Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 20.1-16
Leituras: Jonas 3.10-4.11 e Filipenses 1.21-30
Autora: Vera Cristina Weissheimer
Data Litúrgica: 14º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 18/09/2011
1. Introdução
O texto do Evangelho de Mateus 20.1-16 – a parábola dos diaristas da vinha – foi também abordado em PL 29 por Ricardo Willy Rieth (p. 296-301) para o dia da Reforma de 2003. Ao ler o texto, é preciso evitar – como também é preciso fazê-lo nas demais parábolas – a preocupação de encontrar a todo custo a transposição de todos os elementos à situação concreta de nossa existência. O importante é entender o cerne da parábola e apreender seu principal ensinamento: “Nossas relações com Deus não podem ser expressas em termos de justiça, mas são reguladas unicamente pela graça. Não podem ser reduzidas a uma contabilidade de haver e dever, de trabalho e justo salário. O que dita as leis é a misericórdia divina em toda a sua amplitude e com todos os seus imprevistos. Tudo é graça, poderia ser o comentário mais apropriado à parábola” (PRONZATO, p. 132).
“Desde tempos imemoriais, a parábola sofreu a alegorização. Entre essas alegorizações está a conclusão centrada numa visão de julgamento a partir do versículo 16: ‘Pois muitos são chamados, mas poucos escolhidos’. Como a parábola justifica a verdade de que muitos são escolhidos, isto é, que o número dos que alcançam a salvação é pequeno? Os que foram chamados de manhã cedo, os primeiros, são compreendidos aqui como um exemplo de advertência. Com certeza, foram chamados, mas porque murmuram, porque apelam gloriando-se de seus méritos, porque se revoltam contra a decisão de Deus?” (JEREMIAS, p. 28).
É preciso tomar cuidado para não transformar a parábola e a prédica numa parábola de julgamento. Parece ser também certo pensar que a parábola não quer dar nenhum ensinamento sobre a inversão da hierarquia no fim, pois todos recebem exatamente o mesmo salário. Os últimos e os primeiros estão em posição de igualdade, não há uma distinção valorativa, todos são iguais. Pontuar essa posição de igualdade com que todos os trabalhadores foram tratados pode ser um bom gancho para a mensagem.
Temos que reconhecer que ainda há muitos protestantes que, apesar da teologia de justificação por fé e não por obras, estão apegados ao montante de obras e sacrifícios que são capazes de realizar e por esses atos tentam se justificar diante de Deus. Temos que reconhecer ainda que também nós, ministros e ministras, muitas vezes nos apegamos ao montante de trabalho que conseguimos produzir para nos justificar não diante de Deus, mas diante das comunidades. Uma pergunta precisa ser feita: Não estaria sendo esquecido o grande legado da Reforma – a justificação unicamente pela fé?
Convém dar uma olhada na brilhante pintura Der Weinberg des Herrn, de Lucas Cranach (1569), que está na Stadtkirche St. Marien de Wittenberg (é possível vê-la na internet).
Outro ponto para o qual cabe atentar é sobre quem são os destinatários da fala de Jesus. “Em Mateus, a parábola recebe um círculo totalmente diverso de ouvintes. Endereça-se, não como em Lucas, aos inimigos de Jesus, mas, segundo Mateus 18.1, aos seus discípulos. Correspondentemente, a frase de conclusão apresenta em Mateus uma acentuação diversa: Assim não quer Deus que nem sequer um de seus pequeninos se perca (Mt 18.14)” (JEREMIAS, p. 30).
Portanto a ideia fundamental do texto é um convite para refletir sobre como anda nosso relacionamento com Deus.
2. Exegese
V. 1 – Vinha ou videira é a imagem tradicional de Israel (Is 5; Sl 80 etc.) e aplica-se depois à igreja.
V. 2 – A jornada costumava ser de sol a sol, e pagava-se diariamente (diária/ diurnalis).
V. 6 e 7 – Deduz-se que os últimos fossem gente necessitada, sem trabalho e sem diária.
V. 8 – Segundo o costume de Lv 19.13; Dt 24.15; Jó 7.2, a inversão da ordem normal é significativa.
V. 15 – Sobre as referências a mesquinho e invejoso, ver a sutil instrução em Eclesiástico 14.3-10:
O homem mesquinho não merece riquezas; o homem tacanho não merece o ouro; quem priva a si mesmo reúne para os outros, de seus bens desfrutará o estranho; quem é mesquinho consigo mesmo, com quem será generoso? Não desfrutará de seus bens; o mesquinho consigo mesmo é o supremo mesquinho, sua mesquinhez se volta contra ele. Se faz um favor é por descuido, no final acusa sua própria mesquinhez. O mesquinho pensa que sua porção é pequena, tira a do próximo e põe a perder a própria. O mesquinho olha ansioso a comida e oferece a mesa vazia. O generoso oferece comida abundante, a fonte seca destila água sobre a mesa.
