Proclamar Libertação – Volume 32
Prédica: Mateus 27.11-26
Leituras: Isaías 50.4-9a; Filipenses 2.5-11
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: Domingo da Paixão
Data da Pregação: 16/03/2008
1. Introdução
A todo instante ouve-se esta pergunta: Quem é culpado? Quem é culpado pelas balas perdidas que roubam a vida de inocentes? Pela morte dos peixes nos rios que cruzam nossas cidades? Pelos conflitos entre etnias? Pelas desavenças em família?
Quem é culpado? Parece não haver dúvidas de que nós dificilmente assumimos nossa parcela de culpa diante do que acontece. Isso vai desde a lambida no merengue da torta na geladeira até atitudes e palavras que ferem e arrasam vidas. Eu não! Foi ele/ela/isso/aquilo! O culpado sempre está fora de mim. Também em relação ao que me prejudica, a culpa normalmente é transferida. Aliás, nesses casos, cresce hoje a tendência de culpar “os poderes do mal; o diabo”. Ali está o culpado.
No entardecer do tempo da Quaresma, início da Semana Santa, a liturgia do culto convida a perguntar sobre a culpa pela morte de Jesus. Quem é culpado pela morte de Jesus?
Já houve época em que se afirmava de maneira bastante acentuada que o culpado pela morte de Jesus fora o Império Romano. Para outros, a morte de Jesus fazia parte do plano de Deus; ele estava predestinado à morte na cruz. Há ainda quem entenda que o culpado por essa morte é o ser humano em termos gerais.
O texto da prédica deste domingo aponta quem é culpado pela morte de Jesus. E isso precisa ser lido e analisado em conexão com Isaías, que falou do servo que se ofereceu para sofrer humilhação (50.6), e em conexão com Filipenses 2.5-11, que toma Jesus – o servo sofredor com rosto bem humano – como modelo para a comunidade cristã.
Compreender quem é culpado pela morte de Jesus ajuda-nos a refletir com mais sobriedade e responsabilidade sobre nossos atos e, o que é mais decisivo, leva-nos a assumir nossa parcela da culpa e a transformar nossos atos, nossas comunidades, nossa sociedade, de sorte que sejamos sujeitos que promovem a vida em sua plenitude, cultivando a paz semeada pelo Filho de Deus.
2. Exegese
O texto da prédica está no contexto dos capítulos 26 a 28 de Mateus, que aborda a paixão de Jesus, sua morte cruel na cruz e sua ressurreição. Jesus tem consciência de que será “entregue” (26.1-30), termo (26.2; 27.2) que expressa que fariam com ele o que bem entendessem. E isso se confirma: os responsáveis pela morte de Jesus se dão a conhecer (27.1-26), ele é traído, preso, humilhado (26.31-75), levado como cordeiro ao matadouro e depois enterrado (27.27-66). Porém, contra todas as previsões, Jesus ressurge para a vida e sua autoridade e sua mensagem alcançaram céu e terra em todos os tempos (28).
Colocando a lupa sobre Mateus 27.11-26, encontramos ali cinco cenas distintas:
1) V. 11-14 – Preso, Jesus fica no foco do “show” e passa a ser objeto da fúria da multidão instigada, ainda que nesse momento tenha optado pelo silêncio. Diante de posições extremas e intransigentes, Jesus cala. O seu “tu o dizes” revela que o reinado que a população e as autoridades aguardavam não é nos moldes dos governos vigentes; não é um reinado para competir com o Império Romano. Nesse sentido, o silêncio também pode ser entendido como sinal evidente de que Jesus assume sua missão como compromisso indesviável da cruz. Trata-se de “sua submissão digna, soberana e voluntária à missão do servo sofredor” (Anderson, p. 242).
2) V. 15-18 – Jesus também é vítima de costumes, de populismo e de inveja. Quem será solto na festa: Barrabás, um assassino (de acordo com os textos paralelos), ou Jesus, o Cristo? Mateus acentua essa confrontação. E há um detalhe relevante nisso: “preso” (v. 15), a partir do termo original (désmios), significa “ainda não julgado”. Portanto, segundo Mateus, os judeus no seu conjunto – população e suas lideranças – rejeitam, julgam e condenam o Servo e o trocam por um bandido. Mateus não fala somente do “povo”, mas do “povo todo”. O povo enquanto nação carrega a culpa pela morte de Jesus, e não apenas os seus dirigentes. Mateus faz com que Pilatos apresente ao povo a decisão final.
