Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Mateus 28.1-10
Leituras: Jeremias 31.1-6 e Colossenses 3.1-4
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 16/04/2017
1. Introdução
Poderia alguém afirmar que a Páscoa é o lado glorioso da salvação de Deus. Que o Natal tem lá suas glórias com a luminosidade da estrela e dos anjos, mas ganha logo a contraposição de uma espécie de opção preferencial pelos pobres pastores do campo. Tem a gloriosa visita dos reis do Oriente, que passam pelo palácio e trazem ouro como presente, mas ganha logo a explicitação do terrível plano do rei contra o recém-nascido. Segundo esse jeito de pensar, a Páscoa seria finalmente a vitória definitiva de Deus. A ressurreição triunfal de Cristo sepultaria todas as experiências de cruz deste mundo, do qual Deus, em sua glória celestial, resgataria seu povo. Não. Não é isso que os textos bíblicos previstos para a celebração da Páscoa de 2017 anunciam.
Páscoa não é para quem se sente ou quer se sentir na glória. Em Jeremias 31.2, lemos que “o povo que se livrou da espada logrou graça no deserto”. A graça lograda não é no céu. O milagre da Páscoa logra graça no deserto. É como o canto de Paulo e Silas enquanto estavam na prisão torturante (At 16) e não depois que saíram dela. A Páscoa é um futuro certo que atua no presente incerto. A Carta aos Colossenses, no outro texto previsto para a leitura, confirma essa linha de reflexão. Paulo diz: “Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra” (3.2). Essa orientação faz sentido se o pensar nas coisas de lá atua sobre o pensar nas coisas de cá. Se Paulo alerta os colossenses a não pensar nas coisas aqui da terra, é porque as coisas da terra existem e ameaçam tornar-se bússola que conduz ao abismo. A Páscoa não é, pois, fuga da cruz. Ela é a inexplicável força presente no processo de sua superação. E o processo de sua superação dá-se, obviamente, quando ela ainda não está superada. Se ela é essa força agora, quanto mais após! Não há comparação com a glória a ser revelada, diz Paulo em Romanos 8.18.
O Evangelho de Mateus 28.1-10 é uma obra de arte que explica a ligação entre a cruz com o crucificado sobre a mesa do altar e a grande cruz vazia iluminada na parede dos fundos da igreja, atrás do altar.
2. Exegese
V. 1a – Quando o sábado tinha passado, ao chegar o primeiro dia da semana. De acordo com a tradição judaica, o sábado termina ao pôr do sol, véspera de domingo para nós. Se as Marias esperaram o sábado passar, porque a lei lhes proibia a ação pretendida no dia do descanso, então deveriam ter ido ao túmulo ao anoitecer e não ao amanhecer. É assim que compreende, por exemplo, a versão popular do Novo Testamento Dios Habla Hoy das Sociedades Bíblicas Unidas. A palavra grega para falar do momento em que a ação acontece é ἐπιφωσκούσῃ – epifōscusē. Descreve o momento em que os raios de claridade se misturam com as trevas. As mulheres chegam ao túmulo quando há simultaneamente raios de luz e trevas. Com a fé cristã rima, porém, a vitória da luz sobre as trevas: é domingo, dia do Senhor.
V. 1b – Vieram Maria Madalena e a outra Maria para verificar o túmulo. Podemos tematizar os dois verbos da frase.
1) As Marias foram ou vieram ao túmulo? Almeida diz que foram, e Lutero diz que vieram. A NTLH também usa o ponto de vista de outro ponto, não o do túmulo. O mesmo verbo é usado em Mateus 8.28 para mencionar os dois sujeitos endemoninhados que vieram ao encontro de Jesus, vindo dos túmulos. De novo a NTLH diz que eles foram ao encontro de Jesus. Diz, porém, que vinham do cemitério. Almeida prefere vieram-lhe ao encontro saindo dentre os sepulcros. Adotar uma perspectiva que protagoniza o Cristo, mesmo estando ele morto e sepultado, torna-se teologicamente significativo. Adotemos o ponto de vista (Standpunkt) do anjo: as mulheres não foram, mas vieram ao túmulo.
2) O segundo diz o que elas vieram fazer no túmulo. Falar em visitar (NTLH) cria a imagem do Dia dos Finados de hoje. O verbo grego não permite, em todos os casos, pensar num tipo de “andar à toa”. Diz-se que θεωρῆσαι – teōrēzai é usada para “expressar propósito” (Chave Linguística de F. Rienecker e C. Rogers). Prefiro, portanto, dizer que as mulheres vieram verificar o túmulo.
