Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 20.1-16
Leituras: Jonas 3.10-4.11 e Filipenses 1.21-30
Autora: Anelise Lengler Abentroth
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 21/09/2014
1. Introdução
Ao receber os textos previstos, perguntei-me: Por que escrever novamente sobre um texto tantas vezes comentado em Proclamar Libertação e sobre o qual eu mesma já preguei várias vezes e em diversas situações? Pois foi pesquisando nas publicações mais antigas e mais recentes que encontrei leituras conflitantes, que nos instigam a continuar nossa reflexão. Como o espaço desta publicação é limitado, convém que pregadores e pregadoras leiam a bibliografia relacionada para uma melhor compreensão.
J. Jeremias diz que, desde tempos imemoriais, a parábola sofreu alegorização. Entre essas alegorizações está a conclusão centrada numa visão de julgamento a partir do versículo 16: “Pois muitos são chamados, mas poucos escolhidos. Como a parábola justifica a verdade de que muitos são escolhidos, isto é, que o número dos que alcançam a salvação é pequeno? Os que foram chamados de manhã cedo, os primeiros, são compreendidos aqui como um exemplo de advertência. Com certeza foram chamados. Mas porque murmuram, porque apelam gloriando-se de seus méritos, porque se revoltam contra a decisão de Deus, porque (assim se continua a interpretar) recusam o dom de Deus, eles próprios se excluem da salvação” (JEREMIAS, p. 29-30). É preciso tomar cuidado para não transformar a parábola e a prédica numa parábola de julgamento.
2. Exegese
O contexto da parábola aponta para as dificuldades do povo de compreender a proposta do reino de Deus. Günter Wolff escreve em seu comentário sobre o texto: “Em Mateus 19.29, Jesus coloca que não é o que se ganha a mais ou a menos que decide, mas o que decide é o projeto do Reino, que traz vida para todos. As poucas coisas que deixamos são insignificantes frente à grandeza das conquistas que o Reino traz para todos… A proposta do Reino tira do plano individual para jogar no plano coletivo”.
Conforme Uwe Wegner, poderíamos dividir o texto desta forma:
1) Contato e convite: 1-7;
2) Pagamento dos salários: 8-10;
3) Protesto e justificativa: 11-15.
Conforme Luise Schottroff, o kyrios (o proprietário da vinha – 20.8), o oikodespotes (patriarca – 20.1,11) é apresentado de duas formas:
1 – Ele é proprietário da terra e tem o direito irrestrito de dispor dela. Conforme o v. 15a, segundo o direito romano, o proprietário pode fazer o que quiser com suas posses. Porém essa concepção entra em conflito com a Torá, segundo a qual Deus é o senhor da terra. O v. 15 é uma blasfêmia! Também o poder de dispor do que possui na forma de pagamento, em que apenas o primeiro grupo fica sabendo antecipadamente o valor do salário, retrata o direito romano. Segundo pesquisadores, muitos pequenos agricultores haviam perdido suas terras devido às dívidas contraídas pela ordem imposta. Isso era uma ferida aberta para muitas famílias. A plantação de uvas era a base da subsistência das famílias, e com a nova ordem econômica estabelecida houve uma profunda transformação econômica. “O vinho proporciona ganhos maiores do que o cereal em termos de área cultivada” (Schottroff, p. 264). De uma sociedade escravagista, em que os escravos pertenciam ao dono da terra e seus direitos e deveres estavam bem definidos, surge uma nova classe social, cujos direitos não estavam definidos e ficavam à mercê da boa vontade do patrão: os diaristas. Provavelmente eram famílias e pequenos agricultores que perderam suas propriedades por dívidas. No texto, percebe-se que os que foram contratados depois da primeira hora estavam nas mãos do patrão, que se vale do desemprego para beneficiar-se, se quiser. Os diaristas encontram-se numa situação totalmente debilitada. Ele é uma espécie de escravo por sua própria conta e risco.
2 – O patrão é bom (Mt 20.15), pois ele vê o desemprego (20.3,6). Ele decide dar o salário integral àqueles que puderam trabalhar apenas uma parte do dia. Eis algo novo na pesquisa: a contratação de diaristas durante o dia faz com que o custo de produção fique mais baixo. Pois ele pode projetar com precisão quanta mão de obra vai precisar para atingir a meta proposta para o dia. Essa atitude permitia explorar ainda mais o desemprego, pois se poderia pagar menos de um denário pela força de trabalho conforme a hora contratada. “Sua bondade aparece de modo surpreendente após a narrativa dos v. 1-7. No entanto, sua bondade permanece nos limites do quadro conceptual dos proprietários de terra do período imperial romano” (Schottroff, p. 264).
