Prédica: Mateus 21.14-17
Autor: Marli Lutz e Valdir Frank
Data Litúrgica: 4º. Domingo após Páscoa
Data da Pregação: 17/05/1987
Proclamar Libertação – Volume: XII
l – Introdução: Jesus e a irrupção dos ausentes
Quando João Batista, preso, mandou perguntar a Jesus: És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?, Jesus respondeu: Os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados e aos pobres está sendo pregado o evangelho (Mt 11.3.5). Jesus se manifesta aqui como porta-voz e agente da graça de Deus, sinal do Reino que está se concretizando.
O povo há muito está na espera deste Reino. E, finalmente, esta esperança está deixando de ser utópica. Ela está se tornando realidade presente para os humilhados, marginalizados e massacrados da sociedade e da igreja. O povo vai percebendo esta nova realidade.
Mas há aqueles que não aceitam este fato novo, e assim esta graça de Deus se reverte em ameaça aos puros, justos e ricos. Por isso Jesus conclui: E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço (Mt 11.16).
Na verdade, Cristo nunca pregou a si mesmo. Nem se anunciou como Filho de Deus, como Messias ou como Filho de Davi. Na entrada triunfal em Jerusalém as multidões o aclamaram com o título Filho de Davi. No templo as crianças procederam do mesmo modo. Isto são expressões de fé do povo. Mateus coloca estas expressões de fé em contraste à atitude dos veiculadores da fé israelita, os líderes do povo, os que rejeitaram o Filho de Deus.
Em Jesus os ausentes se tornam presentes. As cadeias da opressão são rompidas. Uma nova ordem é trazida. Ver sinais desta nova ordem é o que nos anima e dá continuidade á nossa missão junto a este povo sofrido.
II – O Jesus socialmente situado
1. Pontos sobre a realidade na Palestina do século l
A Palestina no tempo de Jesus se encontrava numa situação fortemente marcada por conflitos sociais e estruturas geradoras de pobreza e marginalização.
O campo era marcado por uma situação agrária injusta que favorecia a concentração das terras e do capital nas mãos de poucos. O processo de espoliação e empobrecimento dos lavradores estava bastante avançado a ponto de serem reduzidos à condição de sem-terra e desempregados (Mateus 20 e 21)(Brakemeier, Pobres e…, p. 21).
Os tributos aos romanescos impostos e os dízimos ao templo eram fatores determinantes que levaram o povo em geral a este extremo empobrecimento. Era no templo que se articulavam os poderes tanto religiosos como civis, econômicos e políticos. O templo abrigava o Sinédrio – órgão de Justiça do Estado. Como órgão ideológico-religioso do Estado, se revestia de grande importância econômica. Além de ser um centro comercial de primeira ordem, recuperava para o Estado, através da coleta de impostos, uma boa parte do sobreproduto social do povo judeu (Houtart, p. 213).
Dentro de toda esta estrutura de dominação a lei exercia uma função fundamental e determinante como legitimadora destas estruturas sociais e políticas. A lei não era algo puramente religioso. Era com base na ‘tora’ que se distinguiam pecadores e justos, puros e impuros, respectivamente os socialmente integrados e excluídos. (Brakemeier, Pobres e…, p. 34). Sua função consistia, pois, em grande parte, em abençoar as ilegítimas estruturas de poder.
Jesus sujeita esta mesma lei a um outro propósito: ela deve estar a serviço da vida das pessoas. Somente assim será expressão da vontade de Deus. Jesus arranca a lei do domínio dos grupos dominantes e coloca o relacionamento humano em uma nova base onde rege o princípio da igualdade e por isso todos necessitam de igual modo da misericórdia e da graça de Deus. A lei serve apenas como instrumento a serviço da vida das pessoas. Por isso a lei se volta contra os que a usavam em benefício de seus próprios interesses. (Brakemeier, Pobres e…, p. 37)
Devemos encarar o nosso texto, como também o que antecede – a expulsão dos vendilhões do templo – dentro deste pano de fundo histórico. Acabando com o comércio no templo, Jesus está anulando o próprio templo, uma vez que este precisa do comércio para sobreviver. E, neste sentido, Jesus derruba um dos principais pilares sobre os quais a sociedade de então estava construída (Houtart, p. 230).
