A parábola dos talentos ou da confiança desmedida
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 25.14-30
Leituras: Juízes 4.1-7 e 1 Tessalonicenses 5.1-11
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 25° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 19/11/2023
1. Introdução
Estamos chegando ao último domingo do ano eclesiástico, que se diferencia do ano civil de uma forma instigadora. Isso porque – com essa perspectiva nitidamente evangélica – não nos submetemos aos poderes que dominam nossa vida e países, mas nos remetemos em memória viva e presente a um Senhor que não tira a vida, mas dá sua vida em resgate por muitas pessoas, por toda a humanidade (Mt 25.32), se formos abertamente ecumênicos e solidários e fiéis a Jesus de Nazaré.
Os textos arrolados para este domingo são já conhecidos, pois constam da ordem de cultos há alguns anos e retornam de vez em quando conforme a Lecionário Ecumênico. Todos nos desafiam a tematizar o fim dos tempos, a parúsia de Jesus, que nos prepara um verdadeiro banquete, uma festa como lhe apraz (Mt 22.4; 25.21, 23). Os textos, assim, nos confrontam não com meditações piedosas e restritas ao ambiente eclesiástico, ao interno das igrejas e comunidades de fé. Pelo contrário, nos fazem alargar a vista e o horizonte e nos fazem refletir sobre a obra de Cristo no mundo. Entre pessoas e comunidades cristãs há uma tendência que me parece equivocada, de ler os textos bíblicos como se eles fossem previamente enquadrados no ambiente da igreja, do templo, pior, restritos a sacristias empoeiradas. Por isso nos surpreendemos quando os textos – se lidos com atenção e de coração aberto – nos remetem à vida cotidiana, à história passada e presente, fazendo assim com que não nos conformemos com as estruturas deste mundo, que nos querem reiteradamente escravizar, cegar, oprimir e violentar.
É com esse olhar que leio Juízes 4.1-7, texto que narra a convocação feita por Débora, profetisa e juíza do povo de Israel, que atendia debaixo de uma palmeira, entre Ramá e Betel, nas montanhas de Efraim. Foi essa brava mulher que chamou Baraque, um guerreiro, para assumir a luta contra o exército de Jabim, rei de Canaã, sob o comando de Sísera. Fazia 20 anos que Canaã oprimia duramente o povo de Israel. Baraque atendeu ao chamado de Débora, mas fez uma restrição: Só irei com meus dez mil homens dos filhos de Naftalí e Zebulom se fores comigo. Do contrário, não irei! Débora lhe respondeu: Irei, mas saiba que não será tua a honra da investida, pois foi às mãos de uma mulher que o Senhor entregará a Sísera. É um texto que nos assusta hoje, quando, em tempos de guerras por todos os lados, nos comprometemos com a luta pela paz e dizemos não à guerra!
A leitura da epístola é de 1 Tessalonicenses 5.1-11, a primeira das cartas conhecidas de Paulo e escrita num ambiente de expectativa messiânica da volta iminente de Jesus, como prometido após a ressurreição. Ocorre que a parúsia tardava e as pequenas comunidades se angustiavam e perguntavam: O que vai acontecer? Quando virá novamente o Senhor? Como guardar a fé e viver o evangelho do amor transformador de Jesus? Paulo sabiamente recorda à comunidade que ninguém conhece quando será o dia do Senhor, uma atualização das profecias do dia de Javé, que encontramos em Sofonias, Joel, Jeremias, Amós e outros profetas. Esse dia vem como ladrão da noite, de forma inesperada e sem alarde. E poderá nos pegar a todos de surpresa. Daí a advertência que vem desde o ministério de Jesus: Vigiai sempre! Pois será dia de destruição ou de dor, como ocorre num parto de mulher. Paulo, no entanto, consola e alerta: Vocês e nós da comunidade não somos das trevas, filhos da noite. Somos, sim, filhos e filhas do dia, filhos da luz. Por isso vigiamos, alertas, sem nos deixar embriagar por falsas promessas ou ilusões de sucesso. Nós sabemos que a caminhada é de cruz e serviço, doação irrestrita, como fez o nosso Senhor e Cristo. Por isso nos revestimos da fé, da esperança e do amor mútuo, edificando-nos reciprocamente, em cuidado e atenção mútua. E assim, despertamos muitas outras pessoas para a caminhada da fé em união com Cristo e seu Espírito vivo entre nós.
