Uma morte (não) como todas as mortes
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: Mateus 27.33-50
Leituras: Isaías 50.4-7 e 2 Coríntios 5.(14-18) 19-21
Autoria: Werner Wiese
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 10/04/2020
1. Introdução
No último domingo terminou um período de 40 dias conhecido como Quaresma, que começa na Quarta-Feira de Cinzas e vai até o Domingo de Ramos. Desde o século 4 depois de Cristo, esse tempo de 40 dias que precedem a semana da Páscoa serve de modo particular para refletir sobre a vida, especialmente à vista da história de salvação de Deus em Jesus Cristo, de modo particular sua morte na cruz e sua ressurreição. A prédica de hoje inevitavelmente precisa focar no episódio da crucificação e morte de Jesus na cruz. Contudo, esse episódio não é claro por si só, uma vez que não foi crucificado somente Jesus; no mesmo dia foram crucificadas outras duas pessoas com ele, sem falar de incontáveis pessoas que foram crucificadas antes e depois de Jesus e que caíram no anonimato.
Portanto, para não cair na vala comum de pessoas fadadas ao anonimato, a condenação e morte de Jesus carecem de interpretação. Os dois textos para leitura adicional no culto têm a finalidade de nos ajudar na interpretação da morte de Jesus na cruz. Apesar de serem textos de épocas muito distantes e escritos para situações bastante diferentes, portam elementos que teologicamente podem ser ligados com o sofrimento e morte de Jesus. O primeiro texto (Isaías 50.4-7) faz parte dos assim denominados “cânticos do servo do Senhor” ou “servo sofredor”, registrados acima de tudo nos capítulos 40 a 55 de Isaías. Desde cedo, o sofrimento e a morte de Jesus foram identificados com elementos desses cânticos, inclusive como cumprimento desses. Já em 2 Coríntios 5.(14-18)19-21, Paulo interpreta a morte (e ressurreição, v. 15) de Cristo como sinal do agir reconciliador de Deus abrangente no mundo. Isso não legitima suavizar o sofrimento e a morte de Jesus como expressão exclusiva do amor de Deus que isenta os agentes do processo, da condenação e crucificação de Jesus de cumplicidade.
2. Notas exegéticas e teológicas
2.1 – Notas do contexto
Terminada a trama da prisão de Jesus e o processo formal – modo de dizer – para achá-lo culpado e torná-lo réu (cf. Mt 26.47 – 27.32 e os textos paralelos, incluindo o Evangelho de João), Jesus é encaminhado para a crucificação. No caminho para o local da crucificação, os agentes se depararam com um cireneu de nome Simão (Mt 27.32; cf. Mc 15.21; Lc 23.26), a quem forçaram a carregar a cruz (viga transversal) de Jesus. Isso porque Jesus estava exausto por conta das torturas infligidas a ele, ao ponto de não ter tido mais condições de carregar a cruz; ou foi um “ato de escárnio” que trata o Jesus condenado à morte como um “comandante” servido por um servo dele (GRUNDMANN, 1975, p. 557).
O texto indicado para a prédica de hoje já foi elaborado em outros números de Proclamar Libertação (PL), por exemplo: v. 38, p. 154-158; v. 21, p. 111-116. Neste, a perícope para a pregação se estende até o v. 54. Resguardadas as diferenças menores ou maiores, o conteúdo da narrativa do texto encontra-se nos quatro relatos do evangelho. A delimitação do texto para a prédica é clara: ela inicia com a menção do local da crucificação (Gólgota) e termina com a morte de Jesus circunscrita com as palavras “entregou o espírito”. Essa delimitação deveria ser respeitada por quem prega.
2.2 – Aspectos exegético-teológicos
V. 33-37 – A crucificação de Jesus. A crucificação era a mais cruel forma de execução conhecida na antiguidade. Ela foi inventada pelos persas e, por meio dos cartagineses, chegou aos romanos. Estes a aplicavam a criminosos de alta periculosidade, a escravos foragidos recapturados e a insurretos que ameaçavam a segurança do poder público. Legalmente, cidadãos romanos não podiam ser punidos com a crucificação.
