Prédica: Mateus 23.1-12
Leituras: Malaquias 2.1-2,4-10 e 1 Tessalonicenses 2.8-13
Autora: Vera Weissheimer
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/10/2005
Proclamar Libertação – Volume: XXX
A fé é filha de gente pequena.
Quando ela é encontrada junto a grandes senhores,
é porque foi adotada ou serve de cocheiro para conduzir
sua carruagem dourada ao céu.
Joseph Wittig
1.Observações gerais
É preciso que consideremos algumas definições para compreender com clareza o texto.
A primeira definição: quem são os escribas? Eles eram copistas das escrituras. Devido à familiaridade com os pormenores da lei, vieram a ser reconhecidos como autoridades da lei. Às vezes, eram chamados de “doutores”.
A segunda definição é muito importante para que a comunidade ouvinte dessa pregação compreenda quem são esses grupos dos quais fala Jesus. Quem são os fariseus? Estes formavam um partido religioso no judaísmo e se aplicavam em estudar profundamente a lei mosaica e as tradições dos antepassados. Exigiam a mais rigorosa observância, não da lei propriamente dita, mas da “sua” interpretação da lei, principalmente em relação à observância do sábado e à pureza dos rituais.
O nome grego “fariseu” é derivado do hebraico perusim – os separados. Teriam sido chamados assim pelos seus adversários, porque a sua severa interpretação da lei os obrigava a uma separação rigorosa da “massa dos impuros”. Na mixná, o nome fariseus aparece poucas vezes; mas é usada a palavra haberim (camarada), título usado entre eles, que faz supor uma organização muito rígida do partido.
É mais do que conhecido o juízo severo dos evangelhos e do próprio Jesus sobre os fariseus. Jesus condenava não a sua doutrina (cf. Mt 23.3), mas a sua mentalidade (de hipocrisia e soberba). Sobretudo no sermão do monte encontramos tal crítica. Desde o princípio houve uma oposição irreconciliável entre Jesus e os fariseus, tanto que eles chegam a conspirar contra Jesus (Mc 3.6). Não obstante, Flávio Josefo e autores modernos tentam justificar total ou parcialmente a ação dos fariseus, baseando-se na literatura rabínica posterior, embora haja também textos rabínicos que falam na “praga dos fariseus”. Um autor contemporâneo que também defende uma releitura da história desse grupo religioso é Evaristo Eduardo de Miranda, que escreveu o livro “sábios fariseus – reparar uma injustiça” (Editora Loyola).
O certo é que não devemos perder a dimensão da seriedade com que os fariseus se dedicavam ao estudo das coisas da religião. Em muitos aspectos, eles foram os herdeiros e guardas da revelação do antigo testamento. Foram eles que, depois da queda de Jerusalém, mantiveram vivos o judaísmo e a sua tradição. Mas os seus princípios unilaterais levaram inevitavelmente à mentalidade censurada por Jesus. O zelo exagerado pela lei e pela pureza legal teve como conseqüência não uma comunidade unida pela solidariedade e amor, mas um isolamento e um desprezo pela “massa ignorante e impura” (o povo) e um particularismo exacerbado. A mentalidade exclusivamente jurídica trouxe consigo formalismo e hipocrisia, além de um congelamento da religião viva, de modo que secaram aquelas correntes férteis do AT que foram o messianismo e o profetismo.
2. Considerações sobre a perícope
Essa perícope é trabalhada somente uma vez na série Proclamar Libertação. É Richard Wangen quem a destrincha no Vol. II (1979). Dele buscamos agora o desemaranhar dos versículos.
O capítulo 23 faz parte de um bloco que relata sobre o agir de Jesus em Jerusalém e os conflitos com os grupos-líderes do povo judaico. Neste relato, Mateus baseia-se em Mc 12.37-40. Alguns comentários apresentam o capítulo como parte de um bloco de ensinamentos ligados aos capítulos 24 e 25. Mateus quer dar testemunho do Jesus messias em seu ambiente judaico – é importante considerar que o fator “obediência” desempenha um importante papel para esse evangelista.
v. 1: O sermão do capítulo 23 inclui o povo e os discípulos, diferentemente do sermão do monte (Mt.5.1-12/Lc 6.20-23), que é dirigido especialmente aos discípulos, apesar da presença das multidões (“então, olhando ele para os seus discípulos, disse-lhes…”).
v. 2: “Na cadeira de Moisés”: esta expressão não é meramente figurativa. Havia um móvel que na sinagoga representava o lugar da autoridade magisterial de Moisés, e o termo aqui se refere a uma instituição que reivindica para si a última instância em termos de estipular o padrão de verdades e comportamentos.
v. 3: “Fazei e guardai”: alguns estudiosos duvidam que Jesus tenha mandado obedecer aos escribas e fariseus. Mas talvez ele o tenha feito no sentido de levar o ensino até as últimas conseqüências, considerando o grande mandamento (“amarás o senhor teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento” – Mt 22.37 e 38).
