Proclamar Libertação – Volume 35
Prédica: Mateus 23.1-12
Leituras: Miqueias 3.5-12 e 1 Tessalonicenses 2.9-13
Autor: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 30/10/2011
1. Introdução
Estamos muito perto do fim do ano eclesiástico, a três domingos de Cristo Rei. Ainda que a temática geral do fim do ano vá em direção às coisas últimas, aparece neste domingo a temática da vida em comunidade e do exercício da autoridade. Também estamos na véspera do Dia da Reforma, que, mesmo não relacionada diretamente à temática dos textos para esse dia, pode ser incluída no sentido do papel das pessoas no espírito reformador.
O evangelho, além de trazer a temática do domingo, também é o texto da pregação. Por isso nos basearemos nele para fazer a comparação com os outros. O texto de Miqueias, assim como o texto da prédica, fala de pessoas em quem o povo acredita e as quais estão fazendo o contrário do “pensamento de Deus”. É um bom exemplo de outro grupo de pessoas que não faz seu papel na sociedade israelita. Miqueias traz um juízo maior e com consequências graves para os falsários. O texto de 1 Tessalonicenses, ainda que parta da leitura contínua dessa carta, entra na temática de Mateus como um exemplo do bom exercício da autoridade. Nesse caso, o apóstolo Paulo não coloca cargas ou indica falsidade aos seguidores de Deus. O Salmo 43 também vai na mesma direção, mas ele trata a temática sob o ponto de vista da pessoa afligida pelas autoridades e na esperança do atuar divino para trocar a situação.
2. Exegese
Em relação ao nosso texto, vale lembrar que Mateus, ao que tudo indica, é um escritor judeu-cristão que escreve a outros cristãos vindos do judaísmo. Assim, os modelos que se usa na perícope são conhecidos e lembram grupos respeitados no geral, mas que não valem para os cristãos e as cristãs. Mateus inclui somente esse ataque concentrado às autoridades religiosas do momento.
Sobre o contexto, podemos indicar que a perícope traz respostas às questões colocadas anteriormente, podendo ser considerado um resumo do acontecido nos versículos anteriores: “Deem ao imperador o que é do imperador e deem a Deus o que é de Deus” (22.15ss), no v. 9; “A pergunta sobre a ressurreição” (22.23ss), no v. 1; “O mandamento mais importante” (22.34-40), na relação dos v. 2-7 versus 8-12; “Quem é o Messias / Cristo?”, nos v. 8 e 10. Em relação com o texto posterior, podemos ver um movimento do específico ao geral com o fim dos tempos. O texto está bem situado dentro da temática se seguimos a leitura de Mateus no final do ano eclesiástico.
Os fariseus, do aramaico “separado”, é o grupo de judeus que surgiu no exílio, quando não se tinha acesso ao templo de Jerusalém. A sinagoga ganhou forma como lugar de culto e as tradições começaram a ser marca característica dos judeus. Eles reconheciam a tradição oral como norma de crença e vida. Tinham ritos externos e formas de piedade facilmente reconhecíveis, tais como lavagens cerimoniais, jejuns, orações. Acreditavam na chegada iminente do Messias, na esperança da ressurreição e na premiação de acordo com suas obras. Os fariseus tinham uma surpreendente influência entre o povo. Eles foram um dos grupos que mais fervorosamente brigou contra Jesus e sua causa.
Os escribas ou mestres da lei são um grupo de profissionais que tinham como função principal e inicial “escrever”, ou seja, copiar a Lei, ao que se adicionou também o de fazer contratos. Logo, em conexão com a função de copiar a Lei, começaram a ensinar a Lei e realizar a interpretação da mesma às pessoas. Também compilaram a tradição oral, pela qual também é regida a interpretação da Lei. Os escribas formam um grupo de profissionais com uma indiscutível dominação sobre o pensamento das pessoas. Tinham “discípulos”, aprendizes da profissão escolhidos pelo rabi. Os títulos, costumes e adornos indicados por Jesus na perícope eram de uso costumeiro pelos escribas, principalmente pelos escribas que eram fariseus. O entusiasmo desse grupo pela Lei está relacionado com a ideia da retribuição divina no senso judiciário. A ideia profética da aliança que Deus fez com seu povo é interpretada de forma puramente judicial.
As traduções do Almeida e Linguagem de Hoje são muito semelhantes. A tradução na NTLH traz o texto “digerido”. Assim, no v. 2 , “cadeira de Moisés” vem interpretada como “têm autoridade para explicar a Lei de Moisés” e “escribas” é traduzido como “mestres da lei”; no v. 5, é explicado o uso dos filactérios e das franjas; no v. 8, foi trocado “irmãos” por “membros de uma mesma família”; no v. 12, a tradução mais fiel “exaltar” é trocada por “engrandecer”. Nenhuma das três traduções troca ou “trai” o texto grego.
O texto tem uma estrutura interna simples, podendo ser subdividido da seguinte forma:
23.1 – Introdução
23.2-7 – Crítica aos escribas e fariseus
23.8-12 – Indicações para os discípulos
Podemos observar, na perícope, uma grande diversidade de títulos de poder dados às pessoas. A crítica de Jesus concentra-se no uso incorreto de termos
colocados a pessoas, e por isso ele procura a exatidão no uso por seus discípulos.