3) V. 19-20 – Surge um elemento de certo modo surpreendente no desenrolar dos acontecimentos e que visa questionar a tendência manipulada desse processo. A mulher de Pilatos constata que Jesus é inocente. Para Mateus, o sonho é revelação divina. Pilatos é advertido sobre a iminência de um julgamento errado. Uma pagã reconhece o Justo. Porém, como se trata-se de mulher, pagã, quem dará ouvidos? Enquanto isso, os dirigentes de Israel empenham-se ao máximo para influenciar a multidão duplamente: pedir a liberdade de Barrabás e a morte de Jesus.
4) V. 21-23 – Pilatos retoma a mesma pergunta do v. 17 e insiste nela: Quem é para ser solto? E aqui está o foco da pergunta de Mateus: Quem é culpado pela morte de Jesus? A multidão e as autoridades são postas diante da alternativa: reconhecer o Justo ou condená-lo. E o que farei com Jesus? E o que Jesus fez? – insiste Pilatos. Sua insistência revela que ele está contrariado e que sua decisão será sob coação.
5) V. 24-26 – Nada, ninguém consegue mudar a decisão da multidão. E Pilatos reconhece seu fracasso ao advogar a soltura de Jesus. Vê-se que o poder constituído – o poder romano –, que pretendeu acabar com Jesus desde o seu nascimento (Mt 2.13), tomou corpo no poder popular e religioso (esse incorpora aquele), é derrotado e obrigado a conduzir o inocente à morte. O poder da violência voltou-se contra seu autor, que é forçado a inocentar quem tem culpa e a culpar quem é inocente. Ao lavar as mãos, Pilatos quer tornar visível sua inocência. Isso, porém, não o inocenta, pois de fato ele falhou ao não conseguir conduzir o processo em favor da justa condenação e da justa absolvição. Ele não consegue resistir à força crua de quem quer a destruição de Jesus, o Justo.
3. Meditação
Quem é o culpado, seja pela morte de Jesus ou pelos rumos do mundo de hoje?
Na década de 1980, à luz do Vaticano II e da força da Teologia da Libertação, entre outros fatores, era normal culpar o poder político pelos males do mundo. Uma das características daquele contexto eram os governos ditatoriais. O cálice distribuído por esses governos de fato era amargo, tanto para a população em geral como para quem ousasse articular uma oposição.
Governos sempre carregarão parcela (maior ou menor) da culpa pelo que acontece. Pessoalmente, porém, mudei a maneira de ver a questão da culpa pelo que acontece de ruim, pelo que condena inocentes e inocenta culpados. É o que Mateus já via e percebia, inclino-me a ler.
Mateus parece insistir na identificação de uma transferência desgraçada de atitudes que ferem, roubam a dignidade humana e usam e festejam a morte tanto de bandidos como de inocentes. Qual é essa transferência?
No caso do primeiro século do tempo cristão, a especialidade do poder de Roma, instalado na Palestina, consistia em impedir a germinação do shalom (no sentido lato dessa palavra), semeado desde o tempo dos profetas e agora regado pelo Filho de Deus em pessoa. No momento em que esse poder (no mínimo, parte significativa dele) reconhece seu erro, a população, que conhece o poder romano e, em boa medida, instigada e manipulada por lideranças religiosas e políticas, encarna aquele poder da violência e busca matar quem está em seu meio e é a Vida na sua plenitude. O povo troca a fonte da esperança verdadeira por um assassino e, não bastasse isso, ainda faz grande festa.
E qual a principal razão dessa troca e dessa transferência de atitude? O não-atendimento imediato de expectativas da população – de cada um dos indivíduos que a compõem – e a ameaça aos poderes constituídos. O mais grave é que com aquela mudança de atitude a raiz da violência que humilha e mata não é arrancada. Ao contrário, com a atitude leviana da troca do inocente pelo culpado – pela revolta por não ter correspondido a expectativas individualistas –, o círculo da violência é ampliado e fortalecido.
Façamos uma análise de nossas atitudes. Cresce assustadoramente a exigência (não somente a expectativa) pelo atendimento da “minha vontade”, do “meu interesse”, daquilo que favorece a quem “eu quero ver favorecido”. Sou contra a violência que me atinge, mas sou a favor do uso das armas para tanta coisa. Revolto-me contra a morte causada por bala perdida, mas expulso de casa minha filha que anuncia a gravidez inesperada. Critico a corrupção em Brasília, mas troco meu voto pelo favor de algum politiqueiro.