v. 4: “Fardos opressivos/fardos pesados”: o retrato da acumulação de leis que os escribas e fariseus exigem do povo é pintado como um feixe de lenha que vai se acumulando nas costas de quem o carrega, sem nenhuma vontade de modificá-lo. Seria uma referência à tentativa de controlar a consciência do povo por meio das leis.
v. 5-7: “Para serem vistos pelos homens”: estes três versículos demonstram as maneiras ostensivas com que os fariseus tentavam atrair a atenção sobre si. O filactério (do grego: filacterion) era uma pequena caixa de couro (como uma caixinha de fósforos) que continha quatro pedaços de pergaminho, nos quais estavam escritos os textos de Dt 11.13-21; Dt 6.4-9; Êx 13.11-16 e Êx 13.1-10. Posteriormente, começou a ser usado contra demônios e infortúnio (Dicionário Novo Testamento Grego, W. C. Taylor). Durante a oração, um filactério era usado na testa, entre as sobrancelhas, e outro mantido no braço esquerdo, junto ao cotovelo. Eram mantidos em seu lugar por tiras de couro que os fariseus alargavam para atrair maior atenção sobre si. O costume era baseado em Êx 13.9, 16; Dt 6.8; 11.18 – embora os mais piedosos só tivessem começado a usar filactérios próximo à época de cristo. Jesus não critica o costume em si, mas o espírito que o corrompeu.
Aqui acrescentamos aos comentários de Richard Wangen algumas considerações sobre esses versículos. Conforme descreve o livro de Nm 15.38, as vestimentas deveriam ter franjas e borlas (do latim burrula, floco de lã). Na tradução da Bíblia da Edição Pastoral aparecem as duas palavras: “façam borlas e as costurem com linha violeta na franja de suas vestes”. Já na tradução de Ferreira de Almeida é mencionada somente a palavra borla, e na tradução ecumênica da Bíblia (TEB) o texto diz: “façam franjas nas bordas de suas vestes – isto vale para as gerações futuras – e ponham um fio de púrpura na franja em torno da veste”. A idéia de colocar as franjas na vestimenta era para que se cumprisse a ordem: “lembrareis de todos os mandamentos do Senhor e os cumprireis, e não vos deixareis arrastar por vossos corações”. Em nosso texto no original grego, encontramos a palavra kráspeda, que significa simplesmente franja.
Jesus questionava a necessidade de alongar as franjas para que elas ficassem mais visíveis. Ele queria que o povo lembrasse que o sentido original da lei dada para Moisés era que cada ser humano olhasse para as suas próprias franjas e se lembrasse dos mandamentos que deveria seguir.
v. 8-10: “vós, porém”: segundo a análise de Wangen, esses últimos versículos estão endereçados diretamente à comunidade cristã. O procedimento cristão e comunitário descrito nesse trecho contrasta com o procedimento farisaico e tem caráter de regra para a comunidade. Os v. 8 e 10 talvez façam parte da redação de Mateus, pois são dirigidos aos irmãos (adelfoi); as multidões (hoi ochloi) não entenderiam essas palavras. O v. 9 fortalece a linha do texto na sua teo-cristo-centricidade, ressaltando que a única autoridade reside em deus. Mateus tem o cuidado em manter a antítese “aqui na terra” e “o que está nos céus”. Uma posição notável na crítica de jesus aos fariseus é que o critério do evangelho é exterior a nós, o que significa que não possuímos a última medida com a qual seremos julgados. Os fariseus e escribas reivindicavam essa regalia para si mesmos.
v. 11 e 12: indicam de que maneira deve ser “praticada” a fé cristã: não em ostentação, mas em serviço. Por outro lado, somente jesus conseguiu cumprir de forma plena esse serviço, que é o caminho de excelência para a comunidade cristã.
Levei esse texto para um grupo de estudo bíblico cuja maioria dos participantes é de empregados em marcenarias à beira da BR 116, saída de São Paulo para a região sul do Brasil. Eles chegaram à conclusão de que os versículos finais são pesados e detiveram-se longamente na diferença entre humilhação e humildade. Eles em alguns casos se sentem humilhados pelos patrões, pois moram de forma improvisada em espaços cedidos pelas marcenarias, alguns dos quais se confundem com os depósitos das empresas. Conversamos longamente sobre essa diferença, pois, se permitirmos que nossa comunidade entenda que deve aceitar a humilhação vexatória, cometemos um grave erro. Humildade vem do latim humilitate, virtude que nos dá a exata noção de nossa fraqueza, no sentido de ter respeito pelo outro. Já a palavra humilhar vem do latim tardio humilio/humiliare, que significa rebaixar, vexar, oprimir, abater.
