores do relacionamento humano, inclusive no religioso. Esta mentalidade é sustentada por uma ideologia de propriedade. O calculismo, sempre em vantagem própria, provoca abismos entre os homens e se torna o culto ao deus ideologia que relega outros cultos e religiões à condição de ópio e alienação.
d) Campeiam ainda outras interpretações, provenientes de especulações escatológicas futuras. Geralmente indicam para o Juízo final no derrradeiro dia, alegorizando de maneira simplista os elementos da parábola.
III – Reflexão
1. Brigando com o texto – A razão briga com o espírito Inicialmente, já muito antes de estudar a verdade desse texto mais a fundo, me senti muito atraído por suas afirmações, pois desafiavam meu senso de justiça. Reconheci-me protestando juntamente com os primeiros; os seus argumentos de protesto tiveram um forte eco no meu senso de justiça.
Por outro lado me impressionou a tranquilidade com que o proprietário estabeleceu a inquestionabilidade de sua atitude. Além disso, quem não haveria de concordar que o proprietário pode dispor como quiser daquilo que é seu!
Havia, portanto, dois lados. Eu concordava com os dois; no entanto, eles eram conflitantes; esse impasse precisava ser resolvido Para resolvê-lo, os caminhos foram diversos: Por um lado, procurava na atitude do proprietário algo de compromisso para com os últimos; talvez estes tivessem produzido mais; talvez o proprietário estivesse legal ou moralmente comprometido com os familiares dos últimos que na certa passariam fome naquele dia. Por outro lado, procurava na atitude protestante dos primeiros a reivindicação justa por terem suportado o trabalho e o calor do dia todo, enquanto os últimos haviam trabalhado apenas uma hora, e ainda por cima no frescor da tardinha.
Descobri de repente que não se tratava de um caso a ser analisado e julgado, mas que se tratava do confronto de duas mentalidades: Uma era a mentalidade de calcular tudo – era a que rne servia melhor; a outra era a mentalidade de bondade irrestrita em tudo, uma bondade não calculista, uma bondade que rompia o esquema obra-merecimento-salário – uma mentalidade para mim Impressionante, porém irreal e fantástica. Percebi, então, a limitação da mentalidade de cálculo entre os humanos; senti a ilimitada alegria de quem assume uma bondade não calculista.
Daqui para frente foi simples entender que a verdade do texto quer mostrar maior plenitude de vida através de uma bondade não calculista, em contraposição à vida encarcerada pelo aborrecimento de quem está constantemente calculando.
Agora me sinto envergonhado diante do protesto inicial e estimulado a procurar plenificar a vida. Através do protesto tive oportunidade de aprender.
2. Ensaiando reflexão
A mentalidade de cálculo, baseada no esquema obra-merecimento-salário, está amplamente arraigada no entusiamo progressista em nível pessoal e social – e ouso dizer que é um legado de tradição étnico-cultural e até ético-religioso de nós membros da IECLB.
A parábola é atual, pois contém escândalo e provoca reações de protesto; contém estímulo para superar esse calculismo limitante. Num mundo que cada vez mais resvala para a auto-suficiência, procura mostrar que os homens estão constantemente recebendo de Deus, cuja atitude de justiça bondosa permite vida indistintamente; ele pode fazer o que quer com o que é seu e ele o faz bondosamente, indistintamente; não se limita por esquemas calculistas. O texto estimula a experimentar o reino de Deus entre os homens através da vida, vida diária plena, bondosa e alegre.
A parábola facilita a imaginação visual de todo o acontecer: facilita assistência. Talvez até seja fácil tomar partido, quando se assiste a algum enredo; quando se está distante dele; quando não se participa diretamente dele. Quando assistimos a um teatro ou a um filme, podemos participar dele, identificar-nos com certos personagens, até nos reconhecer em certas atitudes. Podemos também distanciar-nos, não participar, evitar reconhecer-nos naquilo a que estamos assistindo.
Não se trata, porém, somente de uma história a que se assiste. Estamos diariamente confrontados com o fato apresentado nela. O confronto entre o calculismo e a bondade irrestrita é real e atual a cada momento.
Alguns exemplos:
Quando queremos dar um presente a alguém, calculamos: Que ligação temos com essa pessoa? Se for mais estreita, o presente poderá ser maior. Mas também não podemos ir além das nossas possibilidades. O mesmo se aplica à contribuição eclesiás¬tica, somada ainda à concepção de Pfarrergehalt (= ordenado do pastor), qual seja, de ter que pagar por serviços prestados pela agência de ofícios de desencargo de consciência.