É interessante observar que esta oposição de Jesus ao templo não é um acontecimento isolado mas está situado no conflito entre a roça e a cidade. A crítica ao templo e à religião era comum entre a população rural, e Jesus se identifica com a causa do povo da roça nesta sua oposição à cidade e ao templo (Schönborn, p. 153).
2. O texto – Deus se revela no seu contrário
Os vv. 14-17 são matéria exclusiva do evangelista Mateus mas formam uma unidade com os vv. 12-13 (Brakemeier, Preleção p. 7). Está inserido na última etapa do ministério de Jesus, que inicia com a sua entrada triunfal na cidade santa.
v. 14: Diante da lei coxos e cegos eram considerados impuros ao lado de outros grupos de doentes – e, por isso, excluídos da comunidade como também da sociedade. Como já vimos anteriormente, este sistema da pureza/impureza legitimava, no nível religioso, a marginalização e a exploração. Graças a este sistema, a estrutura de dominação escondia sua base económica, manifestando-se como estrutura ‘natural’ baseada na tradição. (Houtart, p. 211).
As vítimas desta estrutura de poder apontadas pelo nosso texto, ou seja, coxos e cegos, vêm sofrendo esta opressão explícita há séculos, desde que Davi os proibira de entrar no templo (2 Sm 5.6-8). E, pelo que o texto indica, estas vítimas não vivem essa opressão com resignação. No momento em que pedem ajuda de Jesus é porque buscam a libertação; é porque não estão conformadas com a situação em que vivem. Elas sabem que nesse filho de Davi podem encontrar uma saída e tomam a iniciativa indo ao seu encontro. Isto nos leva a crer que esta libertação buscada pelos empobrecidos tem a ver com fé. Não é apenas o desejo de uma satisfação material. Do contrário Jesus não diria: Vai, a tua fé te salvou. No âmago desta libertação está a fé cristã. É esta mesma fé, neste mesmo Cristo, que nos move em direção aos empobrecidos e famintos da nossa sociedade.
As curas de Jesus devem ser encaradas a partir do pano de fundo histórico da sociedade palestinense, onde religião e religiosos há muito perderam os trilhos do caminho de Deus com seu povo. Tornaram-se guias cegos e inverteram o propósito de Deus. No momento em que Jesus se identifica com estes marginalizados e age em favor deles, ele está ameaçando, mais uma vez, e com toda a profundidade, o que mantém viva a estrutura religiosa: a lei e o templo. Por isso chega o momento em que os ameaçados planejam o fim de Jesus (Mc 14.1-2; 3.6). A atitude de Jesus em relação ao templo é apresentada contra ele (Mt 26.61).
Jesus redefine a vontade de Deus. Nele aparece bem clara a parcialidade de Deus com seu povo. Aquele Deus que se revela no oposto para dar vida àqueles que não têm, fixando-se nestes aspectos onde a vida das pessoas é a negação da própria vida – onde ela é mais precária, mais ameaçada e mais inexistente. Jesus se entende como porta-voz e agente da vontade deste Deus do Reino. Por isso ele busca os sem vida em primeiro lugar: empobrecidos, coxos, cegos, mulheres…
V. 15-16: Entre as coisas que aceleravam a perda de um homem o rabino colocava o sono da manhã, o vinho do meio-dia, a permanência de gente vulgar nas sinagogas e a tagalerice das crianças (Morin, p. 60-61).
Crianças evocam fraqueza. Em Israel elas fazem parte do cinturão de marginalizados. E é justamente através destas, em oposição aos detentores do poder, que Jesus é aclamado como filho de Davi – o Messias da promessa. Estas crianças, seres frágeis que só aceleram a perda do homem, de repente ocupam o lugar central na história de Deus com as pessoas. Elas, junto aos coxos e cegos, formam a verdadeira comunidade messiânica (Brackemeier, Preleção, p. 10). Neste momento, escribas e sacerdotes são derrotados do poder. Como o anuncia o Salmo 8, o gaguejo destes pequeninos faz silenciar os inimigos de Deus (v. 2s).