3. Idéias para a pregação
Que ponte podemos construir da perícope até nossas comunidades? Mateus nos apresenta dois problemas: o primeiro é a forte presença da comunidade judaica, que quer dominar doutrinariamente os cristãos; o segundo são os cristãos renegarem totalmente as leis (v. 3: “fazei e guardai, pois tudo quanto eles disserem…”). Jesus indica o caminho da valorização das escrituras e a necessidade de guiar a vida sob esses preceitos, não perdendo o foco de que o pai, e não a lei/letra, é o guia.
Ficar sem o teto da lei religiosa é cair numa total anomia, uma ausência de regras para a condução da vida. A lei tem uma função instrumental em nossa vida, que precisa ser considerada. Os textos de leitura nos remetem a isso também. Malaquias é bem claro na necessidade de se ouvir a palavra de Deus: “se não ouvirdes e se não propuserdes no vosso coração dar honra ao meu nome, diz o Senhor dos exércitos, enviarei sobre vós a maldição e amaldiçoarei as vossas bênçãos…” O texto de 1 Ts 2.12 diz: “exortamos, consolamos e admoestamos, para viverdes por modo digno de Deus, que vos chama para o seu reino e glória”. Assim podemos trabalhar a perícope de Mateus como uma exortação de Jesus para que o cristão viva de maneira digna a sua fé. O evangelista pede uma obediência à lei em termos de um princípio de comportamento ético. Ou, como escreve Wangen, uma ética da relação que determina o exclusivismo ou inclusivismo, meu ou da minha comunidade.
O texto levanta diversas reflexões pertinentes à igreja em contexto brasileiro. Uma delas pode ser sobre a espiritualidade vivida como se fosse a busca por um pronto-socorro, sem comprometimento, o que na maioria das vezes faz com que se confunda fé com bem-estar. A sede por soluções imediatas lota igrejas que preferem uma comunidade cuja cabeça já não é mais Cristo, mas algum “apóstolo” ou “bispo”.
O texto também nos propõe um servir desinteressado, o que já é difícil compreender para um povo que participa de instituições que anunciam nos jornais e em outdoors a obra realizada, e muitas vezes nós caímos no mesmo erro quando enumeramos as obras de nossos membros em nossos boletins. “Nunca se ache demais. O que é demais sobra, o que sobra é resto, e o que é resto vai para o lixo.” Esta frase, dita por um humorista de televisão, nos lembra quão descartáveis são nossos pensamentos de soberba.
4. Subsídios litúrgicos
Se se desejar abordar a questão de Deus como único guia, é possível usar a simbologia do farol. Veja esta pequena meditação que recebi pela internet:
Para que serve um farol? Como seria proveitoso se você pudesse sentar-se à beira-mar e conversar com quem entende de farol. Já que não será possível realizar esse encontro nesse momento, vamos nos valer do que ensinam os livros. Eles nos dizem que o farol serve de “guia ou ponto de referência aos navegantes”. Na vida não é diferente. Quantas pessoas já procuraram por você perguntando pelo melhor caminho a trilhar? Quantas vezes você próprio se fez a pergunta: que caminho devo seguir? Como o farol é norteador para quem navega, assim também o evangelista Mateus nos alerta: “… porque um só é vosso guia, o cristo”. É animadora também a palavra do profeta Isaías: “assim diz o senhor, o teu redentor, o santo de Israel: eu sou o Senhor, o teu Deus, que te ensina o que é útil e que te guia pelo caminho em que deves andar” (Isaías 48.17). Lembre-se: Por onde andar, você poderá dirigir-se a Deus, o guia, conselheiro, protetor e mestre. Ele será o teu farol.
Há também a música “As aparências enganam”, gravada por Elis Regina, que pode ser usada como exemplo ou referência na pregação. Elis canta: “As aparências enganam aos que odeiam e aos que amam, porque o ódio e o amor se irmanam na fogueira das paixões”. Pode-se trabalhar a questão de uma fé verdadeira e de uma fé vivida com ostentação de obras e ativismo eclesiástico.
Sugestão de bênção:
O Senhor te abençoe.
Ele encha teus pés com dança e teus braços com força solidária.
Ele abra teus olhos para enxergares o mundo.
Ele encha teus ouvidos com música.
Ele sopre em tuas narinas o sopro de vida renovada.
Ele coloque em tua boca palavras de júbilo e em teu coração alegria.
Ele te dê ânimo e sabedoria para seres um reflexo da esperança.
Ele te guarde em seu imenso amor.
Bibliografia
Wangen, Richard. Meditação sobre Mateus 23.1-12. Proclamar Libertação II , p. 325-335.
Zumstein, Jean. Mateus – o teólogo. São Paulo: Paulinas, 1990. 77 pp.
Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Rio de Janeiro. 1977. 1.588 pp
Elis Regina. “As aparências enganam”. CD Minha História. Polygram.