Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 27.33-50
Leituras: Isaías 50.4-7 e 2 Coríntios 5.19-21
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 18/04/2014
1. Introdução
A Sexta-feira Santa é um dia incomum. A comunidade cristã celebra a morte do Salvador. Isso não tem paralelos na história das religiões. De acordo com a lógica humana, não pode morrer aquele de quem se esperam socorro e libertação do mal. A fé cristã não acompanha esse raciocínio. Muito pelo contrário, ela atribui à morte de Jesus o milagre da reconciliação com Deus, o perdão dos pecados, a justificação por graça. Assim o apóstolo Paulo o expressou no texto da segunda Carta aos Coríntios, uma das leituras paralelas para esta sexta-feira. O sofrimento de Jesus é transparente para o amor de Deus, que por ele se aproxima da criatura. Sob tal perspectiva, torna-se significativa a profecia de Isaías. A comunidade cristã enxerga em Jesus aquele “servo de Deus” que ofereceu as costas aos que o feriam e a face aos que lhe arrancavam os cabelos (Is 50.6). Salvação não provém de um ato de glória e poder, e sim de dor, sofrimento e morte.
É esse o paradoxo da Sexta-feira Santa. Ela proclama outra “lei” do que aquela em voga no dia a dia. Não é tributária da “lei do mais forte”, de acordo com a qual se impõe quem for capaz de derrotar os concorrentes. A Sexta-feira Santa celebra a vitória que vem da fraqueza. Residem nisso tanto o escândalo como a promessa da cruz de Jesus Cristo. O texto previsto para a pregação neste dia vai testemunhá-lo a seu modo. Recomenda-se concentrar a atenção na mensagem específica do mesmo, evitando assim inevitáveis superficialidades.
2. Observações exegéticas
Com o trecho de Mateus 27.33-50, a paixão de Jesus encaminha-se para seu final. Fala da crucificação de Jesus, da zombaria que teve que suportar e de sua morte. Em termos gerais, Mateus segue o relato de Marcos. As poucas particularidades de seu depoimento não afetam o sentido do todo. Os evangelistas são unânimes em atribuir à morte desse condenado um significado salvífico. Em coerência com isso, a história que contam conduz à confissão do centurião humano: “Verdadeiramente este era Filho de Deus” (v. 54).
O cruel processo de crucificação (v. 33) é tão somente constatado, não descrito. A paixão de Jesus não é um filme para alimentar o prazer no horror. O testemunho permanece sóbrio. Como gesto de compaixão, costumava-se dar aos crucificados vinagre para beber. Servia como anestésico. Mas Jesus desconfia da bebida e a rejeita (v. 34). Ela está misturada com fel, no que a comunidade cristã viu o cumprimento da profecia constante do Salmo 69.21. O cinismo transforma um meio de alívio em mais outro de tortura. Também o sorteio das roupas de Jesus segue um prenúncio do Antigo Testamento (Sl 22.19). Os poucos pertences de Jesus são disputados pelos soldados. Na paixão de Jesus prevalece uma brutalidade quase animal.
Assim também na zombaria. O letreiro colocado no topo da cruz ridiculariza tanto Jesus como os judeus (v. 37). Que povo é esse que tem um crucificado por “rei” e que rei é esse que morre numa cruz? Jesus não cumpriu os anseios do povo. Se não for capaz de salvar-se a si mesmo, como poderá salvar outros? Ele disse que destruiria o santuário e reedificá-lo-ia em três dias, portou-se como filho de Deus e como exemplo inabalável de fé, mas ficou devendo a prova de suas promessas. Mateus relembra o que tem sido a acusação a Jesus, a saber, a agressão ao templo e a blasfêmia de se ter igualado a Deus (v. 39-44). Para o sinédrio, esses “crimes” foram sufi cientes para condená-lo à morte. Alguns de seus representantes até mesmo se encontram entre os espectadores da crucificação (v. 41). Já para Pilatos, bastou a pretensão messiânica desse réu. Os romanos perseguiam duramente todos os que pretendessem a realeza em Israel, ainda que fosse mera denúncia. Portanto a “culpa” de Jesus é a um só tempo “religiosa” e “política”. Jesus é acusado de ter ofendido Deus e de ter ambicionado o trono real de seu povo.