Jesus foi crucificado fora da cidade, no local chamado “Gólgota” (em grego Golgotha, do hebraico Gulgolet e do aramaico Golgalta, que quer dizer “lugar da caveira” [na língua grega kraniou topos – v. 33; cf. também Mc 15.15.22; Jo 19.17]), ou simplesmente “calvário” (kranion [Lc 23.33]). A maioria entre os intérpretes entende que o nome “lugar da caveira” deriva da própria topografia do local – uma colina em formato de cabeça/crânio. Uma minoria entende que “lugar da caveira” é um indicativo de que se tratava de um lugar considerado impuro (VOIGT, 1981, p. 187). Mateus não deu essa conotação ao lugar da crucificação. No local da mesma, deram a Jesus vinho com fel para beber (v. 34). Isso talvez seja uma referência ao Salmo 69.21, onde aquele que sofre espera em vão por misericórdia, mas recebe fel e vinagre no alimento. O evangelista Marcos (15.23) fala de vinho com mirra para tornar o condenado à morte inconsciente e amenizar um pouco a dor. Jesus recusou-se a bebê-lo. O evangelista Lucas omite esse detalhe.
Os agentes da crucificação repartiram as vestes de Jesus como despojo legal pela ação bem-sucedida (cf. Sl 22.18) e assumiram a “segurança” para impedir qualquer intervenção de outras pessoas para libertá-lo da cruz (v. 35-36). A morte ocorria lentamente, às vezes só um dia ou mais depois da crucificação. Se um crucificado ainda não tivesse morrido até o final do dia, os guardas quebravam seus ossos como garantia contra qualquer libertação do crucificado (cf. Jo 19.31-34). No corpo do réu de morte afixava-se uma placa com a razão da condenação. Essa placa o condenado era obrigado a carregar do local do pronunciamento da sentença até o local da crucificação. Na cruz, ela era afixada acima da cabeça do crucificado. No caso de Jesus, na placa constava: “ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS”. Isso parece ter sido um misto de ironia de Pilatos contra os judeus, que não tinham rei, e um fundo de verdade da parte de Pilatos. Apesar de indícios da inocência de Jesus, que Pilatos reconhece (Mt 27.24; Lc 23.3-4,13ss), o fato de tê-lo condenado à morte é um indicativo claro para o que acontece com quem emite qualquer sinal messiânico: Roma não tolera quem não se submete ao seu poder absoluto e último.
V. 38-45 – O cúmulo do escárnio contra Jesus. Como se não bastassem a humilhação e o tratamento desumano já sofridos antes de ser crucificado, agora pendurado na cruz Jesus sofre o escárnio social e teológico sem igual. O fato de ser crucificado entre dois “malfeitores” (v. 38) sinaliza que Jesus também é malfeitor e é o maior deles. Sobre esse episódio, o exegeta Schlatter comentou: “A política de Pilatos exigia que se evidenciasse publicamente que nesta cruz o messianismo foi julgado […] Também nisso Pilatos deixou claro para o povo como ele (Pilatos) pensava sobre um Cristo judaico. O messianismo é motim e Jesus, por ser o Cristo, é o rei dos bandidos” (SCHLATTER, 1933, p. 781). As pessoas que passavam pelo local da crucificação transformaram o sofrimento de Jesus em espetáculo verbal da pior espécie imaginável (v. 39-40). Menear a cabeça (cf. Sl 22.7-8; cf. também Sl 44.14; 64.8) é sinal de escárnio teologicamente recheado com palavras do próprio Jesus (Mt 26.61; cf. também Jo 2.19) e com palavras ditas pelo próprio