Com disposição e firmeza
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 21.1-11
Leituras: Isaías 50.4-9a e Filipenses 2.5-11
Autoria: Cláudio Kupka
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 05/04/2020
Ouvem-se vozes de festa ao longe.
Ouvem-se gritos de grande euforia.
Multidão saudando um homem que chega.
Quem é este que ao povo
é capaz de devolver a esperança?
Hosana ao Rei! Hosana ao Rei!
Hosana ao que vem em nome de Deus!
Ramos e vestes saúdam sua vinda.
Homens, mulheres, crianças cantando.
Sempre sonharam com este momento.
Se calarem este povo,
até mesmo estas pedras clamarão:
Se a cruz foi seu trono, a coroa espinhos,
o seu Reino é maior que qualquer sonho.
Cristo vive e reina. Comunhão oferece
para todos que de coração clamarem.
Livro de Canto da IECLB , 418
1. Introdução
O texto bíblico de Mateus 21.1-11 inspirou muita gente no decorrer da história do povo de Deus. Cristo saudado como rei entrando em Jerusalém é uma cena quase que apocalíptica. Cristo é digno de louvor e adoração como rei. Mas é uma história intrigante, pois o desfecho não foi aquele idealizado por seus seguidores tão empolgados pela trajetória de seu mestre. O que sucedeu àquele louvor todo? Que trono recebeu aquele rei? Mais ainda. Teria Jesus acolhido aquele louvor como se aquele fosse capaz de mudar eventualmente os rumos do seu desfecho trágico? O que se passava na mente e no coração de Jesus naquele momento? Domingo de Ramos é celebrado no começo da semana da paixão de Cristo. Cada gesto e palavra de Jesus nessa semana se revestem de uma intensidade simbólica especial.
Os textos de leitura colaboram muito. Isaías 50.4-9a verbaliza o sentimento e a convicção de Jesus diante da ameaça condenatória. O Senhor é quem me defende, diz o v. 9a. Ele descreve profeticamente o sofrimento físico e emocional de Jesus. No filme Jesus de Nazaré, de Zeffirelli (1977), Nicodemos aparece recitando Isaías 53, enquanto Jesus está morrendo na cruz. Filipenses 2.5-11, o cântico messiânico, podia ser a narrativa de alguém distante, assistindo à entrada de Jesus na cidade. Descreve a humildade e a postura pacífica de Jesus, o servo de Deus. Devidamente acompanhado, nosso texto se coloca como um convite à nossa reflexão e meditação.
2. Exegese
Em termos textuais, há discrepâncias sinóticas exatamente em relação a Mateus. É nele somente que há referência à jumenta e ao jumentinho (v. 2), enquanto os outros somente se referem a um jumentinho. Nele também é mencionada a citação de Zacarias 9.9 (v. 14,15), dando a ideia de que a maneira como acontece a entrada é cumprimento de uma profecia. Mateus, por sua vez, não descreve o momento da busca dos animais nem o questionamento do proprietário.
O contexto de nossa perícope refere-se ao período em que Jesus atua na Judeia (Mt 19 em diante). Nesse período acentua-se a pregação sobre o preço do discipulado, o anúncio de sua morte e ressurreição. É provável que os discípulos não tenham percebido o real desfecho dessa ida a Jerusalém. O trecho de 20.20-28 descreve o inapropriado pedido da mãe de Tiago e João para que seus filhos pudessem sentar-se à direita e à esquerda de Jesus em seu reino, como se a perspectiva da atuação de Jesus fosse de sucesso em termos humanos. Jesus responde que se a disposição deles for a mesma de Jesus, isto é, de servir em amor e sacrifício, então poderão partilhar do mesmo cálice.