Se alguém nos pede um favor, calculamos: Quem está pedindo o favor? Será que ele merece o nosso favor? Será que ele está em condições de retribuí-lo à altura? Podemos precisar de algum favor um dia? Fazemos o favor? Não fazemos o favor? É assim que calculamos. Por causa disso, quando recebemos um favor, calculamos: Por que esse favor? Será que se espera algo em troca? Será que quer me comprar? Talvez até queira que um dia eu abra mão das minhas convicções e da minha personalidade, para não romper esse compromisso tácito?
Quando a questão é trabalho, calculamos: Quem trabalha mais, merece mais, o gerente merece mais do que o operário; o serviço é mais nobre – curioso é que poucos gerentes calculam, quando se trata de saber se o salário mínimo garante a sobrevivência de uma família operária. O mais estudado tem mais direitos e o analfabeto mais deveres; existe uma matemática capaz de chegar ao resultado de que essa situação é justa: bondade fica reservada para a hora da esmola.
Quando a questão é prestígio, calculamos. Quem vamos admitir na roda dos amigos? Relacionando-nos a alguém de mais prestigio, também desfrutaremos dele.
Calculamos constantemente. Queremos até construir a boa paz, através do nosso calcular: as famosas conversações de paz em nível internacional, empregatício, conjugal. Na profissão não interessa muito que serviço estamos realizando, mas quanto estamos percebendo de salário, de ganho.
Nessa história, os trabalhadores reclamadores estão impotentes diante da bondade indistinta do proprietário. Poderíamos afirmar: O proprietário não foi calculista, mas foi discriminador Pode-se admitir que ele foi justo com os primeiros, mas só foi bondoso com os últimos. Estamos novamente calculando Para a bondade não existe regulamentação nem esquema.
3. Aprendendo justiça de Deus
A nossa justiça é impotente diante da justiça de Deus. Estamos impotentes com o nosso cálculo; nosso calcular é limitado A justiça bondosa de Deus é ilimitada e indistinta. Estamos impotentes, por não podermos enquadrar Deus no nosso esquema de calculo por mérito; tentamos ajustar Deus nesse esquema, e acreditamos que conseguimos, o que é pior.
Deus criou o mundo. Tudo lhe pertence. Nós estamos sujeitos a sua bondade, todos, indistintamente. Nós todos somos trabalhadores que não merecem nada. Temos muito, mas não merecemos nada A ideia do mérito é pura projeção humana; ela existe somente dentro das nossas mentes limitadas; ela só existe na nossa tentativa limitada de elaborar um sistema justo de vida em conjunto.
As categorias e os critérios da ação de Deus entre os homens são de bondade. Para nós, que somos limitados, são categorias e critérios inconcebíveis. Escandalizamo-nos com sua bondade, sua justiça, sua igualdade de tratamento. O filho pródigo, que volta para casa, é recebido com festa, enquanto o irmão mais velho não é da opinião de que ele o mereça. O irmão mais velho calcula. Nós calculamos. Estamos sem argumentos.
Somos todos receptores. Recebemos vida e condições de vida. E se isso não acontece, é porque o nosso cálculo, baseado no mérito, está canalizando essa bondade doadora em demais para alguns poucos e em quase nada para uma maioria. A limitação e tão grande e forte que sentimos não poder viver sem os nossos esquemas. Acostumamo-nos tanto a eles que nos determinam.
Somos estimulados a não nos deixar determinar por nossa mentalidade de calcular. Temos tudo de presente; até a vida! Somos estimulados a não calcular e não fazer maus olhos para a bondade de Deus. Não há merecimento, só há presente e bondade.
IV – Concluindo
O alvo da parábola são os homens. A mensagem é sacerdotal e profética.
Sacerdotal, para aqueles que são injustiçados pelos critérios de justiça desse mundo. Sacerdotal, porque anuncia a libertação das correntes de se ter vida por merecimento, para os marginalizados.
Profética, para aqueles que estão presos ao esquema obra-merecimento-salário, presos ao esquema de vida por merecimento. Profética, porque anuncia a libertação das correntes de se ter vida por merecimento, para os que marginalizam.
Ali, onde vidas são santificadas na vivência de uma bondade irrestrita, desvinculada de cálculo e merecimento, ali acontece vida plena, ali está sinalizado o reino de Deus.
V — Bibliografia
– EICHHOL, G. Gleichnisse der Evangelien. Neukichen. 1971.
– JEREMIAS. J. Die Gleichnisse Jesu. 2a ed . Göttingen. 1952.
– JÜNGEL. E. Paulus und Jesus. Tübingen. 1962.
– RAGAZ. L. Die Gleichnisse Jesu. Bern. 1944.