É assim que entramos na parábola do Evangelho de Mateus 25.14-30, novamente uma narrativa que nos desloca para uma realidade urbana que nos coloca muitas interrogações logo na primeira leitura do texto. A tendência é fazer comparações superficiais e fáceis com as negociatas do sistema econômico e político dos nossos tempos, sem nos dar conta das armadilhas em que podemos cair. Por isso, de saída, cautela! Trata-se de uma parábola, uma metáfora de como podemos compreender o reino de Deus ou o reino dos céus, como prefere Mateus, e qual a atitude que o Senhor espera de nós para o seu retorno de uma longa viagem. Adianto que temos vários estudos anteriores na coleção do Proclamar Libertação, que facilmente podem ser acessados no Portal Luteranos. São os textos do v. II, v. X, v. XVIII, v. 41 e v. 44. Em cada um, temos boas informações que nos ajudam a reler essa parábola com mais segurança, cuidado e descobertas. Sigamos em frente neste estudo desafiador.
2. Observações exegéticas
Mateus é um evangelho que surgiu por volta dos anos de 70/80 nas regiões do norte da Palestina, possivelmente numa comunidade judaico-cristã da diáspora na Síria. Uma leitura atenta de diversos sinais ao longo do texto nos permite compreender a crise vivida por judeus e judeu-cristãos após a destruição de Jerusalém pelas tropas romanas do general Tito a mando do imperador Vespasiano. Sobre essa guerra e a destruição da cidade e do templo sagrado dos judeus há farta informação na história antiga. É preciso considerar esse pano de fundo para entender várias das passagens e como a comunidade de Mateus procura manter- -se fiel no caminho de Jesus. Passaram-se muitos anos desde a crucificação e ressurreição do Senhor. A segunda vinda tardava. Como manter a fé e a vivência do amor sem trair o Senhor? Sem abandonar tudo e voltar à vida antiga, aos deuses da morte e da guerra?
Ao contrário do que supomos, ainda não havia de forma estruturada a ekklesía, mas sim a comunidade de irmãos e irmãs, com participação expressiva de mulheres e de gente pobre, os “pequeninos”, que aparecem repetidamente na boca de Jesus. Os nazarenos, como se tornaram conhecidos, eram israelitas como os demais, mas tinham uma certeza que os diferenciava: a fé de serem testemunhas do poder de Deus que ressuscitou Jesus e lhes havia ensinado a viver um projeto novo de fraternidade e de partilha. Não se pensava ainda num novo Israel, um novo povo de Deus, um novo testamento. Como resultado da luta contra os romanos, esse grupo fraterno se diferenciava de vários outros grupos judaicos, como os saduceus, os fariseus, os escribas e – principalmente – os discípulos da escola de Jâmnia, para onde se refugiara o sinédrio judeu após a guerra. Com essa escola a comunidade de Mateus tinha em comum a perspectiva messiânico- -apocalíptica da proximidade do fim. A guerra e a derrota para os romanos pareciam reafirmar essa visão. Mas Mateus reinterpretou essa teologia a partir de Jesus e sua mensagem. O dia do Senhor vem como ladrão da noite, ninguém sabe quando acontecerá. Por isso o refrão que se repete várias vezes no evangelho: Vigiai! (24.42s; 25.13; 26.38; 26.41). Como as moças prudentes, como os servidores fiéis do Senhor que saiu e ficou ausente por muito tempo, como aqueles que cuidaram dos pequeninos, das pessoas mais vulneráveis e maltratadas e foram surpreendidas quando o Senhor lhes disse: Quando vocês me viram? Ora, toda a vez que o fizestes a uns desses pequeninos irmãos ou irmãs, foi a mim que o fizeram (25.40).