Na sequência, mais parece uma ironia que Jesus tenha curado ainda dois cegos antes de planejar a entrada em Jerusalém. Em Lucas 19.41-44, um texto exclusivo daquele evangelista, Jesus se refere a Jerusalém como quem não pode ver quem é esse que a visita. O contexto posterior é conhecido. Jesus se dirige ao templo e expulsa os mercadores que transformaram aquela casa de oração, sob a licença da autoridade judaica, num covil de ladrões. Jesus segue, segundo Mateus, tratando do tema de sua messianidade e da crítica e rejeição dos representantes do povo judeu.
Nosso texto pode ser dividido em três partes: (a) a preparação (v. 1-7); (b) a entrada (v. 8,9) e (c) a reação do povo de Jerusalém (v. 10,11).
a) A preparação inicia com o envio de dois discípulos ao povoado de Betfagé. Essa pertencia aos limites territoriais de Jerusalém. Era uma espécie de bairro ou distrito e distava cerca de 1 km da cidade, que se preparava para a festa da Páscoa. Vindo de Jericó, o vilarejo que antecede Jerusalém é Betfagé, que significa “casa de figos”. Logo depois vem o monte das Oliveiras, o vale dos Cedros e a cidade de Jerusalém. Betfagé fica no limite da zona sabática em torno da cidade de Jerusalém.
Os discípulos receberam instruções de Jesus de tomar uma jumenta e um jumentinho que estavam nesse povoado. Se alguém perguntasse algo, era para dizer que o Mestre precisa deles. A citação do v. 5 de Zacarias 9.9 tem em vista afirmar o cumprimento profético de que o Messias entrará em Jerusalém triunfante e vitorioso, mas de maneira humilde montado num jumentinho. No v. 10 há uma clara referência ao fim das armas de guerra e à instauração de um período de paz entre as nações. Zacarias profetiza em relação à volta do povo exilado e à reconstrução de Jerusalém.
Ainda dentro da preparação da entrada, há uma primeira referência à colocação das próprias vestes dos discípulos sobre o jumentinho para que Jesus sentasse nele. Há uma série de referências importantes aqui no que diz respeito ao simbolismo do caminho tomado por Jesus. Geralmente, o cordeiro pascal era trazido de Betfagé e levado ao monte do Templo. O sol nascia justamente no monte das Oliveiras, por onde passava o caminho que Jesus tomou para chegar a Jerusalém. Provavelmente Jesus entrou pelo Portão Dourado, que está localizado na seção norte da muralha leste do monte do Templo, o qual era chamado de “O Portão da Misericórdia”. Ele é considerado o lugar por onde o Messias entrará no fim dos dias. Também de acordo com a tradição judaica, a Shekhinah / שכינה (Presença Divina) costumava aparecer pelo Portão Oriental e aparecerá novamente quando o Ungido (Messias) vier (Ez 44. 1-3).
Há uma discussão se Jesus montou a jumenta e o jumentinho simultaneamente ou só um dos dois. Uma discussão irrelevante, ao meu ver. Os demais evangelhos só se referem ao jumentinho. Creio que isso resolve a questão.
b) A entrada acontece em clima festivo com as pessoas espontaneamente colocando suas capas e ramos para Jesus passar. Tudo indica que esses gestos são referência à recepção efusiva de reis na cidade. Ramos eram usados na Festa dos Tabernáculos ou Festa da Colheita (Sucá/Sucot), ocasião em que o povo celebrava, ofertava sacrifícios, água e morava em tendas de ramos por sete dias, em gratidão pelo sustento de Deus durante a peregrinação no deserto e a ocupação da terra prometida. Tendas de ramos fazem referência à provisoriedade de suas moradias. Por outro lado, erguer e agitar ramos significa louvor a Deus (Sl 118.27). A entrada triunfal e os ramos da palmeira lembram também a celebração da libertação judaica em 1 Macabeus 13.51, que afirma: E entrou nela […] com ações de graças e ramos de palmeiras, e com harpas e címbalos, e com violas e hinos e músicas.
