Entre “o sim e o não”, somos filhos e filhas de Deus, aperfeiçoados e aperfeiçoadas na graça!
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 21.23-32
Leituras: Ezequiel 18.1-4,25-32 e Filipenses 2.1-13
Autoria: Luiz Temóteo Schwanz
Data Litúrgica: 17° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/09/2020
1. Introdução
Um dos textos de leitura para o 17º Domingo após Pentecostes é Ezequiel 18.1-4,25-32. Por meio do profeta, Deus transmite aos deportados a mensagem de que o exílio não aconteceu por causa das transgressões dos antepassados, mas por causa das próprias iniquidades do povo. Por isso o profeta conclama a que não se repita mais em Israel o conhecido provérbio: os pais comeram as uvas verdes e os dentes dos filhos se embotaram (v. 2b), para dizer que os que estão no exílio estão colhendo a injustiça dos pais. Nos versículos finais, o texto chama a uma conversão, à formação de um novo coração e espírito, pois Deus não tem prazer na morte de quem quer que seja e conclama: convertei-vos e vivereis!
O outro texto de leitura é Filipenses 2.1-13, dentro do qual está o famoso hino cristológico da carta. O hino trata da kenosis de Cristo, que se esvaziou a si mesmo, entregando a sua glória divina, a fim de viver uma vida humana em meio a sofrimento e morte de cruz. O pano de fundo do hino é baseado no esquema bíblico de humilhação, seguido pela exaltação, no qual a pessoa justa que sofre é recompensada por Deus (Sl 49.15-16; Mt 23.12). Ressalta-se no hino o tema da obediência: Jesus é o Filho obediente que sofre a morte, e morte de cruz, para proporcionar salvação!
O texto previsto para a prédica é o de Mateus 21.23-32, em que Jesus é questionado sobre autoridade do seu ensino. Jesus responde a seus interlocutores com uma outra pergunta, da qual faz depender a sua própria resposta. Como eles não respondem, para não cair em contradição, Jesus também não responde qual a origem da sua autoridade. Na sequência, Jesus lhes conta a parábola de dois filhos: o primeiro diz que vai trabalhar na vinha de seu pai e depois desiste, enquanto que o segundo diz que não vai e depois se arrepende e vai. Jesus compara o segundo filho a pessoas marginais da sociedade, que são mal vistas, mas acabam fazendo a vontade do pai. Esses, na opinião de Jesus, precedem sacerdotes e anciãos no reino de Deus.
O fio condutor que perpassa os três textos é a questão da obediência. Será que pais que comem uvas verdes (desobedecem), embotam (mancham) os dentes dos seus filhos? Não! Por isso Ezequiel conclama: jamais direis este provérbio em Israel. Filipenses 2 fala do Cristo que foi obediente a ponto de sofrer morte e morte de cruz. E o evangelho, texto da prédica, nos fala da parábola dos dois filhos, um desobediente e outro obediente.
2. Exegese
Mateus foi escrito por volta de 80/90 d.C. num contexto judaico-cristão, razão das muitas alusões ao Antigo Testamento nesse evangelho. Sua autoria é atribuída ao discípulo Mateus, o cobrador de impostos. Diferentemente dos outros evangelhos, Mateus costuma usar a expressão basileia tōn ouranōn (reino dos Céus) em vez de basileia tou Theou (reino de Deus), como em Marcos. Curiosamente, nessa perícope, no v. 31, usa-se a expressão reino de Deus.
O texto em questão se encontra após a entrada de Jesus em Jerusalém, a purificação do templo, algumas curas realizadas, o episódio da figueira estéril, e antes da parábola dos lavradores maus. Em verdade, parte da perícope (Mt 21.23-27) é matéria sinótica, enquanto 21.28-32 é matéria exclusiva de Mateus.
Mateus informa, no final do sermão do monte, que Jesus ensinava como quem tem autoridade e não como os escribas (Mt 7.29). Ao ensinar no templo, os principais sacerdotes e os anciãos do povo o questionam sobre sua autoridade (exousia): com que autoridade fazes essas coisas? – referindo-se aos atos insólitos que Jesus acaba de praticar: a entrada messiânica em Jerusalém, a expulsão dos cambistas e as curas milagrosas no templo. As autoridades religiosas da época querem pegar Jesus em contradição (assim como, mais tarde, os saduceus com respeito à ressurreição – Mt 22.23-33).