“Coração pequeno” e “olho mau” são literalmente expressões hebraicas para mesquinhez e avareza: coração ou mente, que rege os desejos; olho, como sede da faculdade que avalia. No livro de Jonas, Deus enfrenta a mesquinhez do profeta; no texto de Mateus 20.15, Jesus defende a generosidade de Deus contra a avareza e inveja humanas.
V. 16 – A sentença final é aberta. Aplica-se à relação dos judeus e pagãos em relação ao reino; aplica-se dentro da igreja em diversas circunstâncias. Os primeiros refugiam-se em suas prestações de serviço; os últimos, na generosidade de Deus.
3. Meditação
Há cristãos cujo exame de consciência à noite, mais do que um inventário das próprias dívidas com Deus, parece um inventário das dívidas que Deus tem para com eles. Apresentam uma “fatura” minuciosa. E, se pudessem, esticariam o pescoço para controlar se o patrão marcou tudo, se registrou cuidadosamente todas as boas obras praticadas. E repetem o exercício todas as noites… Acham que é bom refrescar todos os dias a memória de Deus… Mentalidade de mercenários. (Alexandre Pronzato)
Compare a perícope com a pergunta de Pedro em Mateus 19.27. Pedro e os demais discípulos tinham deixado tudo para seguir Jesus. Isso seria recompensado, disse Jesus, em 19.28-29. Entretanto, o v. 30 contém uma advertência que parece estar sendo ampliada em nosso texto. O dono da vinha saiu a assalariar os trabalhadores. O primeiro grupo provavelmente questionou a respeito do salário e finalmente chegou a um acordo (v. 2). Ao segundo grupo foi prometido “o que era justo”, e ele depositou bastante confiança no empregador, a fim de aceitar a oferta. Ao último grupo o proprietário não fez qualquer promessa definida. Esse nem mesmo questionou a respeito do salário, mas foi para o trabalho, confiando que lhe seria dado um pagamento justo. Isso estava na base de pura graça.
No fim do dia, o dono da vinha foi pagar os trabalhadores, e todos receberam o mesmo salário. Os do primeiro grupo criticaram-no, revelando assim a sua postura. O dono da vinha simplesmente recordou-lhes o ajuste feito. Ele tinha o direito de dar o salário que quisesse, mas ao mesmo tempo provou que era um homem justo. Todos receberam o mesmo salário, não porque os grupos tivessem feito a mesma soma de trabalho, mas porque durante o tempo destinado a eles os dois últimos grupos tinham mostrado zelo e confiança no seu empregador. Isso valia mais do que o trabalho feito, talvez de má vontade, somente para cumprir as horas do acordo do primeiro grupo.
A todos os que entram no serviço cristão com a pergunta “o que é que ganharei com isso?” cremos que Jesus dará esta resposta: “Não é o que você faz, mas a fé e o amor que inspira; não é quanto você se sacrifica, mas por que se sacrifica; não é a quantidade o que conta, mas a qualidade. Deus conhece os nossos motivos”. “Ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos, ainda que entregasse o meu corpo às chamas, se não tivesse amor, nada disso adiantaria” (1Co 13.3).
Pronzato traz elementos relevantes para a meditação: “O que dita as leis é a misericórdia divina em toda a sua amplitude e com todos os seus imprevistos. (…) Que magnífico patrão o da parábola. Mais do que patrão da vinha, é patrão da própria generosidade. Percorre as estradas a cada hora do dia. Chama a todos. A todos apresenta suas propostas. Não é meticuloso no exame. A condição única é que aceitem o convite. (…) Não olha as ‘referências’: publicanos, prostitutas, ladrões, gente de pouco valor podem ser operários ‘ideais’ para a sua vinha” (PRONZATO, p. 132).