Por isso posso concordar com as palavras de G. Wolff quando diz que nessa parábola Jesus fala aos dois: aos donos dos meios de produção e aos trabalhadores. “Fala da necessidade de os dois mudarem para que se realize o projeto do Reino” (PL XVIII, p. 239).
Precisamos evitar uma interpretação alegórica dessa parábola. Pois se Deus é o patrão da vinha, ele não é tão bondoso como temos afirmado. Pois ele estava agindo dentro dos parâmetros da economia liberal da época, em que tanto os césares como os ricos oficiais do Estado perdoavam dívidas e faziam outras boas ações dentro de seu perfeito e frio cálculo político. O patrão não rompe com o quadro das concepções da época. Portanto nossa parábola é antitética. Ela não quer que o reino de Deus seja equiparado, e sim comparado com o comportamento o proprietário de terras. Podemos dizer que ele não é tão generoso quanto pensávamos. É apenas caridoso!
Aquele um denário que os diaristas receberam é o salário normal de um trabalhador rural diarista. Isso permitia a uma família viver no limite mais baixo do padrão de vida naquela época. Permitia apenas sobreviver. O ganho além, com certeza, era conseguido pelo trabalho das mulheres e crianças, que recebiam um valor bem inferior.
A pergunta que não quer calar é: por que o proprietário da vinha quer que os diaristas da primeira hora vejam os últimos receberem seu salário? Essa atitude gerou uma controvérsia, que divide os ouvintes até hoje. Porém o dono responde apontando para a legalidade de sua ação: 1) ele pagou conforme o contratado;
2) ele tem o direito de fazer o que quiser com o que é seu. Ele acusa os primeiros diaristas de ser gananciosos. Parece que ele quis provocar o protesto. E aqui algumas interpretações tratam de colocar a culpa nos próprios diaristas.
Assim a parábola termina de forma aberta. A situação dos trabalhadores rurais livres no Império Romano é exposta de forma clara e escancarada. Não há outra forma para os ouvintes reagirem do que continuar discutindo as atitudes e a perspectiva de todos.
No v. 16, a parábola é interpretada por Jesus de maneira escatológica. Ela é uma profecia sobre o reino de Deus. Muitas vezes, ela é interpretada eclesiologicamente, dando a impressão de que os discípulos e discípulas são aqueles e aquelas que se tornarão os primeiros. Porém os últimos nos remetem ao grupo de trabalhadores contratados durante o dia. “O Evangelho de Mateus em seu conjunto pinta um quadro chocante do sofrimento do povo. A sentença de 20.16 constitui promessa para todo o povo, como são as bem-aventuranças de Mateus 5.3-10… Nas promessas das bem-aventuranças, o reino de Deus é prometido àqueles que sofrem com a pobreza, a enfermidade e a relação com Deus (5.3). Para eles, oferece-se já agora o caminho que leva para fora da miséria: o caminho da renúncia à violência (5.5), da fome de justiça (de Deus), da misericórdia (5.7), da pureza dos corações (5.8) e da promoção da paz… Mateus 20.16 convida todos os ouvintes para seguir esse caminho” (SCHOTROFF, p. 270).
O povo (os ouvintes de Jesus) não estava mais em condições de agradecer a Deus pelo alimento e pela terra, como faziam seus antepassados naquele contexto. A parábola indica o caminho para fora dessa situação de destruição da base da vida digna. “A economia de Deus é uma economia de justiça, como foi apresentada no milagre do maná (Êx 16)”. A justiça e a bondade de Deus e seu Reino não podem ser equiparados à caridade dos donos de produção.
3. Meditação
Novamente Jesus nos surpreende ao revelar o reino de Deus por intermédio de uma história que evidencia um grande conflito nas relações econômicas e políticas de sua época. O reino de Deus não nos tira da realidade, nem permite omissão. Ele é concreto e já inicia aqui e agora.
Nessa parábola, Jesus levanta a questão da posse da terra e da dominação ideológica por meio das leis, que esconde uma situação injusta e que deixa o povo em extrema vulnerabilidade. Alguns grupos judaicos eram intransigentes no cumprimento das leis. Porém aquelas que mexiam nas questões centrais permaneciam despercebidas.