Apresentamos seu significado nesse contexto:
rabbi, título honorífico para mestres da lei, v. 7 e 8;
didaskalos, mestre, professor, título de honra e respeito, v. 8;
adelfoi, irmãos e irmãs, a comunidade cristã; no singular masculino, irmão, v. 8;
pather, pai, em sentido figurado usado como modo respeitoso de saudação, v. 9;
kaqhghthj, mestre, líder, guia, instrutor (só aparece neste versículo em todo o NT), v. 10;
diakonos, servo, ajudante, v. 11.
Nos versículos finais da perícope, encontramos pensamentos trabalhados em outras passagens: do v. 11, o serviço, por exemplo, em Mt 20.26–27; Mc 9.35;
10.43–44; Lc 9.48; 22.26, e do v. 12, a humilhação e exaltação, por exemplo, em Jó 22.29; Pv 29.23; Lc 14.11; 18.14.
A perícope traz um contraste entre os valores do reino dos céus e a forma superficial da religião. Volta à temática já tocada em Mateus 20.25-28, ainda que
ali o contraste foi com os governadores dos povos pagãos; aqui é contra os supostos dirigentes do povo de Deus. A cadeira de Moisés refere-se à cadeira nas sinagogas, que era reservada à pessoa que ensinava a lei de Moisés. Por isso a expressão também se aplica à autoridade oficial de interpretar a Lei. Nos v. 3a e 4a, Jesus não é contra a utilização da Lei por fariseus e escribas. Mas ele é contra a falta de uso próprio por parte desses dois grupos. Por isso o acento não recai na primeira parte desses versículos, e sim na segunda: não imitar sua vida e a falta de coerência do pregador com o pregado.
3. Meditação
Nesse caso, Jesus ensina com o exemplo negativo. Apresenta uma crítica forte e fervorosa diante de dois grupos (ou será realmente um só?) de pessoas que procuram a sua autopromoção e alimentam-se das honras e elogios que o povo faz a eles. Eles desejam a aprovação das pessoas para sentir que estão fazendo a coisa certa. Acreditam estar agradando a Deus, quando, na verdade, eles estão tirando Deus de seu lugar. Estamos aqui diante da quebra do primeiro mandamento?
Hoje em dia, a crítica de Jesus pode estender-se a diversos grupos que atuam dentro da sociedade, das comunidades ou de outras organizações humanas:
- Os “certinhos”: aqueles que acreditam que sempre estão certos e, a partir de sua compreensão, criticam todas e cada uma das pessoas que não atuam como eles desejam.
- Os “seletos”: aqueles que se consideram diferentes do resto dos mortais. Sejam grupos de interesse, de classe econômica ou até de moradores de condomínio fechado.
- As autoridades no sistema político: hoje, nós estamos diante de uma realidade social em que a opressão é institucionalizada, assim como era com os fariseus. Ainda assim, o povo os tinha em “lugar alto”. Vemos a curta memória histórica do eleitorado. Hoje descobrem-se escândalos de corrupção, amanhã os corrutos são eleitos para continuar em cargos públicos. Ainda que existam tentativas de cercear a atuação dos “entortadores da verdade”, continuaremos por muito tempo a coexistir com eles nos cargos públicos e de autoridade.
- Neste mundo, os títulos e os cargos são importantes: doutores, pastores, governadores, diretores, executivos etc. Existem aqueles que gostam de aparecer e por isso mostram a todo mundo qual título tem e corrigem fortemente quem errar ao chamá-los sem a devida titulação.
Jesus nos traz uma crítica à forma de vida comunitária. Os discípulos não podem seguir o esquema montado pelos fariseus, em que os títulos são mais importantes do que as pessoas. Os irmãos e as irmãs atuam diferente. O que Jesus reclama não é a utilização de títulos por funções desenvolvidas; ele não tira o nome de “escribas”. A função dentro da comunidade é uma realidade e até uma necessidade. Certas pessoas têm que estar incumbidas de algumas tarefas, pois todo mundo não pode fazer tudo; faltam capacitação e indicação. O que Jesus reclama é a vontade daqueles de fazer da função um culto à sua pessoa. Em muitos outros lugares, Jesus coloca as práticas exteriores, que servem somente para mostrar-se diante dos demais, como atitudes negativas e até contrárias à vontade divina.
Estamos diante do perigo de nos colocar sempre do lado “certo”. Nós não somos como aqueles a quem Jesus critica. Somos discípulos e por isso não entramos na exaltação pessoal e sempre queremos servir. Mas será isso uma realidade verdadeira ou virtual? O culto à pessoa, criado na sociedade e cultivado nas comunidades, não é justamente o contrário? E assim, sem querer, colocamo-nos no lado “certo”. Fazemos de conta que não estamos agindo como os fariseus e escribas, mas essencialmente atuamos como tais.