Observando a pregação e as atitudes de Jesus, daria para resumir, dizendo que ele veio e demonstrou que a vida em sua dimensão mais ampla, profunda, bela, significativa é possível. Claro, há aí um detalhe que está bastante esquecido: conforme Jesus, a vida que ele veio promover não é isenta de sofrimento. Mas faz parte da essência dessa vida que especialmente o sofrimento é enfrentado e carregado com atitudes de solidariedade.
Foi por isso que Jesus calou perante a multidão. A vida e o reino que ele promoveu passam pelo sofrimento, que desmonta o sofrimento provocado pela violência do poder pelo poder e da fúria motivada por desejos individualistas. E, segundo Mateus, são os sujeitos desse poder e dessa fúria os culpados pela morte de Jesus. A essência da presença de Jesus é o desmonte daquele método e a eliminação da culpa. Num português simples, ele disse: “Está bem, eu assumo a culpa. Desse modo, rompo o círculo da violência e vocês não precisam mais ficar procurando culpados”.
Jesus venceu. Ele ressuscitou. Seu método pode ser conferido em atitudes como as de Mahatma Ghandi. Segundo Paulo, comunidade cristã – igreja – é reconhecida ali onde aquele Jesus humilhado pela multidão é confessado (Fp 2.11), onde seu método está no coração das pessoas (v. 5).
4. Imagens para a prédica
As pessoas reunidas em culto reagirão com indignação se a elas forem apresentadas imagens que traduzem violência, especialmente imagens que retratam a violência cotidiana que acompanha todos nós, quase como um fantasma. Dá para projetar essas imagens. Dá para mostrar recortes de jornais com essa realidade. Também dá para pedir que as pessoas descrevam imagens desse tipo. Vistas as imagens, daria para perguntar pelos culpados dessas situações.
Num outro momento, daria para comentar a facilidade e rapidez com que um jogador de futebol ou seu time passam da condição de ídolo para culpado. Um gol e uma vitória fazem com que um jogador e o time todo sejam ovacionados e endeusados. Já um “frango” do goleiro e uma derrota enfurecem a mesma multidão e levam-na a depredar as instalações de seu time. Alguém é “deus”, mas logo pode virar culpado.
Dá para avançar mais e indicar como a violência e a culpa por ela podem nos atingir. Uma filha pode ser “a alegria da família”, a “doçura do vovô e da vovó”. A mesma moça, constatada sua gravidez fora do casamento, pode ser sumariamente expulsa de seu lar e de sua família. Ela é a culpada pela vergonha!
E assim estaremos no cerne da prédica: a transferência da culpa a outros e o fortalecimento do círculo vicioso da violência que humilha, causa sofrimento implacável e até mata.
5. Subsídios litúrgicos
(Os elementos litúrgicos estão baseados no Livro de Culto, p. 89s. e 270s.)
Confissão de pecados
L – Oremos: Deus, que nos perdoas e nos dás nova oportunidade para viver como teus filhos e tuas filhas, para nós é tão difícil reconhecer nossa culpa. Não conseguimos admitir nossa parcela de culpa em tanta coisa que acontece. Para nós, o culpado sempre é o outro. Por isso:
C – (Canta ou fala um pedido de perdão)
L – Temos nossas “manias” e nossa teimosia. Por meio delas quebramos a comunhão na família, na comunidade, entre pessoas de nossa amizade. Por isso:
C – (Canta ou fala um pedido de perdão)
L – Para nós é difícil dar o primeiro passo em direção a outra pessoa. Queremos que ela venha até nós. Entendemos que ela é a culpada. E assim carregamos intrigas, desgostos, rancores, ofensas através de gerações. Por isso:
C – (Canta ou fala um pedido de perdão)
L – Deus amado, pelas rupturas em nossa comunhão, pelos muros que nos separam, também na comunidade, pela falta de compreensão e perdão, pedimos:
C – (Canta ou fala um pedido de perdão)
Kyrie eleison
Membros da equipe de liturgia apresentam os símbolos, enquanto L os explica.