Não se trata, portanto, de criar uma comunidade exclusiva e apartada, mas uma fraternidade diaconal, de serviço e cuidado, que mantém acesas suas lâmpadas, mesmo que o noivo tarde em chegar, que sabe trabalhar com o tesouro recebido sem perguntar o que vamos ganhar com isso. O desafio é ousar seguir os passos de Jesus, o que se aprendeu dele e na caminhada com ele (5.40; 43-48) em total confiança. Por isso Gallazzi (2015) adianta que o primeiro discurso que temos em Mateus nos capítulos 5 a 7 é a chave de leitura de todo o evangelho e também desse capítulo 25, que fecha o quinto discurso, antes da dramática narrativa da traição e entrega de Jesus aos soldados, a tortura, o sofrimento e a morte na cruz, e então a ressurreição e o envio para continuar a caminhada da missão de Deus em busca do reino e sua justiça (6.33). Sem isso, fica difícil entender a mensagem que perpassa o evangelho como um todo.
Para Gallazzi (2015), em Mateus temos uma versão cristã de uma nova Torá, um novo Deuteronômio, que é diferente do antigo (5.21-39). Jesus assumiu a Lei integralmente, mas fez uma releitura que assustou os fariseus, escribas e a classe sacerdotal. Ele ousou dizer: Vocês ouviram o que lhes foi dito; eu, porém, digo a vocês… Essa ousadia o levou a criar uma nova comunidade de discípulas e discípulos, que o seguiram até a cruz, quase abandonaram tudo, e só continuaram a caminhada depois de receber o Espírito Santo vivo do Ressuscitado, que foi adiante deles rumo à Galileia dos gentios, dos outros povos. Jerusalém deixou de ser o centro do mundo e da presença de Deus. Deus não se deixa amarrar a um lugar e a um povo somente (Jo 4.23). Ele caminha adiante. Ele chama outras pessoas, geralmente do meio dos pobres, que são os que mais se mostram abertos ao seu chamamento e ao seu amor gratuito.
Nessa nova perspectiva que a fé em Jesus anuncia, o centro do judaísmo não será mais a Lei, o livro sagrado, o templo, nem mesmo as regras de pureza. O centro a partir do qual a glória de Deus se faz presente – paradoxalmente – são os pequeninos (18.6; 19,14; 21.16; 25.40). Não pode ser acaso que o evangelho da infância de Jesus é exclusivo de Mateus e que nesse evangelho José, Maria e Jesus precisam fugir de Jerusalém para o Egito porque Herodes quer matar o menino. E efetivamente ele mata muitas crianças, mostrando toda a crueldade do poder estabelecido. Mateus inverte a história do êxodo. Aqui o Egito é a terra da salvação e Jerusalém a terra da escravidão e da morte. Essa narrativa se completa no final com a morte na cruz, fora das muralhas da cidade sagrada.
Então, sobre a parábola, cabe registrar alguns detalhes importantes. Trata-se de uma parábola que, em Mateus, geralmente começa assim: O reino dos céus é como um homem que saiu a viajar... E então vem a narrativa. Sigo aqui algumas referências de Gallazzi (2015), entremeadas com outras observações:
V. 14 – O senhor que sai a viajar é um homem de muitas posses, sem nenhuma dúvida. Mas compará-lo a um capitalista dos nossos dias pode nos induzir ao erro. Pois se trata de uma figura estranha conforme as atitudes que toma em relação ao seu tesouro. Tem poder, mas abre mão dele para que seus encarregados, servidores de confiança, tomem conta do tesouro. Sem promessas, entrega o que tem.
