Relação entre igreja e política
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 22.15-22
Leituras: Isaías 45.1-7 e 1 Tessalonicenses 1.1-10
Autoria: Emilio Voigt
Data Litúrgica: 21° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/10/2023
1. Introdução
A afinidade temática entre o texto de pregação e os textos de leitura não parece evidente. Aliás, é difícil encontrar elementos de correlação, além da menção a figuras políticas importantes em Mateus e Isaías. Mesmo assim, essas figuras desempenhavam papéis discrepantes. Enquanto Ciro é visto favoravelmente como um instrumento da ação de Deus, a menção a César não tem conotação positiva. Talvez uma relação entre os três textos poderia ser feita a partir da questão do “poder” e do “servir”. Tanto Ciro quanto César eram poderosos detentores de poder, que subjugaram muitos povos e os colocaram a seu serviço. O texto de 1 Tessalonicenses fala do poder do Espírito Santo, que permitiu a propagação do Evangelho e a conversão para servir ao Deus vivo e verdadeiro. Por mais poderosos que fossem Ciro e César, seu poder era inferior ao poder divino. Em todo caso, o texto de pregação é muito apropriado para tratar da relação entre igreja e política. Esse importante tema é, por vezes, negligenciado ou erroneamente debatido.
2. Exegese
V. 15-16: Fariseus e herodianos são apresentados como grupos antagônicos ao movimento de Jesus, porém eles não tinham a mesma forma de pensar e agir. Aliás, os grupos também não eram internamente homogêneos. De maneira geral, o grupo dos fariseus era constituído por pessoas leigas e de pequenas posses. Os herodianos, por outro lado, pertenciam à aristocracia, adepta de Herodes Antipas, governante da Galileia. No plano político, fariseus não colaboravam com os ocupantes romanos, mas não faziam oposição direta. Apesar de defender a dinastia herodiana, o grupo dos herodianos se mantinha alinhado ao regime romano. A presença de herodianos na Judeia é explicável pelo fato de Herodes Antipas vir da Galileia para Jerusalém por ocasião da festa da Páscoa (Lc 23.7).
V. 17: Por que a pergunta sobre o imposto é importante? Desde 63 a. C. a terra de Israel estava ocupada militarmente pelo Império Romano e submetida à província romana da Síria. Os imperadores romanos permitiam que a administração dos territórios ocupados fosse conduzida por reis vassalares. Herodes, o Grande, governava a terra de Israel quando Jesus nasceu (Mt 2.1). Após a sua morte, seu reino foi dividido entre três filhos: Arquelau ficou com as regiões da Judeia, Idumeia e Samaria; Herodes Antipas ficou com a Galileia e a Pereia; Filipe recebeu a Transjordânia do Norte.
Arquelau ganhou a parte mais importante no que se refere à arrecadação de impostos. Ali na Judeia se arrecadava o dobro do que recebiam Antipas e Filipe juntos. Arquelau, porém, agiu com tanta tirania, que foi destituído do cargo e sua área de domínio foi dada a procuradores romanos. Os procuradores estavam subordinados ao legado sírio, mas eram a suprema autoridade militar e jurídica, com poder de decidir sobre a vida e a morte. A administração normal do dia a dia ficava a cargo de autoridades judaicas locais e seguia as leis judaicas. Delitos políticos, entretanto, estavam sob a jurisdição dos procuradores.
No embalo da reestruturação na Judeia, foi ordenada a realização de um censo e estabelecido o imposto de César. Esse era um imposto per capita, ou seja, o censo tinha a finalidade de contar as pessoas para saber quanto imposto seria arrecadado. As duas figuras mais conhecidas da resistência ao censo e ao imposto foram Judas Galileu e o fariseu Sadduk, citados pelo historiador judeu Flávio Josefo. Judas Galileu é também mencionado em Atos 5.37. Jesus atuava sobretudo na Galileia de Herodes Antipas, e foi na Judeia, governada por um procurador romano, que ele se viu confrontado com a questão do imposto a César.
A base da economia da época era a agricultura familiar. As propriedades eram pequenas e, com o desenvolvimento tecnológico disponível, as famílias conseguiam seu sustento somente com muito esforço, vivendo no patamar mínimo de subsistência. A alta carga de impostos pesava sobre as famílias. Estima-se que 30% da produção era destinada ao pagamento de diferentes taxas e tributos. Algumas correntes na pesquisa sugerem até 40% de tributação. Além de representar um fardo econômico sufocante, o recolhimento de impostos tinha um peso político. Para as províncias romanas, a cobrança de impostos era sinal de dependência e servilismo.