Jesus lhes coloca uma contrapergunta: de onde procede o batismo de João: dos céus ou dos humanos? Eles, caindo em si, notaram que se dissessem “dos céus”, Jesus lhes perguntaria por que não creram nele; se dissessem “dos humanos”, eles seriam questionados pelo povo, pois todos consideravam João como profeta. Como os sacerdotes e anciãos não chegam a nenhuma resposta, tampouco Jesus lhes revela com que autoridade realiza seus feitos.
Na sequência, Jesus conta a parábola dos dois filhos, que é matéria exclusiva de Mateus. Essa parábola, no versículo 32, faz uma aplicação surpreendente a João Batista: ele vivenciou o que o pai da parábola experimentou, ou seja, a rejeição dos que assumiram para si o serviço da seara, mas efetivamente vivem distantes de Deus. Afirmação com teor semelhante se encontra também em Lucas 7.29-30, em contexto diferente. Por isso se pode supor que Mateus a tenha introduzido nessa parábola para conectá-la com o trecho anterior. Ou a referência a João Batista já constava na parábola, razão pela qual o evangelista a inseriu após a discussão sobre a autoridade de Jesus. A parábola original poderia ter concluído com o v. 31. J. Jeremias afirma que seu sentido original visava justificar a boa nova do evangelho a pessoas desprezadas (no caso, publicanos e pecadores). A referência a João Batista confere a ela uma aplicação histórico-salvífica que lhe era estranha (JEREMIAS, 1976, p. 83-84). Para publicanos e meretrizes, a promessa do evangelho que justifica por graça e fé já se cumpriu. Os que dizem não e vão precedem no Reino àqueles que dizem sim e não vão. Estes não estão excluídos da ação salvífica, mas necessitam de metanoia, ou seja, mudança de mentalidade e de rumo.
3. Meditação
Se no início do texto Jesus é questionado com respeito à sua autoridade, ao longo do texto a situação se inverte e Jesus passa para a ofensiva, encurralando os sacerdotes e anciãos do povo em suas contradições. Do mesmo modo, nós também somos questionados em nosso labor teológico e em nosso dia a dia sobre nossas posturas políticas, teológicas ou filosóficas. Algumas vezes nos portamos como o primeiro filho da parábola, que aparentemente atende o apelo do pai para ir trabalhar na vinha, mas depois não vai. Essa falta de obediência pode expressar-se, por exemplo, na ausência de voz profética que anuncia a justiça e denuncia as injustiças deste mundo, como o faziam os profetas veterotestamentários.
Outras vezes podemos estar entre aqueles que não querem enfrentar muitas situações, mas no fim acabam cedendo e vão trabalhar, empenhando-se na seara do Senhor, onde, segundo Jesus, há poucos trabalhadores efetivamente dispostos a ampliar seu ministério.
A parábola nos fala de pessoas que não querem ir, mas depois vão, e de pessoas que respondem positivamente, mas depois não vão. São duas respostas diferentes para a mesma tarefa. Nesse sentido, a parábola nos traz uma grande lição e nos ajuda a discernir entre palavra e ação. Temos que aprender a olhar para além das palavras e promessas, não só no sentido negativo (a pessoa não faz o bem que diz fazer), mas também no positivo (a pessoa faz o bem, mesmo dizendo que não). Foi com base nessa parábola, por exemplo, que o pastor Oskar Pfister via em Sigmund Freud um “filho” que disse “não”, por se considerar uma pessoa agnóstica, mas que fez a vontade do Pai ao criar instrumentos para libertar as pessoas de seus grilhões da patologia mental. Nessa perspectiva, podemos refletir também sobre muitas pessoas do meio secular que desenvolvem saberes, ações, conhecimentos que servem para a cura de alguém e estão cumprindo a vontade do “Pai”, mesmo que “de boca” não confessem a fé ou alguma crença. Jesus mesmo disse que não é quem diz Senhor, Senhor que entrará no reino dos céus, mas quem faz a vontade do Pai (Mt 7.21). Assim, o texto nos ajuda a abrir os olhos para a verdade de Deus que vai além dos muros da igreja. Deste modo, não precisamos nos preocupar com as filhas e os filhos que dizem sim ou não. Não precisamos nem podemos separar o trigo do joio, já que essa é tarefa exclusiva do Pai.