E por que ele chama quem chegou por último? São esses simplesmente mais simpáticos? Não é difícil descobrir os motivos dessa simpatia do “patrão” para com aqueles que aceitaram servir na vinha no último horário do dia. Eles não fizeram reivindicações, não contrataram nada, confiaram cegamente. Os primeiros quiserem fazer contrato de doze horas de trabalho por um salário e receberam o que fora acordado. Os últimos aceitaram o convite: Ide também vós para a minha vinha. “Uma assinatura em branco. Por esse motivo puderam saborear a alegria da generosidade do patrão. Há cristãos por aí que pensam que religião consiste naquilo que eles oferecem a Deus. Ao invés, a religião consiste naquilo que Deus faz por nós” (PRONZATO, p. 133).
Conectar-se, buscar a ligação com o divino, com a transcendência é deixar- se tocar incondicionalmente por Deus, é deixar-se experimentar. Falar de Deus é fácil; difícil é deixar Deus falar a nós.
4. Imagens para a prédica
Há duas palavras-chave que dão movimento à parábola: graça e misericórdia. Conseguir passar esse movimento, essa convocação para uma nova maneira de pensar sobre o relacionamento com Deus para a comunidade, pode ser o fio da meada para desenvolver a pregação. Pouco nos deixamos tocar por essas duas palavras: somos todos ainda muito julgadores e muito ligados ao montante de trabalho que conseguimos produzir. Da mesma forma como nos mostra o texto de leitura (Jn 3.10-4.11), no qual Jonas não conseguia entender a compaixão de Deus para com os pecadores de Nínive, mas se compadecia de uma mamoneira. Jonas então escuta de Deus: “Tu tens compaixão de uma mamoneira que não te custou cultivá-la, que brota numa noite e na outra morre, e eu não vou ter compaixão de Nínive, a grande metrópole, em que habitam mais de cento e vinte mil homens que não distinguem a direita da esquerda, e muitíssimo gado?”
Abaixo coloco o texto “Misericórdia”, que talvez possa servir de inspiração. O poema “Graça”, de Johnson Gnanabaranam, que sugiro para a acolhida, define muito bem o que é graça divina.
Misericórdia
Vera Weissheimer
Uma palavra nos livra de todo peso e dor da vida: a palavra é amor. (Sófocles)
Conta-se que havia um jovem no exército de Napoleão que cometera um ato tão terrível, a ponto de ser condenado à morte. Na véspera de seu fuzilamento, a mãe do jovem foi falar com Napoleão e implorou misericórdia para o filho.
Napoleão replicou:
– Mulher, seu filho não merece misericórdia.
– Eu sei – ela disse. – Se ele a merecesse, não seria misericórdia.
Misericórdia é o que, em nossa estupidez, não merecemos. Misericórdia é o amor que nos alcança em nossa fraqueza, em nossa fuga de nós mesmos. Misericórdia é o amor que nos cura quando o mundo nos esqueceu. É olhar com os olhos do coração para a miséria, seja material ou espiritual, do outro.
Aurélio Buarque de Holanda define misericórdia como o sentimento de compaixão suscitado pela miséria alheia. Vem do latim misericordia, no qual juntam-se as palavras miser e cordis. A primeira faz-nos lembrar a miséria humana, e a segunda aponta que precisamos olhar para essa miséria com o coração. Misericórdia é sentimento fermentado em nossas entranhas, como diziam os gregos. Moldada em nossos momentos de dor e sofrimento, entre lágrimas e ranger de dentes. Seja misericordioso e encontrarás misericórdia, ensina Jesus no Sermão do Monte.
Misericórdia é mais do que compaixão. É indulgência. É graça. Não é só um querer bem; é muito mais um fazer bem, que é a prática desse sentimento que nasce dentro de nós. E por nascer de nossas entranhas não pode ser somente teoria. Não é letra morta; o Verbo que se faz ação é palavra viva.
Os cavaleiros da Idade Média carregavam no lado direito da cintura um punhal e com ele matavam os inimigos derrubados. Só não usavam o punhal se o inimigo gritasse: “Misericórdia!”
Nos tempos em que Jesus andava pelo Oriente Médio, a misericórdia já não era mais esperada só da parte de Deus. Ela nasce em Deus, chamado de “Pai da Misericórdia” pelo apóstolo Paulo, mas agora a humanidade precisa seguir o exemplo divino e ser misericordiosa também.
Misericórdia é algo que não merecemos, e é justamente por isso que é misericórdia.
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida:
“É a graça que me encoraja quando minha alma está abatida. É a graça que me sacia quando minha alma está sedenta. É a graça que me diz quem eu sou de verdade quando gostaria de me autopromover. É a graça que me lembra dos meus deveres quando me esqueço do sentido de minha vida. É a graça que me conforta quando estou abalado. É a graça que me ergue do chão quando caio. É a graça que garante o meu futuro quando estou pessimista” (Johnson Gnanabaranam).