Isto é assim porque Deus de fato escolhe as coisas loucas, as coisas fracas do mundo, para envergonhar as fortes (1 Co 1). Sacerdotes e escribas não suportam olhar para este Messias que se revela em meio ao que é escandaloso, ali onde tudo parece estar no fim. Este filho de Davi é uma afronta aos seus olhos. É duro ser derrubado do trono enquanto os humildes são elevados. Diante disto eles reagem indignados. Percebem a inversão de valores que está acontecendo: enquanto que são despedidos de mãos vazias, os que têm fome são fartados (cf. o Magnificat, em Lc 1.46-55).
v. 17: Depois de curto debate com os chefes do templo Jesus se retira, sai da cidade. Era costume seu não pernoitar na cidade santa (Lc 21.37). Isto demonstra algo. Por um lado, as pessoas que o acolhiam não moravam em Jerusa¬lém. Em Betânia, para onde se dirigiu, moravam Marta, Maria e Lázaro, Simão, o leproso… Outra alternativa que ele tinha no caso de não se hospedar na casa de amigos era acampar ao ar livre, como no Monte das Oliveiras (Lc 21.37; 22.39). Por outro lado, um motivo evidente da sua saída de Jerusalém é sua segurança pessoal, pois ele corria sérios riscos (Jo 11.54-56).
Ill – Pistas para reflexão
Como em tantas perícopes, também neste texto de Mateus 21.14-17, a Escritura revela o destaque que Deus reservou justamente aos miseráveis e desprezados, os que nada são. Eles são os preferidos de Jesus.
Na América Latina, no Brasil, vivemos em meio a uma multidão.destes preferidos de Jesus. Eles estão por todos os lados; encontramo-los no campo, na cidade. Nos paus-de-arara (caminhão que traz os migrantes com sua ‘mudança’ para a regjão amazônica), nas roças, nas fábricas, nas cozinhas, nas posses, nas favelas… É a partir da situação específica destes pequeninos que somos chamados a viver a nossa fé – se de fato ela busca ser fé cristã! Assim o expressam bem as palavras: Igreja na América Latina, efetivamente, não pode passar de largo dos pobres, e teologia autêntica se fará unicamente sob consideração do pano de fundo de pobreza e opressão que marcam o atual momento histórico. (Brakemeier, Pobres e…, p. 14).
Se de fato fazemos uma leitura do povo latinoamericano a partir do Cristo histórico, vemos já com toda a clareza que é tanto inegável como injusta, e por isso alheia à vontade de Deus, a situação de sofrimento, de miséria, de exploração deste nosso povo – os condenados da terra.
A realidade brasileira do campo em 1985 foi banhada em sangue. E continua assim. No fim de um ano de Nova República chegamos a um saldo de mais de 130 pessoas assassinadas em conflitos. O ano de 1986 inicia com o pacote económico que vem confirmar a dura sorte dos pequenos. Mais uma vez se repete a tragédia dos preços injustos pagos pelos produtos do lavrador e os salários de fome dos assalariados – e agora congelados! A sociedade em que vivemos mudou, mas não para melhor. A situação está clara. Nossas estruturas de poder continuam gerando, e em grande escala, a marginalização, a fome, o desemprego, a migração.
A pergunta para nós, cristãos deve ser: como vamos anunciar a graça de Deus numa sociedade alheia à sua vontade porque sustentada sobre as bases de uma estrutura injusta? Poderíamos acaso fazê-lo sem lutar contra estas estruturas de poder? É claro que não. Se assim não o for, este Jesus socialmente ainda não está conseguindo mexer conosco!
A nossa prática pastoral decorrente da leitura deste texto só pode levar-nos a buscar caminhos junto às classes exploradas e oprimidas, para que elevem os seus rostos, expressem a sua palavra e se organizem para buscar a sua dignidade e sua liberdade. E, se for este o nosso caminho, sem dúvida correremos riscos. Seremos perseguidos e blasfemados, por causa do seu nome.