Jesus relaciona os principais sacerdotes e os anciãos do povo com o filho que diz “sim” para o Reino, mas na verdade vivem de legalismos, regras e medo do povo. Já os cobradores de impostos e as prostitutas, pessoas desprezadas e à margem da sociedade da época, aceitaram e creram no batismo de João Batista. Logo, as pessoas humilhadas creram e por isso Jesus afirma que essas precedem àquelas autoridades no reino de Deus.
Seguidamente os evangelhos nos mostram que os grupos menosprezados, como os “publicanos e pecadores” (Mc 2.16; Mt 11.19; Lc 15.1), os “publicanos e prostitutas” (Mt 21.32) , os “pecadores” (Lc 7.37;39) são alvos da boa nova de Jesus. Esses termos e designações provavelmente foram cunhados pelos adversários de Jesus, a saber, intérpretes da lei, anciãos do povo, fariseus, saduceus e outros grupos religiosos e políticos. O termo “pecador” significava, no tempo de Jesus, não apenas as pessoas que desprezavam notoriamente os mandamentos de Deus, e por isso eram marcados pela opinião pública, mas também pessoas que exerciam profissões desprezadas. Segundo a opinião popular, seriam profissões que levariam à imoralidade e à desonestidade. Dentro dessa segunda categoria estavam, entre outros, os jogadores de dados, os usuários desses jogos, os coletores de impostos, os publicanos e os pastores de ovelhas (desses se suspeitava que conduziam seus rebanhos para pastagem alheia ou surrupiavam os produtos do rebanho, cf. JEREMIAS, 2011, p. 177).
Levemos em conta que quando os evangelhos falam de “pecadores”, referem-se a pessoas que levavam uma vida de má fama, bem como aos que se dedicavam a uma vida laboral desprezada. Isso fica evidente quando se fala de meretrizes e publicanos (Mt 21.32), ladrões, falsários, adúlteros e publicanos (Lc 18.11). Importante notar que o Salvador veio justamente para que essas pessoas pudessem ter uma metanoia, uma mudança de mentalidade. Não só esses, publicanos e meretrizes, mas também os que já se achavam garantidos no reino dos Céus, como os principais sacerdotes e anciãos do povo, foram chamados ao arrependimento e à conversão.
O texto nos instiga a refletir sobre a nossa palavra dita e a nossa ação, que devem ser coerentes, mesmo que às vezes façamos ao contrário. Muitas vezes o nosso querer é um, mas devido às circunstâncias, o nosso agir difere. Somos pessoas pecadoras e não conseguimos agir plenamente conforme a vontade de Deus. Graças ao agir libertador e gracioso de Deus, somos aperfeiçoados diariamente, o que constitui o processo de santificação. Às vezes estamos na condição do primeiro filho: dizemos sim, e não vamos! Outras vezes também dizemos que não vamos e acabamos indo, abraçando a causa do reinado de Deus! Isso nos revela a nossa condição de pessoas simultaneamente justas e pecadoras. Por isso o arrependimento diário é necessário. O velho ser humano em nós (‘adam) é esse filho que diz que vai, mas desiste, porque está corrompido pelo afastamento de Deus (pecado). Outras vezes estamos desanimados e dizemos que não vamos, mas acabamos indo, o que é um sinal de que Deus não desiste de nós. Assim, como pessoas justas e pecadoras, entre o sim e o não, somos santificados e aperfeiçoados na graça, mesmo sendo imperfeitos.
4. Imagens para a prédica
Como os três textos fazem menção à obediência, sugiro iniciar a prédica contando uma história sobre um menino obediente.
