Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 21.33-46
Leituras: Isaías 5.1-7 e Filipenses 3.4b-14
Autor: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/10/2014
1. Introdução: Um convite para plantar e combater a violência
Em Isaías 5.1, uma pessoa canta o amor do agricultor pela vinha. Traduzindo literalmente: “Eu cantarei agora, para meu amado, sobre sua vinha, vinha que era dele, do meu amado, em uma colina muito fértil”. É claro que todos os intérpretes, pensando no profeta Isaías, imaginaram que o cantor fosse masculino, mas por que não considerar que se trata de uma cantora falando da vinha de seu amado? O texto de prédica para este domingo também fala de um homem que plantou e protegeu a vinha com uma torre. Não se fala de seu amor pela vinha, mas esse sentimento pode ser percebido no zelo que teve por ela. Ainda mais, ao enviar o próprio filho, após a violência praticada contra seus emissários anteriores, revela ainda mais o seu amor.
O lecionário bíblico dominical convida-nos a ler primeiramente Isaías 5.1-7 (O Cântico da Vinha) e depois Mateus 21.33-46 (uma parábola carregada de violência) possivelmente para que observemos a motivação amorosa de Deus como antítese das relações violentas. O texto da Carta aos Filipenses (3.4b-14) exala desprendimento, doação. Cristo entrega-se em favor de Paulo (como símbolo de todas as pessoas pecadoras que buscam justificação), Paulo entrega-se a Cristo (como resposta amorosa à doação divina em Cristo Jesus), tudo dentro de uma profunda relação de amor. Assim, convido todas e todos a ler esses textos num exercício exegético e hermenêutico de amor, superando as relações violentas dentro e fora de nós para a transformação de nossa realidade.
2. Exegese
O Evangelho de Mateus reflete a destruição do templo de Jerusalém em 70 d.C. A denúncia da política genocida é bem forte em alguns textos, como o massacre das crianças em Belém (Mt 2), as advertências contra “os que matam o corpo” (Mt 21) e outros. Carlos Mesters, citando Jacques Dupont (Por que parábolas? O método parabólico de Jesus), lembra que “as parábolas não são uma narrativa neutra (…) aquele que apresenta a parábola não quer apenas comunicar uma informação aos seus ouvintes (…) quer fazer que tomem partido” (MESTERS, 1990, p. 43; apud Gilberto Gorgulho e Ana Flora Anderson – Parábolas: palavra que liberta. São Paulo, 1989).
2.1 – O contexto socioliterário de Mateus 21.33-46
O bloco onde se encontra o texto de prédica deste domingo inicia claramente com a entrada “triunfal” de Jesus em Jerusalém (21.1-11). Os capítulos 21 e 22 têm um claro paralelo com Marcos 11-12 (LOHSE, 1985, p. 147), mesmo que, como indica Gallazi, em Mateus “Jerusalém é (…) aquela ‘cidade’ que será castigada mais que Sodoma e Gomorra por não ouvir a palavra (10.14s)”, sendo que “a primeira e a segunda Jerusalém não deixam de ser iguais e merecem a mesma sorte: destruição” (GALLAZI, 1990, p. 37). Essa parábola faz parte de um conjunto de três: parábola dos dois filhos (21.28-32), parábola dos vinhateiros maus (21.33-46) e parábola das bodas do rei (21.1-14).
O conjunto é introduzido por uma pergunta sobre a autoridade com que Jesus agia e falava, ocasião em que “os sacerdotes e anciãos do povo” (v. 22; Bíblia Sagrada Vozes) se negam a reconhecer tanto a ação profética de Jesus como a de João Batista (21.23-27). Depois há mais quatro perguntas: sobre o imposto (22.15-22), sobre a ressurreição (22.23-33), sobre o maior mandamento (22.34-40) e sobre a filiação davídica (22.41-46), encerrando assim o bloco (TRILLING, 1984, p. 10).