A crucificação, porém, demonstra o definitivo fracasso de Jesus. A zombaria é geral, associando-se a ela também os malfeitores crucificados com ele (v. 44). Reside aí uma diferença em relação a Lucas, de acordo com quem um dos dois ter-se-ia convertido na última hora (Lc 23.39s). As tradições divergem. De qualquer maneira, cumpre-se mais essa vez o prenúncio do Antigo Testamento. De acordo com Isaías 53.9, o justo recebe sua sepultura com os perversos. Jesus morre cercado de “pecadores”. Até mesmo Deus parece tê-lo abandonado. Jesus clama: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”. É a tradução para o original hebraico Eli, eli, lama sabactâni. Alguns dos presentes, para os quais o hebraico deve ter sido uma língua estranha, entendem mal e acham que Jesus clama por Elias. Mas o profeta não vem em socorro do moribundo, que dessa vez aceita beber o vinagre para aliviar a dor. A seguir, Jesus grita mais uma vez em voz alta e entrega o espírito.
Jesus morre na mais absoluta solidão. Toda sorte de maldade precipita-se sobre ele. Brutalidade, zombaria, traição, Jesus deve suportar a terrível face do cinismo humano. Nem mesmo seus discípulos se excluem. Fogem ou no mínimo guardam distância. “Morrem de medo.” Também o recurso a Deus parece estar bloqueado. Onde está Deus na hora da morte de seu Filho? Jesus não desespera. Isso não! Continua clamando “Deus meu”. Em sua agonia, ele não se transforma num “ateu” nem começa a amaldiçoar o “Pai que está no céu”. Mas ele sofre sob a flagrante ausência de Deus. Vê-se jogado no mais profundo abismo sem nenhuma luz na escuridão. Desse modo, torna-se solidário com todas as pessoas que sofrem, com os torturados, os desesperados, os moribundos. Jesus foi um deles. Ele morre “com” os miseráveis deste mundo. Dizia a antiga versão do Credo Apostólico que “desceu ao inferno”. Pois a cruz é o inferno.
No entanto, o total eclipse de Deus é um engano. De acordo com o testemunho dos evangelistas, há indícios da presença oculta de Deus. As trevas que cobrem a terra na hora da morte de Jesus, o terremoto que a acompanha, as rochas que se fendem, os sepulcros que se abrem, além de outros acontecimentos assombrosos, são claros sinais de teofania (v. 45.51-53). Deus reage à morte de Jesus e revela que ela não coloca o ponto final. Nesse exato momento, percebe-se o vislumbre da Páscoa. Deus não salvou Jesus da perseguição de seus inimigos. Ele salva de muito mais. Ele derrota o poder da própria morte, vencendo pecado, dor e desespero. A história da paixão de Jesus não deve ser confundida com o resgate dramático de uma vítima caída nas mãos de um bando de criminosos. Ela supera as causas de sofrimento e mal neste mundo.
3. Reflexões teológicas
O evento da Sexta-feira Santa contraria a racionalidade humana. Parece não fazer sentido. O próprio Pedro expressa isso ao tentar convencer Jesus a não subir para Jerusalém a fim de evitar o martírio do mestre (cf. Mc 8.31). Ele acha que a morte de Jesus aniquilaria todas as esperanças. E, com efeito, a palavra da cruz é loucura aos olhos do mundo. São esses os termos do apóstolo Paulo (1 Co 1.18s). Assim como antigamente, também hoje essa palavra provoca estranheza. Convém não contornar o escândalo mediante uma teoria especulativa da expiação, de acordo com a qual o sacrifício de Jesus serviu para aplacar a ira de Deus. Ela não tem amparo bíblico. Deus não precisa da morte de seu Filho para ser bondoso. Seria Deus capaz de tal monstruosidade?