A narrativa questiona todos os envolvidos: os donos dos meios de produção, os trabalhadores, os fariseus e todos os presentes. Por incrível que pareça, são os diaristas que mais questionam a atitude do patrão. Assim podemos afirmar que o texto não aponta somente para a relação de exploração dos trabalhadores na vinha, como também demonstra a falta de solidariedade entre eles, a sua visão individualista do trabalho e das necessidades e o quanto assimilam as leis e o sistema opressor e submetem-se a ele. “Os trabalhadores contentam-se com a prática econômica e de vida existente e não têm um projeto maior e mais amplo; preocupam-se apenas com as migalhas do dia a dia. Jesus coloca aqui em discussão uma proposta de vida que inclui o econômico, o social, o político e o ideológico” (WOLFF, PL XVIII, p. 237).
A parábola é provocativa e não deixa os ouvintes indiferentes. Assim também vou propor um olhar sobre a realidade que estamos vivendo. No livro “Abusado”, do jornalista Caco Barcelos, narram-se as histórias de vida de jovens da grande favela de Santa Marta na cidade maravilhosa, o Rio de Janeiro. Relata a vida de um jovem de 16 anos que, por estar muito perto do tráfico, fazia às vezes algum serviço de leva e traz, que lhe rendia um bom dinheirinho. Mesmo indo à escola e participando das atividades da Associação de Moradores e da igreja, a convivência com o tráfico chega a ser “normal”. Pois, certa feita, depois de um confronto violento de policiais corruptos com traficantes, o menino viu um desses ser torturado e arrastado pelas ruas, agonizando até morrer. Nesse momento, decidiu que não era essa a vida que ele queria para si. Então tratou de descer o morro e procurar um emprego para levar a vida como as pessoas “do asfalto”.Depois de muito procurar vagas de porteiro de hotel, office-boy, garçom, encontrou trabalho como auxiliar numa oficina mecânica. Esse trabalho, de oito horas diárias, rendia-lhe meio salário mínimo, pois era menor de idade. Sabia que é lei: menores de idade e estagiários não precisam receber salário integral nem os direitos trabalhistas de carteira assinada. Então se lembrou de seu avô, que fora porteiro de um dos hotéis mais luxuosos de Copacabana durante toda a sua vida. E onde estava agora? Sua vida de trabalho dedicado rendeu-lhe um casebre no morro com as paredes cheias de autógrafos de artistas e políticos famosos, para quem abria as portas e aos quais servia gentilmente. Com o passar do tempo, as oportunidades de ganhar mais do que o triplo apenas servindo de “avião” para o tráfico, o jovem não resistiu e abandonou seu emprego.
Com essa história não estou fazendo a apologia do tráfico, apenas quero estabelecer alguns paralelos com nossa parábola. Muitas vezes, ouvimos que não se pode remunerar melhor a classe trabalhadora porque isso quebra os patrões, a economia. Pois o giro de dinheiro que passa pelos morros e periferias dá-nos a ideia de que dinheiro existe e muito! As leis do tráfico são leis próprias. Mas o que se vê é que o dinheiro é bem distribuído e desfrutado (talvez porque eles saibam que sua vida é curta). Isso quebra alguns paradigmas defendidos por aqueles que acreditam que fora do capitalismo não há vida.
1) Dinheiro há, mas no capitalismo ele gira pouco. Ou melhor, gira entre os mesmos.
2) Diz-se que, para as pessoas trabalharem e produzirem, são necessários concorrência e desafios. No morro, trabalha-se motivado pela partilha, que não é migalha.
3) As leis que protegem crianças e adolescentes do trabalho e da exploração infantil têm levado muitos à criminalidade, porque vêm de famílias que não têm o seu denário para viver. Estão em situação de vulnerabilidade total.
4) Infelizmente, a forma de organização a que essas pessoas recorrem é a lei que impera no morro, por medo, por ambição, por conivência, por afetividade, por sobrevivência.
5) Esporadicamente, aparecem no morro artistas e jogadores de futebol, que criam associações ou fundações, fazem eventos televisionados para mostrar ao mundo a sua caridade às crianças da favela. Nós sabemos que isso faz parte de seu empreendimento para fugir das garras do “leão” (imposto de renda) ou autopromover-se ainda mais.
Como na parábola, a realidade não nos permite deixar de refletir e questionar, pois ela diz respeito a todas as pessoas e a forma como nos organizamos e como estamos vivendo. O que não podemos deixar de frisar é o v.16: os últimos serão os primeiros. E isso não se dará por mérito, mas por graça. Pois a terra e as dádivas que Deus nos dá devem estar a serviço das pessoas, necessitam gerar vida digna e oportunidades iguais para vivê-la. O trabalho serve para gerar igualdade e bem-estar e não miséria e doença.