Dessa distribuição podemos inferir que: a) o conjunto de parábolas quer didaticamente responder ao “não sabemos” das autoridades de Jerusalém (21.27a) e à negativa da resposta de Jesus (“também não vos digo com que autoridade eu faço essas coisas”; 21.27b); b) as autoridades são representadas pelo filho ciumento e egoísta (da primeira parábola), pelos agricultores maus ou homicidas (da segunda parábola) e finalmente pelos convidados que se recusam a participar do banquete do rei, repetindo a denúncia de que “apoderando-se dos servos, os ultrajaram e mataram” (22.6, ALMEIDA)
2.2 – A apresentação da parábola como texto
A compreensão da parábola presente em Mateus 21.33-46 como texto exige, em primeiro lugar, sua comparação com seu paralelo em Marcos 12.1-12. Enquanto em Marcos os discípulos aprendem passivamente, sem falar, aqui eles têm voz e respondem a perguntas. A expressão “ouvi” (akousate), ausente na versão de Marcos, remete para a palavra dos oráculos proféticos (akousate logon Kyrion, cf. Septuaginta). Quem planta a vinha, segundo a versão de Mateus, é o oikodespotes, isto é, o “dono da casa”, enquanto em Marcos fala apenas de “um homem que plantou uma vinha”. Enquanto Marcos disse que seria “o tempo certo” (kairós), Mateus disse ser “o tempo dos frutos” (21.34) e depois esclarece que os frutos pertencem ao dono da casa, denunciando assim a apropriação injusta. Tanto Marcos como Mateus descrevem diversos tipos de agressão, tortura e finalmente a chacina de “muitos outros” (Mc 12.3-5 e Mt 21.35-36). No entanto, ao apresentar o Filho, Marcos diz que “ainda tinha o Filho Amado” (huion agapeton), e Mateus, com ênfase escatológica, coloca “por fim” ou “finalmente” (hysteron) e envia “o Filho dele”. Nesse sentido, indica o “fim” de uma era (eon) e de uma “autoridade” para sinalizar o início de outro tempo, em que a autoridade volta a seu legítimo “dono” através do “Filho” (cf. Mc 12.6 e Mt 21.37). Em Marcos, os usurpadores dizem: “A herança será nossa” (12.7); em Mateus, afirmam “para que tenhamos a herança dele” (21.38).
No final, enquanto em Marcos se deixa a pergunta em aberto: “O que fará, pois, o senhor (kyrios) da vinha, virá e destruirá os lavradores e dará a vinha a outros?” (Mc 12.9), em Mateus, além dessa pergunta, aparece a resposta dos discípulos que clamam por justiça: “os malvados (kakous) horrivelmente destruirão (até aqui idem Marcos, mas como afirmação) e arrendarão a vinha a outros lavradores, os quais entregarão os frutos dela no tempo certo (kairós)”. Aparece aqui o compromisso da fidelidade profética da comunidade de Mateus com o projeto do Reino.
Ambos os textos apresentam (Mc 12.10b-11 e Mt 21.42b) a citação da Escritura (Mc 12.10-11 e Mt 21.42), retirada do Salmo 118.22 em sua primeira parte. No entanto, chama a atenção a ênfase sobre o “olhar” na expressão final: “digna de admiração aos nossos olhos” (42c, Vozes) ou “maravilhoso aos nossos olhos” (Almeida). Seria essa uma menção ao incêndio de Roma, possivelmente testemunhado por integrantes da comunidade de Marcos (64 d.C.), e à destruição do Templo de Jerusalém (70 d.C.), testemunhado por integrantes da comunidade de Mateus? Nos versículos 43-44, há uma advertência profética. Para a comunidade de Mateus, o evangelho (e o Reino) não poderia ser propriedade nem privilégio de nenhum povo. O versículo 44 parece ser a consolidação de diversos textos, entre eles Daniel 2.34a (cf. Jr 1.10; Is 8.14-15 e 28.16), onde a comunidade de Mateus retoma o epíteto “profeta” para Jesus no final do texto: “porquanto o tinham por profeta” (outra expressão exclusiva em 46b).
3. Meditação: a profecia como expressão do amor contra a violência
O texto da parábola é claramente profético. No entanto, é difícil que fale de amor quando sua ênfase parece ser um sentimento de vingança. Certamente a parábola “dos violentos e assassinos usurpadores da vinha” (título que eu daria) está carregada de dor e de horror, que se depreendem do contexto de uma revolta violenta contra o império romano e consequente massacre.
Aqui vamos nos valer do Cântico da Vinha, de Isaías (5.1-7), como chave hermenêutica para essa parábola. Se olharmos a vinha como um ato de amor, vemos, por dentro do oikodespotes de Mateus, o ser amoroso que plantou a vinha para o bem de todas as pessoas. Inclusive para o bem daqueles que assumem atitudes de usurpadores, violentos e assassinos. A gênese da violência e do assassínio das pessoas que buscam seguir a vontade divina está em apenas ver a fé, o povo, os dons de Deus, como propriedade particular e olhar para o vinhateiro amoroso (Deus) como um proprietário. A perspectiva “proprietarista” é explicitada na frase “para que tenhamos a herança dele” (21.38). Essa perspectiva afastou–os completamente de qualquer olhar amoroso e fê-los mergulhar numa espiral de violência, gerando vítimas e mortes, como muito bem descrevem as mulheres que estudam a violência de gênero.
Então, saindo do ambiente da parábola, Jesus volta à vida real quando pergunta aos discípulos e discípulas e por extensão a todas e todos nós: “Quando, pois, vier o senhor da vinha, que fará àqueles lavradores?” (Mt 21.40). A resposta vingativa no tempo futuro: “dará horrível morte”; na verdade, refere-se ao tempo passado, isto é, à própria destruição de Jerusalém.