V. 15 – E o que ele dá ou entrega? Talentos, talanta em grego. Nos estudos anteriores há várias explicações sobre essa medida de valor econômico. Não por acaso a parábola lida com alguns números e faz referência a negociações para multiplicar esses valores e menciona palavras que são traduzidas por banqueiros e juros (v. 27). Gallazzi (2015) destaca que os talentos (o tesouro do senhor) são entregues segundo a dynamis de cada servidor. Mateus não usa aqui a palavra exousia, própria do poder político. O termo dynamis possivelmente se refere à capacidade pessoal, ao poder fazer. Sobre o termo-chave talento, destaco que há informações diversas: um fala que valeria 20 kg de ouro (Kliewer, 1983), outro, 35 kg de prata (Gallazzi, 2015). Outros se referem ao valor de um denário, o salário de um dia de trabalho. Um talento valia mil denários, isto é, mil dias de trabalho (Kilpp, 1992). Outro eleva em muito a medida e afirma que poderia valer seis mil denários, o que corresponderia a 18 anos de trabalho de um diarista (Garin; Timm, 2019). Sem entrar na discussão quantitativa, o que fica claro é que talento aqui diz respeito a um valor desmedido, muito alto, o que significa que o senhor estabelece uma relação de confiança altíssima, desmedida, com seus servidores. Gallazzi (2015) faz uma observação interessante sobre esse senhor. Se na parábola das moças a questão-chave era a quantidade de óleo das lâmpadas que elas deveriam ter na espera do noivo, aqui o senhor providencia uma alta quantia de bens que ficam à disposição do trabalho (da dynamis) de cada servidor. E mais: o senhor não deixa qualquer explicação do que fazer e como trabalhar com esses talentos, bens de enorme valor. Ele entrega na base da confiança.
V. 16 a 22 – Aqui temos os servidores que recebem talentos. A um é dado cinco talentos, a outro dois; esses trabalham criativamente com os talentos recebidos, negociam, fazem multiplicar o que receberam. Um terceiro ganhou um talento, cavou um buraco na terra e escondeu o que recebera do senhor. No retorno tardio do senhor, se dá a prestação de contas. O que recebera cinco talentos, entrega outros cinco. E recebe como resposta: Muito bem, servidor bom e fiel. Foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra na alegria do teu senhor. A mesma resposta ocorre ao que recebera dois talentos. Chama a atenção essa relação entre pouco e muito na resposta do senhor. Pois tudo indicava que um talento era uma quantia ou um bem de grande valor. De qualquer forma, a relação dos servidores com o senhor é algo fora do comum. Eles trabalham, ganham uma fortuna e entregam tudo ao senhor, sem questionamento. O senhor, por sua vez, não retribui com novos talentos. Está desfeita a teologia da retribuição (olho por olho, dente por dente), tão presente no livro de Jó. O que temos é outra recompensa: é poder participar da alegria da mesa ou da casa do senhor. Temos aqui outra figura do reino dos céus. Não se trata mais de domínio, mas de fruição de uma relação de confiança plena que foi recompensada com a alegria (chara, de charis) da presença na comunhão com o senhor. Mais que posses ou quantias, está em jogo aqui a comunhão de vida e de alegria compartilhada com o senhor.
V. 24 a 30 – Nesses versos acontece o tenso diálogo entre o servidor que recebera um talento e o devolve inteiro ao seu senhor, desculpando-se de uma forma comprometedora: Senhor, sei que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e reúnes de onde não espalhaste; com medo, fui e escondi na terra o teu talento; olha, aqui o tens! O que pensava esse servidor que poderia lhe acontecer? Provavelmente, pensou consigo mesmo: ao menos, não perdi nada, nem fiz mau uso do que recebi. Devolvo o que me foi dado e fico bem com meu senhor. Algo assim. Mas não foi o que aconteceu. O senhor, indignado com tamanha displicência, disse: Servidor malvado e preguiçoso, sabias que ceifo onde não semeei e reúno de onde não espalho? Devias, então, dar o meu tesouro aos banqueiros e, eu voltando, receberia o que é meu com juro. Triste fim jamais esperado.