Havia, certa vez, no interior do Japão, um casal que morava na roça e fabricava sandálias de palha. Eles tinham um filho de 12 anos. O garoto era muito obediente. Um dia, a mãe pegou três palhas, deu a ele e disse: “Filho, vá à cidade e compre, com essas palhas, três peças de seda”. O menino obedeceu na hora. Pegou as três palhas e saiu. No caminho, foi visto por uma mulher que lavava cebolas em um riacho. Ela pediu ao menino para lhe dar aquelas três palhas para amarrar as cebolas. “Dar eu não posso”, disse o garoto, “porque essas palhas valem três peças de seda”. A mulher lhe deu então três cebolas em troca das palhas, e o menino continuou a viagem. Mais adiante, passando diante de uma hospedaria, o dono viu o garoto com as cebolas e pediu a ele que as cedesse, para ele fazer um molho, pois chegaram hóspedes e ele não tinha as cebolas. “Ceder, não”, disse o menino, “pois estas cebolas valem três peças de seda”. O homem então lhe deu, pelas cebolas, um vidro de molho. E o menino continuou a viagem. Um pouco à frente, um fabricante de espadas viu o garoto passando com o vidro de molho. Correu ao seu encontro e lhe pediu aquele molho. Ele acabara de receber visitas e não sabia onde encontrar tempero para servi-los. “Dar eu não posso”, disse o menino, “pois esse molho vale três peças de seda”. O homem trocou então o molho por uma espada. O garoto colocou a espada na cintura e continuou o seu caminho. Já estava bem perto da cidade, quando escutou um barulho. Era a princesa que passava com sua comitiva. Quando a princesa viu o menino com a espada, pediu ao cocheiro que parasse a carruagem. Ela desceu, aproximou-se do garoto e lhe disse que não era permitido uma criança usar espada, e que ele devia entregar aquela espada. “Entregar, não”, respondeu o menino, “esta espada vale três peças de seda”. A princesa quis saber o porquê, e ele contou a história. Ela o levou até o palácio e lhe deu as três peças de seda. A criança voltou para casa e entregou a seda para a sua mãe. O caminho da obediência sempre é o melhor, mesmo que no começo nos pareça impossível (Pe. Antônio Queiroz).
Além do tema da obediência, podemos relacionar um elemento central do texto, metanoia (mudança de mentalidade) com o tema do batismo e conversão diária, quem sabe, ler ou projetar o Catecismo Menor acerca do batismo. E abordar o nosso compromisso como pessoas batizadas. Lembrar que, em diferentes momentos da vida, podemos estar na condição do filho que diz “sim” e “não” vai. E em outro momento podemos estar na condição do filho que diz que “não vai” e depois vai para a vinha. Salientar nossa simultaneidade de pessoas justas e pecadoras que são aperfeiçoadas diariamente na graça por meio da fé em Cristo Jesus.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos
LCI 29 – Senhor, Tu nos chamaste
LCI 51 – Cristo acolhe o pecador
LCI 503 – Quem só em Deus o Pai confia
São hinos que, no decorrer do culto, auxiliam na reflexão.
Oração
Em algum momento poderia ser usado e adaptado o seguinte texto como oração: “O Reino de Deus é chegado! É tempo da vida mudar! Apostai tudo aquilo que tendes nesta nova e importante notícia! O Reino de Deus é chegado! …Sacudindo a poeira dos móveis… remexendo os porões encardidos… espalhando a verdade esquecida… Construindo os sonhos perdidos… O Reino de Deus é chegado! …restaurando as vidas feridas… envolvendo as pessoas sozinhas… apoiando os tristes, cansados… instaurando um tempo melhor!” (PEREIRA; CARDOSO,
1993, p. 31)
Versículo de aclamação do evangelho
Ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para a glória de Deus Pai (Fp 2.10-11).
Bênção
Que a paz dada por Jesus Cristo te renove no caminhar diário. Que a paz, como dom do Espírito Santo, te fortaleça para proclamar que em Deus há um mundo de paz. Deus te bendiga (Livro de Culto, p. 325/bênção 3).
Bibliografia
JEREMIAS, Joaquim. As parábolas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1976.
JEREMIAS, Joaquim. Teologia do Novo Testamento. Nova Edição Revista e Atualizada. São Paulo: Hagnos, 2011.
PEREIRA, Nancy; CARDOSO, Ernesto. Novos gestos, novos olhares. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião, 1993.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).