O reino de Deus não vai reproduzir a nossa prática. O reino de Deus garante vida plena e digna. Quem olha somente para si, para suas necessidades e vontades, quem não tem amor pelos seus irmãos e irmãs, quem não se sente comprometido com a vida e o cuidado com o próximo vai reclamar e muito na hora do “pagamento”. O relacionamento entre nós necessita ser o mesmo que Deus tem para conosco. Se não conseguimos, eis o nosso pecado. Afogá-lo diariamente e alegrar-se com as conquistas de um novo mundo possível é imprescindível para quem crê.
4. Imagens para a prédica
Além do exemplo acima, que pode estar distante da realidade da comunidade, podemos usar outro: Acompanhei uma família de padrinho e madrinha de um menino de 15 anos. Ele morava com sua família numa localidade às margens do lago Itaipu (divisa com o Paraguai). Por ser área de fronteira, os pequenos agricultores eram assediados pelos contrabandistas de cigarros e outras coisas para servir de mão de obra, ajudando, algumas noites por semana, a descarregar as mercadorias dos barcos e colocá-las em caminhões, que seguiam pelas estradas vicinais. Pois esse menino estava prestes a aceitar o convite. Ele receberia R$ 150,00 por noite trabalhada. Seu pai e sua mãe não sabiam mais que argumentos usar para que o menino não se envolvesse nisso. Como último recurso, enviaram o jovem para a cidade, à casa de seu padrinho e madrinha, para que lá ele encontrasse algum emprego que lhe rendesse algum dinheiro e não abandonasse os estudos. O único trabalho que ele encontrou foi de ajudante numa oficina mecânica, que lhe rendia meio salário mínimo. O que podemos fazer como comunidade cristã diante dessa situação? Isso é problema somente do pai e da mãe desse adolescente?
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados:
Salmo de um protestante
Pai Nosso, somos filhos e filhas da Reforma,
Mas andamos desgarrados, ausentes, descompromissados, desiludidos até.
Onde ficou o espírito protestante do movimento?
Perdeu-se na mesmice do tempo ou ocultou-se preventivamente?
Que evangelho é esse que anunciamos?
Consolo barato ou desafio permanente?
Protesta contra nós, Senhor da Vida, quem sabe alguém te escute,
E o espírito primeiro desate o nó que asfixia a minha veia.
Perdão, Senhor, pela arrogância dos iluminados, pela certeza dos piedosos,
Pela leviandade dos despreocupados, pela ciosa cautela dos fartos.
Ajuda-nos a buscar o evangelho da graça e da vida solidária.
Isso não é pouca coisa.
E ajuda-nos a viver com os olhos postos no horizonte do reino da justiça
e do amor.
Tem piedade de nós, Senhor!
(ZWETSCH, Roberto, Vigília, p.15)
Absolvição:
Povo de Deus: espere no Senhor!
Porque em Deus há misericórdia e abundante redenção.
É o próprio Deus quem remirá seu povo
De todas as suas transgressões.
(Salmo 130.7-8)
Oração de intercessão:
Por todas as pessoas que buscam a Deus, que elas possam encontrá-lo.
Por aqueles que acham que já tem Deus, que eles possam buscá-lo.
Por todas as pessoas que temem o futuro, que elas possam ter confiança.
Por todos os que fracassaram, que eles possam ter novas oportunidades.
Por todas as pessoas que têm dívidas, que elas não fiquem desesperadas.
Por todos os que vagam sem rumo, que eles possam encontrar um teto.
Pelas pessoas solitárias, que elas possam encontrar alguém.
Pelos que têm fome dia e noite, que eles possam ser saciados.
Por aquelas pessoas que têm o que comer, que elas possam sentir o que é ter fome.
Por aqueles para os quais vai tudo bem, que eles não se tornem indiferentes.
Pelos que têm poder, que eles tomem consciência de que são vulneráveis.
Por todos os que vivem no mundo entre esperança e medo,
e também por nós, oremos ao Senhor.
Liberta-nos do medo de um sentimento enganoso de segurança
E concede-nos todas as coisas que são para o nosso bem.
Por Jesus Cristo, nosso Senhor.
(Em tua graça, Nona Assembleia CMI, p. 51-52)
Bênção:
Que a graça de nosso Senhor Jesus Cristo
Nos proteja de causar danos uns aos outros;
E que o amor de Deus encha as nossas vidas
Com a paz que estende suas mãos ao próximo
Num gesto de verdadeira reconciliação e amizade.
(Em tua graça, Nona Assembleia CMI, p.71)
Bibliografia
JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. 4. ed. São Paulo: Ed. Paulus, 1997.
SCHOTTROFF, Luise. As Parábolas de Jesus, uma nova hermenêutica. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).