Deus a ele (cf. Mt 3.17; 17.5). Os “dignitários da religião” ou da “teocracia” (o Sinédrio), a elite do clero (principais sacerdotes), a elite teológica (escribas) e os guardiões do direito de Deus (anciãos) fazem coro com o escárnio de outras pessoas (v. 41-43). O que chama a atenção é que, enquanto Pilatos deu a Jesus o título de REI DOS JUDEUS como deboche, os dignitários da religião falam de “rei de Israel” (v. 42). O que se percebe aqui é que dois mundos diametralmente opostos pelos seus interesses – o poder de Roma (o império) e o poder de Deus (a teocracia) –, embora tenham mandamentos muito diferentes, tornam-se muito parecidos. O primeiro mandamento de Pilatos – representante do humanismo – reza: “o ser humano acima de todas as coisas” (Ecce homo – “Eis o ser humano!” – Jo 19.5). O primeiro mandamento do Sinédrio – representante da teocracia – reza: “Deus acima de todas as coisas” (Mt 26.66). Enquanto Pilatos age sem Deus, o Sinédrio age sem o ser humano. E o resultado tanto de um como de outro é o mesmo: a bestialidade que sacrifica e assassina o ser humano – no caso, Jesus, que “proclamou o reino de Deus escatológico” e questionou o mecanismo do esquema deste século – fosse ele religioso ou não (VOIGT, 1981, p. 189).
V. 45-50 – A morte de Jesus. Morte decorrente de crucificação podia demorar um dia inteiro ou mais. Porém Jesus morreu relativamente rápido depois da crucificação. O evangelista Mateus registra que da sexta à nona hora (12 às 15 horas) havia trevas sobre a terra. Isso caracterizava o Yom Jahwe ou, dia do Senhor, como juízo sobre a terra (cf. Am 8.9). Jesus mesmo foi atingido pelo juízo de Deus, o que ele expressa em palavras de oração formulada a partir do Salmo 22.1: Eli, Eli, lama sabactâni? […] Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Os dignitários da religião acabam de ter razão (v. 43): Jesus – o Filho de Deus – confiou em Deus até o fim. Porém Deus o abandonou e, consequentemente, não o quis bem. Portanto o escárnio se transformou em pura realidade. Jesus foi refutado por fatos incontestáveis e não por fake news. Os fatos na cruz colocaram em xeque as palavras do próprio Deus ditas em outras ocasiões: Este é o meu Filho amado em quem me comprazo (Mt 3.17). Agora o próprio Deus parece não ouvir aquele a quem sugeriu que fosse ouvido: […] a ele ouvi (Mt 17.5). A ironia e o escárnio parecem não ter limites. O clamor de Jesus das maiores profundezas do abandono e da solidão é usado para, uma vez por todas, dar o xeque-mate do destino selado sobre aquele que confiou em Deus (v. 43a) e agora está abandonado: Ele chama por Elias […] Deixa, vamos ver se Elias vem salvá-lo (v. 47b, 49b). Na tradição judaica, Elias é figura central do tempo messiânico que se esperava (Ml 4.5-6; Jo 1.21; Mt 17.3,11). Obviamente, Elias não viria salvar alguém que estava pendurado na cruz. Contudo, Jesus – abandonado por todos, inclusive pelo próprio Deus – não abre mão de Deus nem resigna, mas lhe entrega seu destino final, também na hora da morte: […] clamando […] com grande voz, entregou o espírito (v. 50). As pessoas crucificadas agonizavam até a vida se esvair por completo. Entretanto, Jesus morreu conscientemente: em alta voz entregou o espírito deve ser entendido “como grito de vitória” (GRUNDMANN, 1975, p. 561).