Mas, a nossa prática muitas vezes tem sido até oposta a de Cristo. Deixamos corromper-nos pelo poder. Até costumamos queixar-nos amargamente de certas inconveniências na nossa função às quais tantas e tantas vezes somos forçados a nos sujeitar. E, o fato de ser difícil de se achar um caminho novo junto com o povo evidencia que estes sacrifícios são o preço necessário ao exercício do poder. Então, ao mesmo tempo damos uma de administrador dos bens da paróquia, chefes de construções, organizadores de festas, tesoureiros… vamos acumulando cargos sobre nós! E o sindicato continua manipulado pelos pelegos, os sem-terra vão aumentando e migrando para novas áreas ou vão reforçando o cinturão de miséria das grandes cidades. Às mulheres vão nascendo, vivendo e morrendo na condição de sombra do homem, escravas de duplas ou triplas jornadas de trabalho. E nós, como dignos sacerdotes e escribas abraçados aos poderosos – como igreja-templo – lamentamos a nossa falta de tempo, as agruras da nossa função que nenhum membro reconhece…
Seguir os passos de Cristo exige de nós uma caminhada concreta que, conduzida pela graça do Deus do Reino, aponte e busque a concretização do Reino de Deus. Os desafios nos cercam de todos os lados. Deixemos nos confrontar com o Cristo escandalosamente idêntico aos povos oprimidos e esmagados e com aqueles que lutam contra o sistema pecaminoso, assim concretizando discipulado (Schönborn, p. 150).
IV – Subsídios litúrgicos
1. Intróito: S112.5
2. Confissão de pecados: Ó, Deus! Cientes da tua misericórdia encorajamo-nos a chegar com humildade diante de ti para trazer-te nossos pecados. Ainda não conseguimos aceitar-te como o Deus dos fracos, dos esquecidos e marginalizados. Não gostamos de ouvir que nossa sociedade é injusta. Até que podemos ouvir, mas não nos comprometemos no caminho da paz e da justiça. Acreditamos demais no caminho proposto pelos poderosos. Não confiamos na força dos enfraquecidos. Estamos perdidos em nosso próprio egoísmo e ganância, levados pelo sistema capitalista que só destrói e mata. Ajuda-nos a optar por um caminho novo, o caminho proposto pelo teu Filho Jesus Cristo. Tem piedade de nós, Senhor!
3. Anúncio da graça: Is 65.17
4. Leituras bíblicas: Jr 7.1-15; Tg 1.19-27
5. Oração de coleta: Senhor, muito obrigado por nos podermos encontrar. Somos-te gratos pela vida que tu nos concedes; pelo fortalecimento na busca do teu reino; pela ajuda para clarear o caminho em nosso discipulado; pela comunhão que nos reforça e nos faz sentir esperançosos na busca do teu reino diariamente. Concede-nos a tua ajuda! Amém.
6. Assuntos para oração final: Agradecer: pela palavra que nos questiona, pela lembrança de nossa missão junto aos marginalizados na família, comunidade e sociedade; pedir para que sejamos fortalecidos para uma vivência concreta da vontade de Deus, para que as comunidades (igrejas) estejam voltadas para o serviço junto aos oprimidos e explorados (crianças, mulheres, índios, operários (as), trabalhadores (as) rurais…) e que não sirvam como respaldo ideológico aos interesses da classe dominante em nosso país; interceder: por todos que são esmagados e perseguidos por sua luta a favor da paz e da justiça, por grupos, comunidades, entidades que lutam por uma reforma agrária autêntica, por preços justos para os produtos agrícolas e por uma política agrícola que esteja voltada aos pequenos produtores, por salários justos e pelo fim da exploração da mão-de-obra barata tanto na roça como na cidade.
V – Bibliografia
– BRAKEMEIER, G. Pobres e pecadores na ótica de Jesus. Estudos Teológicos, São Leopoldo, 25(1):13-63, 1985.
– BRAKEMEIER, G. Preleção sobre Mateus 21-28, polígrafo, São Leopoldo, 1971.
– HOUTART, F. Religião e modos de produção pré-capitalistas. São Paulo, 1982.
– JEREMIAS, J. Jerusalém no tempo de Jesus. 1983.
– SCHOENBORN, U. A purificação do templo ou: o outro Jesus. In: ———. Fé entre história e experiência. São Leopoldo, 1982. p. 149-159.