V. 18: Qual é a maldade na pergunta? A pergunta é legítima e importante, porém Jesus percebe que há intenção de colocá-lo em uma situação embaraçosa. A questão, colocada em público, é formulada de tal maneira que exige “sim” ou “não” como resposta. Se Jesus respondesse com um “não”, teria a simpatia e o apoio das pessoas que se opunham ao imposto. Com tal resposta, todavia, seria considerado agitador político, um inimigo de Roma. Se respondesse com um “sim”, não teria problemas com o Império Romano, mas perderia apoio popular. De qualquer forma, uma pergunta-armadilha coloca a pessoa diante de um beco sem saída. O que Jesus poderia responder nesse momento?
Convém lembrar que também Jesus formulou uma questão-armadilha. Aos principais sacerdotes, escribas e anciãos, ele perguntou em certa ocasião: “O batismo de João era do céu ou dos homens?”. O embaraço causado é descrito pelo evangelista Marcos: E eles discutiam entre si: – Se dissermos: “Do céu”, ele dirá: “Então por que não acreditaram nele?” Se, porém, dissermos: “Dos homens”, é de temer o povo. Porque todos pensavam que João era realmente um profeta. Então responderam a Jesus: – Não sabemos (Marcos 11.31-33). Assim como seus opositores, Jesus poderia buscar uma terceira via em sua resposta, mas isso certamente lhe traria descrédito. Poderia ser acusado de não querer ou não saber se pronunciar sobre um assunto de grande importância.
V. 19-20: “De quem é esta figura e esta inscrição?”. Jesus inicia sua resposta com um pedido: mostrem-me a moeda do imposto, e eles lhe mostraram um denário. Denário era uma moeda romana que correspondia ao salário de um dia (Mt 20.1-16). Jesus pergunta então de quem é a imagem e a inscrição cunhadas na moeda. A imagem e a inscrição na moeda eram símbolos da ideologia imperial romana. Neste sentido, a provocação para ver a moeda não foi mero acaso. Com essa ação inicial, Jesus tem os elementos necessários para dar uma resposta adequada.
V. 19-21: O que significa “dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”? O denário apresentado tem a imagem e a inscrição de César. É possível que fosse uma moeda cunhada por Tibério César, que governou o Império Romano entre os anos de 14-37 d. C. Além da imagem do imperador, o denário de Tibério trazia a inscrição: “Tibério César Augusto, filho do deificado [divino] Augusto”. Contra as expectativas de quem o inquiriu, Jesus respondeu de tal maneira que não permaneceu no beco sem saída. E fez isso respondendo nem positiva, nem negativamente, nem no sentido de uma “terceira via”. A palavra dai a César mantém a ligação com a pergunta é permitido pagar imposto a César?, mas omite a palavra “imposto” e traz à discussão um elemento que não estava na conversa: E aquilo que é de Deus, a Deus!
Como compreender a resposta de Jesus? Há basicamente duas linhas de interpretação, cada qual com suas variantes. Uma das linhas interpretativas declara que Jesus teria confirmado o pagamento de impostos. A outra, afirma estritamente o contrário. Quem defende a primeira interpretação tem Eclesiastes 8.2s a seu favor e pode argumentar que a obediência a Deus e a César são conciliáveis. Somente quando os mandatos e as ações de César forem incompatíveis com a lei de Deus, poderia ser negada a obediência. A segunda linha de interpretação, entretanto, parece ser a mais adequada por vários motivos, dentre os quais destacam-se:
– Jesus traz um elemento para discussão que não estava na pergunta sobre a legitimidade do imposto: “dar a Deus o que é de Deus”. E o que é de Deus? Entre as coisas que pertencem a Deus, duas questões eram fundamentais na época: a terra e a nação Israel. A presença de um poder político estrangeiro contrariava a concepção da terra de Israel como propriedade divina (Lv 25.23). A instalação de tropas romanas, a difusão da cultura helenista e a exigência de tributos de Roma eram antagônicas ao domínio de Deus.
– A menção à imagem de César precisa ser vista em relação ao segundo mandamento (Êx 20.4). A imagem é a palavra-chave do segundo mandamento, que, por sua vez, está em ligação direta com Gênesis 1.27. A imagem de César cria obrigação para com César, que mandou cunhar nela a sua imagem. Mas o povo de Israel, criado à imagem de Deus, deve obrigação ao seu criador.