3. Reflexões para a prédica
Pregar na Sexta-Feira da Paixão e sobre textos conhecidos, como o indicado para hoje, é mais desafiador do que pode parecer à primeira vista, pois é fácil cair num senso comum. Por razões didáticas, destacamos alguns elementos que podem ser úteis:
Primeiro – Na maioria das comunidades haverá culto na Sexta-Feira da Paixão. Em outras o culto acontece na Quinta-Feira da Paixão. E em algumas comunidades há culto tanto na quinta como na sexta-feira. Neste caso, provavelmente são pouquíssimas as pessoas que frequentarão os dois cultos. Isso, contudo, não significa que pregadores e pregadoras precisem preparar uma só prédica de um mesmo texto. Aliás, o calendário eclesiástico propõe dois textos diferentes para a prédica de cada um desses dias.
Segundo – É provável que na Sexta-Feira da Paixão haverá pessoas no culto que não necessariamente são frequentadoras assíduas dos cultos ao longo do ano eclesiástico, mas, por alguma razão, vêm ao culto nesse dia. Não cabe a anunciantes da palavra nesse dia “adivinhar e dedar” possíveis motivos que trazem pessoas ao culto só nesse dia, mas cabe-lhes proclamar a palavra de Deus, da qual se espera que seja diferente de todas as palavras – também daquelas que a mídia disponibiliza.
Terceiro – Na maioria das comunidades certamente haverá celebração da Santa Ceia; isso se dá por origem da própria Ceia do Senhor. Por isso anunciantes da palavra precisam definir como vão relacionar prédica a partir do texto previsto e a Ceia do Senhor, para não causar a impressão de que o culto é dividido em momentos distintos e desconexos.
Quarto – Embora cada prédica deva ser bem e conscientemente preparada, a prédica para o dia de hoje requer atenção e esmero “redobrado”, não só pelas circunstâncias já mencionadas, mas mais ainda pelo teor do texto. Ele é destoante e desnorteador. O texto frustra expectativas humanas alimentadas de longa data. Vale lembrar que seis dias antes da Sexta-Feira da Paixão Jesus tinha entrado em Jerusalém sob aclamação pública de ser “rei” em Israel. Essas expectativas foram frustradas. Expectativas não só de pessoas que oportunamente tinham algum interesse em Jesus, talvez até meio escuso, ou que foram usadas como massa de manobra, mas também e em primeiro lugar as expectativas daquelas pessoas que estavam próximas de Jesus o tempo todo. Aliás, para o próprio Jesus a Sexta–Feira da Paixão transformou-se na mais dura tentação: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? É verdade, os fatos incontestáveis daquele dia não são a última realidade de Jesus e sobre ele – a ressurreição é proclamada dois dias depois. Mas justamente aqui está a questão: o evangelista Mateus não transforma o episódio da Sexta-Feira da Paixão numa “teologia da cruz” elaborada, que explicasse esse episódio como algo óbvio, cujo fim feliz é apenas uma questão de poucos dias. Consequentemente, quem prega a partir do texto para hoje faz bem de não transformar o teor da prédica em uma espiritualização rasa que ignora a dureza dos fatos e do sofrimento, em primeiro lugar do próprio Jesus, mas também a provação das muitas pessoas na comunidade de fé que confiam em Deus e, apesar disso, talvez exatamente por causa disso, clamam em voz alta ou afonicamente: Deus meu, Deus meu, por que…? É preciso primeiro saber quem é que aqui morre na cruz para só depois dizer por que e para que se morre aqui.
4. Subsídios litúrgicos
Neste ponto pode-se recorrer a ótimo material elaborado e disponível em livros de culto, que ajudam na preparação dos elementos litúrgicos específicos para esse culto especial para a comunidade de fé.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Sexta-feira da Paixão – Mateus 27.33-50. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2013. v. 38, p. 154-158.
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Matthäus. In: FASCHER, Erich (ed.). Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1975.
SCHLATTER, Adolf. Der Evangelist Matthäus. 2. Auflage. Stuttgart: Calwer Vereinsbuchhandlung, 1933. p. 781
VOIGT, Gottfried. Die bessere Gerechtigkeit. Homiletische Auslegung der Predigttexte der Reihe V. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1981. p. 187-193.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).