L – Viemos para este culto buscando o encontro com Deus. Neste encontro, não nos afastamos do mundo e de sua realidade, mas unimos nossas vozes àquelas que clamam e pedem compaixão, de modo especial as vítimas de todas as formas de violência. Revistas e jornais (mostrar) publicam relatos sobre violência e morte, sobre pessoas que sofrem injustamente devido às guerras. Com o tijolo quebrado (mostrar) apresentamos perante Deus todo tipo de violência que destrói vidas, arranca membros do seio familiar, explode valores imprescindíveis para a paz. Com o lenço (mostrar) traduzimos a dor diante da doença e da perda de pessoas queridas. Por todas essas situações, clamemos ao Senhor:
C – (Canta algum Kyrie)
Oração do dia
L – Oremos: Nosso Deus, tu que te revelas na cruz e no sofrimento, na tua palavra e na ceia da comunhão, concede que compreendamos o teu jeito de agir, para que não caiamos em tentação quando nossa fé é abalada e nos sentimos vazios e desorientados e para que, mesmo nas situações de sofrimento e desespero, seguremos confiantes a tua mão. Por Jesus Cristo, que contigo e com o Espírito Santo reina de eternidade a eternidade.
C – Amém.
Oração eucarística
L – Que Deus esteja com vocês.
C – E também com você.
L – Elevemos os nossos corações a Deus.
C – Sim, a Deus os elevamos.
L – Rendamos graças a Deus porque Ele está no meio de nós.
C – É digno e justo rendermos graças a Deus.
L – Nós te damos graças, ó Deus, porque és o Senhor da história, desde a criação do mundo até o fim dos tempos. Tu te revelaste na história do povo de Israel como Deus que salva, liberta e acompanha no sofrimento e no abandono. Em Jesus Cristo tu vieste a nós e assumiste a condição humana. Nós te damos graças, ó Deus, porque promoveste a salvação da humanidade não pelo caminho da violência, mas pela entrega de teu Filho à morte, revelando, assim, a tua solidariedade no sofrimento e a tua presença ao lado dos que vivem na mais profunda angústia. Nós te louvamos e te agradecemos porque em meio aos escombros da morte reconstruíste a vida e ressuscitaste o teu Filho, dando-nos a esperança da vida eterna. Por tudo o que fizeste por nós e pela salvação preciosa e gratuita que de ti recebemos nós te rendemos graças e te adoramos, cantando o sempiterno hino:
C – (Canta) Santo, Santo, Santo.
L – Graças te damos porque o Teu Filho Jesus, antes de entregar-se ao julgamento humilhante e à morte na cruz, reuniu os seus discípulos para uma refeição. E, enquanto comiam, tomou o pão e, tendo dado graças, o partiu e deu-lhes, dizendo: “Isto é o meu corpo oferecido por vós, fazei isto em memória de mim”. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: “Este é o cálice da nova aliança no meu sangue derramado em favor de vós. Fazei isto em memória de mim”.
Lembrando o que Jesus fez, reunimo-nos em torno desta mesa para celebrar a vitória de teu Filho sobre a morte, sua ressurreição, sua ascensão para junto de ti e sua volta para o julgamento final. Nós te pedimos: dá-nos o teu Santo Espírito, para que, celebrando a comunhão contigo, nos tornemos um só espírito e um só corpo em Cristo Jesus.
C – (HPD 366) Vem, Espírito Santo, vem e atende o nosso chamado.
L – Lembra-te, ó Deus, das pessoas que já não estão entre nós, muitas delas vítimas da violência instalada neste mundo. Bem guardadas em teu colo, elas continuam conosco na comunhão do corpo de Cristo. Aguardamos o encontro com todas essas pessoas na mesa de teu reino, na festa da alegria, onde conjuntamente te glorificaremos para sempre, por Cristo, nosso Senhor.
C ou L – A ti, trino Deus, rendemos toda a honra e toda a glória, agora e para sempre. Amém.
Motivação para o gesto da paz
L – Em nossa vida passamos por momentos angustiantes, seja por alguma desavença, seja pela discordância com as ideias de nossos colegas e familiares. E, muitas vezes, decidimos resolver as coisas pelo caminho da violência. Lembremos: Jesus veio, calou ao invés de revidar e anuncia ainda hoje: Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou.
Envolvidos por esse anúncio, vamos agora desejar uns aos outros a paz de Cristo, aquela paz que tem o poder de curar feridas abertas por todo tipo de violência e que rompe o círculo vicioso da violência.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Matthäus. In: Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament 1. 6. Auflage. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1986. p. 552-556.
GORGULHO, Frei Gilberto S.; ANDERSON, Ana Flora. A justiça dos pobres. Mateus. São Paulo: Paulinas, 1981. (Coleção Círculos Bíblicos 4)
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).