– Uma vez que os denários trazem a inscrição e a imagem do imperador, a resposta de Jesus poderia indicar a devolução de todos os denários no sentido de uma negação geral das moedas. A devolução da moeda poderia também significar a “devolução” de todo o sistema de impostos e o aparato de opressão romanos. O fato de Jesus não ter consigo uma moeda romana – por isso pediu para que a trouxessem – seria um indicativo de sua renúncia ao domínio do imperador?
– É importante considerar a mudança de verbos na pergunta e na resposta. A pergunta usa o verbo grego didomi (é lícito pagar?) e, na resposta, aparece o verbo apodidomi (dar a César / dar a Deus). “Devolver” parece ser a tradução mais adequada para o verbo apodidomi. Se Jesus compreende a nação e o povo de Israel como propriedade de Deus, essa seria a melhor explicação para a substituição do verbo. Jesus exige que se devolva a Deus aquilo que os romanos conquistaram militarmente e saquearam economicamente através da cobrança de impostos: o povo de Israel e a sua terra.
– Devolver (apodidomi) a Deus o que a ele pertence abarca a postura individual (oração, estudo da Torá etc.) e a dimensão coletiva (o templo, o povo, o país). Isso pode ser um indicativo da recusa à pretensão do domínio romano sobre Israel e poderia explicar por que mais tarde, na acusação feita contra Jesus, a questão do imposto reaparece, ligada com a menção de agitação política: E ali começaram a acusá-lo, dizendo: – Encontramos este homem pervertendo a nossa nação, impedindo que se pague imposto a César e afirmando ser ele o Cristo, o Rei (Lc 23.2).
– A atividade de Jesus foi caracterizada pela proclamação do reino de Deus, termo que é mencionado mais de cem vezes nos evangelhos. Jesus anunciava que o domínio de Deus estava se estabelecendo. Se o reino de Deus vai se instaurar plenamente, como é que ficariam a dinastia de Herodes e o Império Romano, com seus aparatos militares e sistemas tributários?
Seja como for, a resposta de Jesus é, no mínimo, uma provocação para refletir. Quem ouve a palavra deve refletir sobre o que pertence ao imperador e o que pertence a Deus. Mais do que uma charada exegética, o texto nos coloca diante de uma questão hermenêutica. E o denário é uma chave hermenêutica fundamental, pois Jesus poderia ter respondido sem apontar para a moeda. Através do denário ficavam evidentes a ocupação romana e a impotência judaica diante desse poder. Está em jogo não apenas o imposto, mas a moeda e tudo o que está ligada a ela.
3. Meditação
As pessoas que conviviam com Jesus tinham a vantagem de poder perguntar ao Mestre quando não entendiam algo. Hoje, podemos apenas pressupor entender certas coisas. Na questão do imposto, não dá para afirmar que esta ou aquela linha de interpretação é a verdadeira. Mas o que certamente não pode ser inferido da resposta de Jesus é o entendimento de que igreja não deve se envolver com política. Isso o texto não diz e tampouco pressupõe.
Usar o presente texto para rechaçar o envolvimento da igreja em política representa um clássico exemplo de anacronismo, pois separa em esferas estanques algo que na época de Jesus estava interligado. Em segundo lugar, esse tipo de pensamento costuma confundir política com partidarismo. A palavra política se origina do termo grego polis, que significa cidade, o ambiente público. A polis tinha função administrativa e jurídica e era composta por vilarejos e territórios. A política tem a ver com a administração do âmbito público. Neste sentido, política não é sinônimo de partido político, ainda que partidos políticos sejam necessários em um sistema democrático. Como instituição, a igreja não se compromete com partidos, mas com projetos e princípios, tais como a ética, a justiça, o bem comum, a dignidade da vida.
Em 2018, a IECLB teve como Tema do Ano: “Igreja, Economia, Política”. A associação das três palavras não é invenção da IECLB, mas um construto fundamental na teologia luterana. Para Martim Lutero, Igreja, Economia e Política existem porque Deus estabeleceu essas três ordens ao criar o mundo. O Reformador entendia que Deus organizou a existência humana em Igreja, Economia e Política e toda pessoa participa nos três âmbitos. Na concepção luterana, as três ordens da criação são modos pelos quais Deus atua e através dos quais o ser humano coopera com Deus.