O povo à frente e atrás de Jesus o saudava dizendo: Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosana nas maiores alturas! O texto refere-se ao Salmo 118.25-26, um salmo de ação de graças pela vitória de Israel que faz várias referências à esperança messiânica. Fala da pedra que os construtores rejeitaram e que se tornou a mais importante (v. 22), frase, aliás, que coincidentemente é citada pelo próprio Jesus na explicação da parábola dos lavradores maus (Mt 21.42).
c) A reação do povo de Jerusalém (v. 10, 11) é espantosa. O evento literalmente abala a cidade (eseisthe – aoristo passado de seiō). Diante da pergunta sobre quem ele era, o povo fala dele como profeta, o que confere com uma das muitas designações de Jesus (Mt 16.14; Lc 7.16).
3. Meditação
Após pregar a mensagem do evangelho e sinalizar com curas e milagres essa novidade do reino de Deus, Jesus culmina sua missão indo na direção de Jerusalém, centro religioso, sede do templo. Ele enfrenta todos que o acusam e tramam sua eliminação. Jesus apresenta então claramente ao povo e aos opositores o caráter de sua mensagem a Jerusalém, que simboliza o povo de Israel. Como se diz em inglês: Jesus made a statement – Jesus faz uma declaração de seus princípios, do conteúdo de sua missão.
Jesus é transparente na sua postura. Não é ardiloso nem age às escondidas. Lembremos a passagem de Marcos 14.48, 49: Vocês vêm com espadas e porretes para me prenderem como se eu fosse um bandido? Eu estava com vocês todos os dias, ensinando no pátio do Templo, e vocês não me prenderam. Ou seja, ninguém poderia estranhar que ele tivesse entrado na cidade daquela maneira. Ele não trairia sua maneira de ser e o conteúdo de sua mensagem nem na hora do confronto.
Mesmo que pudesse ser postergado, era inevitável esse confronto. Lá se contraporiam dois projetos: o da autopreservação do judaísmo e o do reino de Jesus. É bom lembrarmos aqui a pregação de João Batista centrada na preparação à chegada do Messias. Quando esse Messias enfim chega a Jerusalém, espera–se um posicionamento, uma resposta. Espera-se um coração aberto ao Filho de Deus. Porém o medo da perda do poder e da ameaça à liderança deles sobre a religião judaica mobilizou essa liderança contra Jesus. Não aceitaram receber o Filho de Deus e a revelação da vontade de Deus.
Jesus sinaliza sua posição ao usar o jumento, sinal de um rei que vem em paz. Aqui a novidade é que o reino de Jesus não se impõe pelo poder militar e pela violência, mas somente pela fé. Por isso é frágil diante das artimanhas humanas e permite ser aparente joguete entre os poderes romanos e judaicos e vítima da pior das penas romanas. Isso não abala Jesus. Ele cumpre todo o seu propósito, apesar de toda oposição. Jesus vem em paz, mas é ironicamente rejeitado da maneira mais ostensiva e simbólica possível.
O povo sinaliza a percepção dessa oportunidade e o saúda com vestes e ramos. Se há dúvidas sobre quem saudou a entrada de Jesus ao entrar em Jerusalém (se poderia ser o mesmo que depois também gritou para que ele fosse crucificado), é verdade que Jesus aceitou esse gesto.
Os discípulos põem suas vestes para Jesus sentar no jumento. Eles próprios empenharam suas vidas em compromisso com Cristo. Os discípulos também participaram desse louvor.
Lucas coloca os discípulos em estado de euforia naquela entrada. Diante da crítica dos fariseus, Jesus cita aquela frase: Se eles se calarem, as próprias pedras clamarão. Parece que nada pode impedir que Jerusalém aclame seu rei. As próprias pedras serão testemunhas de que os seguidores de Jesus estavam com a razão.
Jesus segue firme e consciente do conteúdo de sua mensagem e da rejeição já dada à sua mensagem e à sua pessoa. A euforia dos discípulos e do povo contrasta com a serenidade e humildade de Jesus. Ele continua focado na coerência de seu propósito e sua mensagem. Diante da aclamação ou diante da condenação, ele segue firme seu chamado.