Ao mesmo tempo em que o texto é usado para acusar os outros de orgulho vão e fútil, também muitas vezes tem sido usado para baixar a autoestima, para lembrar que “não somos nada” e que “não podemos sentar no lugar importante”. Tem sido usado por poderosos para colocar os “pobres e humildes” no seu lugar. Duas leituras fazem o texto entrar em interesses conflitantes. O que realmente Jesus quis dizer com sua crítica?
Cada coisa no seu lugar. Deus é o Pai. Cristo é o Mestre e Guia. Isso é o básico e mais importante. Nós somos irmãos e irmãs, família na comunidade cristã. Não para colocar-nos em lugares especiais, e sim para atuar em serviço. O importante está em colocar-se a serviço de Deus. Por isso não se elogia a exaltação pessoal ou se engrandece o indivíduo em detrimento da comunidade. Mas se elogia a colocação das pessoas em pé de igualdade diante de Deus, aquele a quem é devido verdadeiro louvor e adoração.
4. Imagens para a prédica
– Exemplos no contexto local de: “Façam o que eu falo, mas não façam o que eu faço”.
– “O Melhor Partido”, da Islândia, fundado por um comediante, conquistou o eleitorado com propostas como a construção de uma Disneylândia na ilha, a compra de um urso polar para o zoológico e a distribuição gratuita de toalhas. O comediante disse: “Vamos prometer o dobro dos outros partidos e cumprir o mesmo: nada”.
– Conto “Melões sem semente”, adaptação do original de Mamerto Menapace: Ciríaco não tinha o que fazer; por isso foi visitar o compadre Nemésio. Quando chegou à sua casa, viu que Nemésio estava trabalhando na horta. Tinha arrumado tudo certinho, a terra, os sulcos, as ferramentas. Ciríaco não quis distrair o compadre. Apoiou-se na cerca e esperou até que ele terminasse o serviço. Foi esquisito o que enxergou. Nemésio tinha feito uns sulcos compridos e altos. O compadre caminhava uns metros, fazia um buraco com o pé. Colocava a mão no bolso, pegava alguma coisa, colocava-a no buraco e então, com o pé, fechava o buraco. Depois, voltava a fazer tudo isso uns metros adiante. Esteve trabalhando desse jeito umas duas horas sem notar a presença do Ciríaco. Quando terminou, viu o compadre e o cumprimentou:
– Oi compadre, o que fazes?
– Estava esperando que você terminasse seu trabalho. Mas o que estava fazendo?
– Você viu: estava semeando.
– Semeando? O que você estava semeando?
– Melões.
– Melões? Olha que estive observando você o tempo todo. Eu vi que você fazia quase tudo certinho, mas nunca vi que você colocasse uma semente no buraco.
– Ah, é que esses são melões sem semente!
Nemésio acreditava que, para nascerem melões sem sementes, tinha que fazer tudo igualzinho como se semeasse melões normais. A única diferença era não colocar a semente. Talvez por esse simples detalhe nada cresceu.
– Ainda existem alguns templos em que o presbitério tem um lugar de destaque diante da comunidade: senta em lugar separado, especial. Uma imitação do jeito daqueles “senhores” que construíam capelas e que tinham um lugar de honra na igreja.
5. Subsídios litúrgicos
No Livro de Culto da IECLB, parte IV, p. 200, encontramos uma liturgia completa para esse texto. Não traz uma temática específica, mas coloca elementos do texto em diversos elementos do ordo.
Na elaboração das orações e frases, podem-se utilizar adequadamente os títulos que nos traz o texto: Pai, direcionado a Deus Criador; Mestre e Guia, a Jesus Cristo. Assim também os adjetivos de irmãos, irmãs, membros da mesma família e servos para identificar a comunidade reunida.
Podemos incluir o Kyrie com o clamor pelas injustiças que existem no mundo, relacionadas com a existência de sistemas de opressão que pregam uma falsa justiça e onde poucos podem beneficiar-se em detrimento de muitos.
Oração do dia:
Deus, eterno e único verdadeiro Pai, tu que mostraste o teu amor e tua justiça através de Jesus Cristo, nosso mestre e guia, pedimos-te que nos ajudes a servir somente a ti e que não nos enganemos, colocando em nós e nas outras pessoas fardos pesados que não queremos carregar. Para que assim possamos seguir os ensinamentos de Cristo e sintamos em nossas vidas que tu nos exaltas quando nos colocamos humildemente a teu serviço. Por Jesus Cristo, nosso Senhor, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo, hoje e sempre. Amém.
Na oração geral da igreja, podemos incluir a temática, tentando fazer um equilíbrio entre a denúncia (crítica aos grupos que atuam erradamente) e o anúncio (aos que sofrem pela exclusão criada), seja no contexto local e comunitário, seja no ambiente global.
Bibliografia
CARSON, D. A.; FRANCE, R.T. Nuevo Comentario Biblico: Siglo Veintiuno. El Paso, TX: Casa Bautista de Publicaciones, 2000.
GINGRICH, F. Wilbur; DANKER, Frederick W. Léxico do N.T. Grego/Português. São Paulo: Edições Vida Nova, 1993.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).