Oração de coleta:
Colocamo-nos diante de ti neste dia, Senhor, e pedimos: clareia nossos pensamentos, desanuvie nosso olhar, destrave as palavras de bondade de nossas
línguas, dê-nos discernimento para compreender a tua vontade, o teu desejo, para que conheçamos a verdadeira extensão de tua graça, de tua misericórdia para com teus filhos e tuas filhas. Que neste culto possamos crescer um pouco mais em nosso relacionamento contigo. Abra os nossos ouvidos, nós te pedimos para que a tua Palavra entre por eles e toque nosso coração, que algumas vezes está endurecido e mal-acostumado com as coisas menos importantes. Amém.
Oração eucarística:
Ele olhou a mesa, pensando no melhor símbolo de sua passagem na Terra. Tinha diante de si as romãs da Galileia, as especiarias dos desertos do Sul,
as frutas secas da Síria, as tâmaras do Egito. Deve ter estendido sua mão para consagrar uma dessas coisas quando, de repente, lembrou que a mensagem que trazia era para todas as pessoas em todos os lugares. E, talvez, romãs e tâmaras não existissem em determinadas partes do mundo. Tornou a olhar em sua volta, e outro pensamento lhe ocorreu: nas romãs, nas tâmaras, nas frutas, o milagre da criação se manifestava por si mesmo sem qualquer interferência do ser humano. Então Ele pegou o pão, deu graças, partiu-o e deu aos discípulos dizendo: Tomai e comei todos vós, porque isto é o meu corpo. Porque o pão estava em todos os lugares. E porque o pão, ao contrário das tâmaras, das romãs e das frutas da Síria, era o melhor símbolo do caminho até Deus. O pão era o fruto da terra e do trabalho do ser humano.
Da mesma forma, pegou o vinho (ou o suco da uva), que é a uva transformada por mãos trabalhadoras. Deu graças e o deu a seus discípulos, dizendo:
“Bebei dele todos, porque este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vós, para a remissão dos pecados. Fazei isto todas as vezes que o beberdes em memória de mim”.
Oração para depois da Santa Ceia:
Senhor,
fazei-me um instrumento de vossa paz.
Onde houver ódio, que eu leve o amor;
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão;
Onde houver discórdia, que eu leve a união;
Onde houver dúvida, que eu leve a fé;
Onde houver erro, que eu leve a verdade;
Onde houver desespero, que eu leve a esperança;
Onde houver tristeza, que eu leve a alegria;
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó, Mestre,
Fazei que eu procure mais consolar que ser consolado;
Compreender que ser compreendido;
Amar que ser amado,
Pois é dando que se recebe,
É perdoando que se é perdoado,
E é morrendo que se vive para a vida eterna.
Amém.
(Oração atribuída a São Francisco)
Intercessão:
Senhor, pedimos por todos os seres humanos, tuas criaturas, que têm sede de vida e que estão frequentemente prestes a morrer de sede, de fome, de solidão, de abandono, de falta de solidariedade. Concede a todos nós coragem e esperança em ti até que venha o tempo em que ventos de justiça irão soprar e a paz corra como um rio de águas limpas. Pedimos-te coragem para interferir na nossa sociedade injusta e desigual. Que possamos ter coragem de denunciar todas as formas de violência a que homens, mulheres e crianças são submetidos. Pedimos que olhes por todos nós. Toma-nos em tuas mãos e faze-nos fortes e inteiros. E não nos abandones em nossas horas de fraqueza. Olha por nossa igreja, por nossas famílias e por todos nós. Amém.
Bênção:
Que o vento sopre suave
sobre os seus ombros,
trazendo sempre
o aroma da paz;
Que o fogo aqueça o seu coração,
deixando-o sempre pleno de ternura;
Que a palavra que sair dos seus lábios e
as que visitarem os seus ouvidos levem e tragam sempre o som
de uma bênção.
(Luiz Carlos Ramos)
Bibliografia
JEREMIAS, Joachim. As Parábolas de Jesus. São Paulo: Edições Paulinas, 1978.
RIETH, Ricardo Willy. Mateus 20.1-16. Proclamar Libertação n. 29, 2003, p. 296-301.
CULLMANN, Oscar. A Formação do Novo Testamento. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1984.
PRONZATO, Alexandre. Evangelhos que incomodam. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).