Sendo assim, essa resposta reforça as palavras de Jesus quando um dos discípulos (segundo Mateus) corta a orelha do servo no Jardim de Getsêmani: “Embainha a tua espada; porque todos os que lançarem mão da espada à espada morrerão” (Mt 26.52). Como diz o ditado popular: “A violência gera violência”. Ou como diz o escritor Eduardo Galeano: “Também gera ganâncias para a indústria da violência, que a vende como espetáculo e a torna objeto de consumo”.
Jesus não diz que será feito assim. O evangelho interpõe aqui a fórmula da pedra rejeitada pelos construtores. Essa pedra, o próprio Jesus Cristo, promove uma construção de amor, de generosa doação, de justiça, de paz, como anunciado pelo profeta Isaías no Canto da Vinha. A queda de Jerusalém em 70 d.C. passa a ser interpretada como o fim de um tipo de construção de violência e morte e o começo de uma nova vida de amor. Somos testemunhas de quantas destruições? O que dizer das bombas atômicas, da guerra química, da exploração desenfreada da vida natural, da fome e das epidemias que dizimam especialmente as populações mais pobres e vulneráveis? Mesmo hoje, diante da violência urbana, o que dizemos?
Será que diante disso podemos afirmar que a pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra fundamental? Será que podemos proclamar que devemos viver nossas relações com o mesmo amor e cuidado mostrados pelo que plantou a vinha da fé e da vida?
4. Imagens para a prédica
A imagem geral, como mostram tanto a exegese como a mensagem, é uma vinha. Mas, por se tratar de uma parábola, a vinha deve ser comparada ao mundo em que vivemos. Então, junto com a vinha, podemos colocar o mundo, sua beleza, a beleza das relações que ele promove entre as criaturas, como se renova e os belos frutos que dá. Por outro lado, podemos colocar as imagens da violência neste mundo, as pessoas que foram mortas, torturadas, por lembrar o sentido vital da vinha/mundo, a dor da natureza e nossa dor, que emergem do falso sentimento de proprietarismo com imagens como indústrias que desrespeitam o meio ambiente, o lixo das grandes cidades sem a devida reciclagem etc.
Além disso, mostrar a pedra angular. Aquela que sustenta o prédio, aquela que Deus colocou no começo da criação de sua vinha/mundo, mas que depois foi rejeitada por todos os poderosos, até por aqueles que diziam obedecer-lhe desde os tempos de Israel até a construção da fé cristã em suas diferentes formas e tradições.
Um terceiro grupo de imagens poderiam ser pessoas plantando de forma sustentável, construindo ecologicamente, reciclando, sendo generosas e solidárias, até nas promoções e ações solidárias das igrejas, como sinais da presença viva de Jesus Cristo.
5. Subsídios litúrgicos
Há diversos textos bíblicos em que Jesus usa a imagem da vinha/videira. Por isso sugerimos usar essas imagens durante toda a celebração.
Espaço litúrgico:
a – Colocar uvas e galhos de vinhas ou parreiras para enfeitar o ambiente litúrgico.
b – Se houver Ceia, colocar uvas ao lado do suco que será usado, e pode-se colocar espigas ao lado do pão.
c – Pode-se, no final da celebração, oferecer uvas para um momento de convívio comunitário, lembrando, através de alguma mensagem, que devemos cuidar da vinha do Senhor.
Invocação trinitária:
a – Podemos criar uma fórmula participativa de invocação como esta:
Celebrante: Deus que plantou a vinha da fé e da vida,
Congregação: Nosso Pai e Mãe;
Celebrante: Deus que veio resgatar a vinha e ser base de um novo plantio de paz.
Congregação: Jesus Cristo, nosso irmão e Senhor;
Celebrante: Deus, que como o vento e a chuva dá força a toda vinha e às pessoas que cuidam dela e a cultivam com amor;
Congregação: Espírito Santo/Ruah/Ventania Divina;
Celebrante: Santa Trindade, um só Deus;
Congregação: Permanece em nós, conosco e transforma o mundo por tua graça!
b – Na confissão de pecados, que pode ser feita em silêncio, mostrar as imagens de morte, violência e destruição e depois de cada uma dizer: “Senhor, tem misericórdia de nós, permite que vivamos solidariamente e amorosamente por tua graça”.
c – No ofertório, levar as imagens de vida e construção de um mundo novo e, ao ofertar, dizer: “Recebe nossa vida e o produto de nosso trabalho e permite que tudo seja colocado a serviço de teu reinado de paz, justiça e vida”.
d – A bênção final também pode conter essas imagens, como: “A bênção de Deus Pai e Mãe, que plantou e cuidou, chamou-vos a viver em paz em sua vinha; a bênção de Deus Filho, que se fez como a gente para nos ajudar a partilhar generosamente seus frutos; a bênção de Deus Espírito Santo, que sopra na vinha, anima-nos e nos fortalece, seja com todas e todos vós, agora e sempre. Amém.
Bibliografia
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus: o caminho da justiça. São Paulo: Paulinas, 1990.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).