Tanto do ponto de vista bíblico, quanto do ponto de vista confessional, é impossível separar as esferas de atuação humana. O que se pode e deve fazer é diferenciá-las. Não é possível delimitar a vivência da fé a determinados contextos. A fé envolve a dimensão intelectual, emocional e corporal da pessoa em todos os âmbitos da vida. Quando se delimita o alcance da fé, acontecem situações como aquelas denunciadas pelos profetas Amós e Isaías (Am 2.6; 5.7,21-24; 8.4-6; Is 1.10-17,23; 10.1-2).
É certo que a nossa compreensão de mundo, de exercício de poder e de economia é diferente da visão de mundo e da organização social dos tempos bíblicos e da Idade Média. A base da Economia mudou e a Política ganhou novas configurações. Embora a estrutura das três ordens pareça obsoleta em dias atuais, os desafios éticos que decorrem dessa concepção permanecem.
O anúncio da vinda do reino de Deus, que foi a essência da pregação de Jesus e deve ser também o tema central da nossa proclamação, pressupõe a avaliação das instituições políticas de poder e seus governantes. Diversamente de profetas e profetisas que denunciaram abertamente a injustiça dos reis, o posicionamento de Jesus se deu de maneira velada e indireta. A razão disso pode residir no destino que sofreu João Batista. Na execução de João Batista, talvez Jesus tenha percebido que o caminho da confrontação direta seria extremamente perigoso. O espaço para protestos ou ações político-revolucionárias era muito pequeno, e consequentemente era grande o perigo de agrupamentos suspeitos serem perseguidos. Em regra, o forte controle estatal levou a que os grupos conflitantes ou de oposição fossem extintos logo em seu nascedouro.
O pressuposto de Jesus era teocêntrico e o reino por ele anunciado era uma teocracia. Como igreja, não pleiteamos uma teocracia como forma de governo. A teocracia faz parte da expectativa escatológica, que somente a Deus pertence. Quando seu reino se estabelecer definitivamente, Deus assumirá diretamente o comando. Por enquanto, vivemos em um regime democrático, com Estado laico que não pode se apropriar do nome de Deus, assim como a igreja não pode se apropriar do Estado. Mas a igreja deve se manifestar quando a justiça, a paz, a ética e a vida humana estiverem em jogo.
Como pessoas cristãs cidadãs, podemos e devemos reivindicar projetos que visam ao bem comum de toda a população. Queremos uma política baseada na busca pelo bem comum, na justiça e na paz. Queremos uma política que não seja refém da economia, mas que regule a economia visando ao bem comum. Neste sentido, seguimos o que Lutero escreveu no Catecismo Maior: “Precisamos de soberanos e autoridades que tenham olhos e ânimo para instaurar e manter a ordem em todos os negócios e transações comerciais, para que os pobres não sejam sobrecarregados e oprimidos, tendo que arcar com pecados alheios”.
4. Indicações para a prédica
A prédica deveria apontar para a pergunta no seu contexto de origem: a terra de Israel, ocupada militarmente pelo Império Romano. A exegese e a meditação trazem alguns elementos para explicar o contexto. Vale lembrar também que, na Antiguidade, reis e rainhas tinham poder quase ilimitado sobre pessoas e propriedades. Podiam decidir sobre grandes obras, ordenar o confisco de bens ou até mesmo a morte de alguém sem muito questionamento. Não havia a ideia de que o imposto pago deveria reverter em obras e serviços públicos.
Em segundo lugar, é importante apontar para a resposta de Jesus sem cair na tentação de criar dicotomia entre esferas que seriam exclusivas de Deus ou da política. Confessar que Deus é o criador de tudo implica reconhecer que tudo pertence a Deus (Gn 1.1; Sl 24.1). Não existe um espaço da vida sem a presença de Deus. Deus não está somente no local em que a comunidade se reúne para o culto e é impossível separar aquilo que se anuncia no culto daquilo que se vive na comunidade e fora dela. Por conseguinte, economia e política também são âmbitos nos quais Deus se faz presente e nos quais a nossa fé é vivenciada.
Bibliografia
CADERNO de Estudos do tema do Ano 2018. Disponível no Portal Luterano.
VOIGT, Emilio. Contexto e surgimento do Movimento de Jesus: as razões do seguimento. São Paulo: Loyola, 2014.
WEGNER, Uwe. O que fazem os denários de César na Palestina? Estudos Teológicos, v. 29, p. 87-105, 1989. Disponível em: <http://periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/article/view/1059/1016>.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).