Essa é uma reflexão importante sobre nossa postura como povo de Deus. Nossa busca por clareza e firmeza de princípios deve ser um testemunho importante num mundo em que os conceitos e valores são fluidos e indefinidos. Facilmente nossa postura é acusada de ser tendenciosa e uma ameaça aos valores que sustentam nossa sociedade autossuficiente. Nossas armas para esse combate são a postura pacífica, a consciência comprometida com a vontade de Cristo e a coragem para enfrentar toda e qualquer força que pretenda destruir a criação de Deus e/ou distorcer nossa voz e serviço. Como aconteceu com Jesus, devemos estar dispostos ao sacrifício em nome do cumprimento do chamado de Deus. Devemos dizer como Pedro, diante de qualquer questionamento: Para onde iremos? Tu tens as palavras que dão vida eterna (Jo 6.68).
Domingo de Ramos é momento de celebrar o louvor a Cristo e simultaneamente a vulnerabilidade de nossas intenções e nosso compromisso como discípulos. É tempo de meditar se estamos comprometidos com Cristo tanto na postura de paz como na firmeza de nosso propósito.
4. Imagens para a prédica
1. Certo dia o fósforo disse à vela:
– Minha missão é te acender.
– Ah, não! – disse a vela. – Tu não vês que, se me acenderes, meus dias estarão contados? Não faz uma maldade dessas, não.
– Então quer permanecer toda a tua vida assim dura, fria, sem nunca ter brilhado? – perguntou o fósforo.
– Mas ter que me queimar? Isso dói. Consome as minhas forças – murmurou a vela.
– Tens toda razão – respondeu o fósforo. – Esse é precisamente o mistério da tua vida. Nós fomos feitos para ser luz. O que eu, como fósforo, posso fazer é muito pouco. Mas se passo a minha chama para ti, cumprirei com o sentido de minha vida. Eu fui feito justamente para isto: para começar o fogo. Tu és a vela. A tua missão é brilhar. Toda a tua dor, a tua energia se transformarão em luz e calor, e só assim poderão ser útil àqueles que necessitam de luz.
Ouvindo isso, a vela olhou para o fósforo, que já se estava apagando, e disse:
– Por favor, acende-me!
2. Eu acompanhei um amigo até a banca de jornal. Meu amigo cumprimentou o jornaleiro amavelmente, mas, como retorno, recebeu um tratamento rude e grosseiro. Pegando o jornal, que foi atirado em sua direção, meu amigo sorriu atenciosamente e desejou ao jornaleiro um bom final de semana.
Quando nós descíamos pela rua, perguntei:
– Ele sempre te trata com tanta grosseria?
– Sim, infelizmente é sempre assim.
– E tu és sempre tão atencioso e amável com ele?
– Sim, sempre sou.
– Por que tu és tão educado, já que ele é tão rude contigo?
– Porque não quero que ele decida como eu devo agir.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Querido e amado Deus, confessamos que somos muitas vezes rápidos em nos comprometer com a tua causa, mas lentos em perceber o quanto a traímos com nossa maneira inadequada de viver. Perdoa-nos quando cremos que a agressividade de nossa defesa da fé traduz o real conteúdo de nossa mensagem cristã. Perdoa-nos por não saber compatibilizar a firmeza da fé com uma postura de respeito e paz para com o nosso próximo. Em nome de Jesus, oramos. Amém.
Anúncio da graça
Rendei graças ao Senhor, porque ele é bom, porque a sua misericórdia dura para sempre (Sl 118.1).
Oração do dia
Entra pelas portas, ó Deus, de nossa cidade. Entra pelas portas de nosso coração. Revela mais uma vez tua palavra que liberta e transforma. Que sejamos verdadeiramente acolhedores de teu amor e comprometidos com tua causa. Em nome de Jesus, teu Filho, único Senhor e Salvador, oramos. Amém.
Cantos
LCI 364, 416-421.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).