Mas Mateus vai fundo no julgamento. Não só o servidor foi severamente repreendido, como ficou simplesmente sem nada. Pois o senhor afirma aos outros: Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez. Porque ao que tem lhe será dado e estará na abundância; mas ao que não tem, até o que tem lhe será tirado. Mais ainda: lançai o servidor sem valor nas trevas, lá fora; ali haverá choro e ranger de dentes.
3. Meditação
Segundo Gallazzi (2015), é esse servidor que nos dá a chave de leitura da parábola. Ele não entendeu que o senhor lhe entregara o talento para trabalhar com ele como sendo seu. Não entendeu que fazendo render esse talento estaria beneficiando a si mesmo e não a outro. E então, Gallazzi (2015) traz uma frase que novamente surpreende: “Não entendeu que, mais do que senhor/patrão, o homem que viajou é um pai que nos entrega seus bens e que fica alegre com o que nós soubermos fazer com eles”. Eu diria que o terceiro servidor deixou-se dominar por um medo infundado, um temor que só o fez voltar-se unicamente para si mesmo, preocupado com o seu próprio umbigo e incapaz de olhar em volta, enxergar tarefas que poderiam ser realizadas com liberdade, ousadia, fé, amor e compaixão. O tesouro estava à sua disposição! O senhor não decretou a forma de agir. Simplesmente, ofertou o tesouro. O que fazer com ele ficava ao critério do servidor e de sua visão das coisas, do horizonte aberto por seu projeto de vida. E esse projeto Jesus já anunciara inúmeras vezes na caminhada com os discípulos: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado (11.25s).
Na parábola que segue a essa, quando no julgamento final o filho do homem com os anjos vier para separar uns dos outros, cabritos de ovelhas, novamente ele irá surpreender os que fizeram a vontade do Pai (7.21). Ele não irá observar a quantidade de orações piedosas, cultos, obras faraônicas, mas vai dizer: Porque tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber, era estrangeiro e me hospedastes; estava nu e me vestistes; enfermo e me visitastes; preso e fostes ver-me (25.35). Mas quando foi que te vimos, perguntam os servidores estupefatos. E ele lhes responderá: Em verdade digo a vocês; todas as vezes que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes (25.40). O refrão da mensagem de Jesus volta com toda a força. O servidor vigilante não pensa em si mesmo em primeiro lugar. Ele abre bem os olhos e o coração; vê a necessidade da outra pessoa, das mais vulneráveis antes que o seu prazer imediato. E isso modifica sua vida. E a preenche com um sentido e uma alegria que ele não encontra nem sente de outra forma. Na ótica de Jesus, não basta viver gritando: Senhor! Senhor! Muito menos reduzir a fé a fazer milagres, a profetizar ou expulsar demônios. Esses sinais, desacompanhados da misericórdia, da compaixão e do amor aos pequeninos (12.7s; 12.33ss; 5.43ss; 6.5ss; 6.22-24; 9.12s; 15.7ss), de nada valem. São obras mortas. Refugo.
Na conclusão, fica o desafio. Bons servidores compreendem que o talento recebido, o tesouro que o senhor entrega, não é propriedade privada, mas algo a ser assumido como plataforma ou ponto de partida para uma caminhada ousada de serviço e criatividade. Há muito a fazer para que o talento recebido frutifique. Árvore boa é aquela que dá fruto (12.33); ela espalha sua sombra sobre muita gente e serve até para reunir esse povo debaixo de seus galhos frondosos para celebrar a alegria da presença/ausência do senhor na partilha de seus bens.