Mateus e os demais evangelistas dizem outra coisa. Afirmam que o Filho de Deus se expõe à agressão humana e é torturado até a morte. E ele não se defende. Sofre a ação do pecado e não reage. Isso é assombroso. As pessoas promotoras da crucificação descarregam sua raiva, seus ressentimentos, seu ódio em Jesus de Nazaré. Ele é feito vítima, bode expiatório para as frustrações humanas. Na sorte de Jesus espelham-se a oposição a Deus, o sadismo em relação ao próximo, em suma, o pecado do ser humano. Embora a culpa na morte de Jesus seja desigual, não há quem de fato se possa eximir. Todos contribuem com a sua parcela para o sofrimento de Jesus, uns mais, outros menos, mas todos sem exceção. A história da paixão convida todo o mundo a descobrir sua cumplicidade com esses “pecadores”.
Jesus bem poderia ter mobilizado um exército em sua defesa. Mas ele renunciou ao uso da violência. Morreu “por nós” (1Co 15.3s). Assim diz um dos primeiros credos da igreja cristã (1Co 15.3s). Jesus desistiu de derramar o sangue de outros para salvar sua própria pele. Fez o contrário. Ele sacrificou sua vida para salvar outros. Preferiu tornar-se maldição (cf. Dt 21.23) a amaldiçoar seus torturadores. Jesus disse: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5.44). O crucificado exemplifica o significado dessa exigência. E é esse o jeito de Deus. Deus não mata seus inimigos, antes os perdoa. Ele salva pela fraqueza de Jesus. Também isso tem a sua lógica. Não é sem razão que Paulo apregoa a “loucura” da palavra da cruz como “sabedoria de Deus” (1Co 1.24). Certamente ela destoa do que é considerado normal neste mundo. Ainda assim, ela não é de modo algum absurda. Pois é assim que se constrói a paz.
A história da paixão de Jesus ensina que a não violência pode ser mais poderosa do que a violência. Enquanto essa não deixa de produzir novas feridas e de atiçar a espiral da vingança, a resistência passiva tem perspectivas de conduzir ao entendimento das partes. Numerosos exemplos o confirmam. Há que se admitir que isso nem sempre funciona. A repressão pode ser tão feroz, a ponto de massacrar os inocentes. A própria paixão de Jesus o comprova. Jesus foi assassinado; ele sucumbiu à violência de seus opositores. Mesmo assim, permanece verdade que violência é incapaz de reconciliar inimigos. Violência não é solução para os problemas da humanidade. Ela tão somente os agrava. Em contrapartida, o evangelho anuncia a fraqueza de Jesus, sua humildade, seu amor como salvação do mundo. Por mais paradoxal que pareça, nessa fraqueza está a força de Deus.
Mateus expressa isso de um modo particularmente interessante. Ele se abstém de comentários ou observações explicativas. Ele simplesmente conta história. Deixa falar os fatos, que são eloquentes por si. Jesus é vítima de seus agressores, sim. Acontecem coisas horripilantes. E, todavia, Jesus em parte alguma provoca a impressão de um derrotado. A fraqueza de Jesus é voluntária, conscientemente assumida, entendida como parte de sua missão. A cruz de Jesus não é um “acidente histórico”. Ela é implicação do mandato de Jesus, que consiste em libertar os cativos, em curar enfermidades e em inaugurar novidade neste mundo (Lc 4.16s). Também na paixão de Jesus está em evidência o compromisso com a vinda do reino de Deus. Esse tem no amor sua motivação última. Aliás, essa é a natureza do amor. Ele é fraco por não poder lançar mão da violência. Simultaneamente, é mais poderoso do que todos os poderes político, econômico e militar juntos. Pois somente o amor pode transformar pessoas e realidades.
4. Imagens para a prédica
Qualquer pregação na Sexta-feira Santa tem na cruz a imagem central. Pois Jesus foi crucificado. Basta esclarecer se essa cruz é símbolo de derrota ou vitória. Existem bons argumentos em favor de ambas as afirmações. E é disso que a pregação deverá tratar.
A cruz é obviamente um sinal de fracasso. Jesus não consegue salvar-se a si mesmo. Encontra-se indefeso frente à prepotência de seus algozes. Sua morte parece ser a ruína de sua missão. O que sobrou é vergonha, frustração, desengano. O próprio Deus parece ter iludido seu filho. Na hora decisiva, ficou-lhe devendo ajuda. Mesmo assim, os evangelistas falam de uma vitória. Eles não o fazem atribuindo à cruz um sentido mágico. Infelizmente, é possível abusar da cruz e transformá-la em fetiche. Ela acusa, isto sim, que Jesus não se dobrou aos horrores sofridos. A cruz dá testemunho de seu amor, mais poderoso do que o ódio de seus inimigos.
Isso significa ser desrecomendável esvaziar a Sexta-feira Santa mediante o precipitado recurso à Páscoa. Certamente essa é de fundamental importância. Reafirma palavra e ação de Jesus e mata a própria morte. Mas a vitória prende-se não somente a essa. Ela está inerente à própria paixão. Jesus venceu em duplo sentido: venceu na (!) cruz e venceu a (!) cruz. Na manhã da Páscoa, a cruz está vazia. Mesmo assim, o ressuscitado permanece sendo o crucificado. O crucifixo tem lugar permanente na igreja. A pregação poderia explorar a variedade dos aspectos da cruz na dialética de fracasso e vitória, de fraqueza e poder.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro que as partes litúrgicas do culto se inspirem no “hinário” do povo de Israel, que é o livro dos Salmos. Oferecem valioso auxílio litúrgico. Poderiam servir de “roteiro” na formulação das orações.
1 – Entre os salmos de maior relevância na Sexta-feira Santa está o Salmo 22. O assunto predominante é a terrível sensação da ausência de Deus. Por que Deus não responde às súplicas de quem a ele se dirige? Assim pergunta não somente o salmista. O grito tem incontáveis réplicas na vida das pessoas, ontem e hoje. No salmo fala uma pessoa atribulada, assim como foi Jesus na cruz.
2 – Outro salmo a lembrar é o 130. Seu tema é culpa e pecado. A tribulação é outra do que no Salmo 22. Quem fala é alguém esmagado por sua culpa. Esse salmo motivou Lutero a compor o hino “Das profundezas clamo a ti” (HPD 147). Devido à melodia nada fácil, o hino é cantado raramente nas comunidades. Mas vale a pena ser recitado, mesmo parcialmente, como confissão dos pecados.
3 – A invocação de Deus, porém, não pode permanecer presa à lamentação. Deve conduzir à glorificação de Deus. É o que está em evidência no próprio Salmo 22. O grito por socorro transforma-se em louvor e adoração (22.22s). Essa inclui gente de fora. Por isso importa interceder por pessoas que sofrem para que consigam participar da certeza de que Deus ouve o clamor de seu povo. A história da paixão de Jesus, juntamente com os recursos oriundos do Antigo Testamento, oferece abundante material para ilustrar a liturgia da comunidade cristã.
Bibliografia
BETZ, Otto. Meditation über Matthäus 27.33-49 (50-54). Karfreitag. In: Neue Calwer Predigthilfen. Fünfter Jahrgang, Band A. Stuttgart: Calwer Verlag, 1982. p. 230-237.
WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso. Uso e abuso da cruz. São Leopoldo: Ed. Sinodal/EST, 2008.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).