Um profeta-mendigo das ruas do Rio de Janeiro, já falecido, escreveu e viveu um lema que estampava num cartaz: Gentileza gera gentileza. Leonardo Boff, que me parece que o conheceu, disse, certa vez, que esse morador de rua era um profeta. Nele se escondia uma faceta do Senhor que se esconde nos pequeninos, nos mais vulneráveis, nas pessoas que recebem menos valor em nossa sociedade meritocrática e profundamente desigual, perversa com gente sofrida, mal paga e doente. É esse tipo de servidor que terá a alegria de – ao final – receber o convite para desfrutar da mesa na casa do Pai. E o banquete será farto e com muita música, dança e choro de alegria.
Já no caso do servidor infiel, que teve medo, que se escondeu na terra junto com seu talento, com o tesouro recebido, ele sofre o destino de ficar fora, em meio a trevas, que significa a incompreensão da lógica absurda do reino dos céus, lógica ilógica da partilha, da entrega da vida (10.39), se for preciso, para que a alegria seja completa e o amor vença o ódio, a vida vença a morte, a paz supere a violência. A longa ausência do Senhor não deve nos deixar inertes, passivos, como se o talento devesse ser enterrado para melhor preservá-lo. Até porque ele está presente, mesmo sem que o vejamos com os olhos deste corpo mortal. É na vigilante espera ou expectativa que o tesouro revela toda a sua força criadora, capaz de transformar realidades, mentes e corações. Três palavras revelam em Mateus a chave para vivenciar criadoramente a espera da volta do Senhor: vigilância, fidelidade ou confiança desmedida, e cuidado pastoral com o outro. Para tanto, é prudente não deixar o azeite faltar, saber valorizar o tesouro recebido e ter compaixão por quem mais sofre. A essas pessoas, o senhor dirá: Entrem na alegria da minha casa!
4. Subsídios litúrgicos
A pregadora ou o pregador poderia iniciar a reflexão do texto perguntando às pessoas com quem se identificam na parábola. As respostas poderão ser dadas livremente ou talvez no silêncio da assembleia. Com isso, o grupo presente poderá fazer a experiência de entrar na história, debater-se com o seu desdobramento e tirar algumas conclusões. Não será um momento fácil de vivenciar. Pois se trata de um texto que não termina bem para todos. Há quem fique fora da festa, quem não irá desfrutar da alegria do Senhor, de sua comunhão e partilha. Se existe um choro de alegria, há também um choro de tristeza e desgraça. Num tempo em que tudo tem valor monetário, em que nossos corpos e até nossos pensamentos são diariamente surrupiados pelas redes das grandes Big Techs, esse evangelho subverte o poder dos algoritmos, pois coloca a relação de confiança (aí está a graça, o evangelho!) como a alternativa ao domínio que se estende como uma rede sobre nós. Ainda é tempo de desenterrar o tesouro e fazê-lo reverberar em novas possibilidades de vida e esperança.
Hinos: LCI 56 (Kyrie), 25, 439, 591.
Poesia – do místico e poeta hindu R. Tagore, Nobel de Literatura em 1913:
Ele veio e sentou-se ao meu lado, mas eu não despertei. Ai de mim!
Que maldito sono era aquele?
Ele veio quando a noite corria tranquila. Trazia a harpa nas mãos,
e os meus sonhos ecoaram as suas melodias.
Ai de mim! Por que as minhas noites ficam assim perdidas?
Por que sempre perco de vista aquele cujo sopro roça o meu sono?
(Gitanjali, 26)
Bibliografia
GALLAZZI, Sandro. O evangelho de Mateus. Uma leitura a partir dos pequeninos. São Paulo: Fonte Editorial; Santuário, 2013. (Comentário Bíblico Latino-Americano).
GARIN, Norberto da Cunha; TIMM, Edgar Zanini. Auxílio homilético para Mateus 25.14-30. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2019. v. 44, p. 336-340.
KILPP, Nelson. Auxílio homilético para Mateus 25.14-30. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1992. v. XVIII, p. 272-274.
KLIEWER, gerd Uwe. Auxílio homilético para Mateus 25.14-30. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1983. v. II, p. 400-407.
TAGORE, Rabindranath. Gitanjali (1909). Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulinas, 1991.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).