V. 2 – E eis que houve um grande tremor de terra, pois o anjo do Senhor desceu do céu, chegou, revolveu a pedra e sentou-se nela. O tremor acontece porque o anjo desceu do céu e revolveu a pedra. Ele, porém, não instaura com isso o caos. O gesto de sentar-se sobre a pedra mostra domínio perfeito da situação, assim como Jesus tinha o domínio perfeito da situação quando acalmou a tempestade no mar. O anjo sentado na pedra (Mt 28.2) e Jesus na popa, dormindo no travesseiro (Mc 4.38), indica o mesmo: domínio da situação catastrófica e caótica. As palavras σεισμὸς μέγας – seismos megas, são as mesmas aqui em Mateus 28.2 e lá em Mateus 8.24.
V. 3 – Sua feição era a do relâmpago e sua vestimenta branca como a neve. O tema é a percepção que se tem da presença do anjo. A palavra grega para falar disso (εἰδέα = eidea) é a mesma no texto que fala do que se percebeu quando Jesus foi batizado (Lc 3.22) e também no momento de sua transfiguração (Lc 9.29). Importa aqui o registro de uma coerência de relatos dessas percepções, o que as distingue do fenômeno humano de enxergar vultos e ouvir vozes, cujas causas podem ser surto psicótico ou infecções graves. Penso que devemos entender os relatos de experiências deslumbrantes com o sagrado como um fazer teologia na certeza da presença de Deus. A função da frase aqui não é pouca coisa: é transformar uma percepção de morte em percepção de vida. Há uma infinita distância entre a palidez de um corpo morto a reclamar a verificação das mulheres e a percepção que tiveram do anjo presença de Deus.
V. 4 – Os guardas ficaram pálidos diante dele, paralisados de medo, como mortos. Almeida diz que os guardas “tremeram espavoridos”. Parece uma expressão mais próxima do original do que simplesmente dizer que “tremeram de medo”, como faz a versão da NTLH. A situação era mais grave do que tremer de medo. Por isso falar em pavor parece mais próximo. A questão é, porém, perceber a oposição entre o semblante do anjo e o semblante dos guardas. A distância entre o branco da neve e o branco da palidez é a distância entre a vida e a morte. O rosto de cera que as mulheres esperavam verificar no corpo do túmulo pulou para a cara corada dos guardas fortões.
V. 5 – Mas o anjo, reagindo nessa situação, disse às mulheres: Não tenham medo; porque sei que estão procurando Jesus, que foi crucificado. O anjo, que na cena representa o oposto da morte, orienta as mulheres no sentido de não ser como os guardas, que na cena representam o oposto da vida. Podemos traduzir que o anjo reagiu na situação porque a palavra usada (ἀποκριθεὶς = apokritheis) tem a ver com resposta. Como não há pergunta, mas uma situação na qual o anjo toma a palavra, podemos entender a sua fala como uma reação naquela situação criada pela mistura dos “ingredientes”: guardas desmaiados, mulheres perplexas, túmulo vazio e o anjo em pessoa resplandecente.
V. 6 – Ele não está aqui: ressuscitou, como tinha dito. Venham ver o lugar onde tinha sido deitado. O jogo de tempos verbais impressiona neste versículo. É um fazer teológico interessante. As afirmações são categóricas: “Ele não está aqui”: não há a mínima chance de encontrar Jesus entre os mortos. “Já ressuscitou”: embora nenhum morto possa ressuscitar, mas ser ressuscitado, aqui se opta pela forma ativa do verbo. É o protagonismo do Cristo. “Como tinha dito”: não há motivo para dúvidas ou espanto. Quem viveu o processo desde o princípio já sabia. “Venham ver”: é um imperativo. Faz parte ver o lugar onde o corpo estava. O ir ver é uma ordem do anjo (ἴδετε – idete). “Onde tinha sido colocado”: (ἔκειτο – ekeito). João 20.5-6 descreve com mais detalhes esse lugar. É como se existisse uma tradição a respeito do lugar do não. Não há como encontrar Jesus entre os mortos.
V. 7 – E vão já, anunciem aos discípulos que ele ressuscitou dos mortos e vai na frente de vocês para a Galileia, onde vocês poderão vê-lo. É isso, está dito. As mulheres não poderiam ter imaginado antes o tamanho daquela missão de ir verificar o túmulo. O texto bíblico dá plasticidade ao relato, criando a cena de uma espécie de momento pedagógico durante o qual a força dos guardas causadores de morte empalidece e a força de vida anunciada pelo anjo resplandece. Essa fabulosa inversão, que mata o matador e revive o anunciador de vida eterna, traz embutida a missão de ir e anunciar. A verificação das mulheres tem agora a direção invertida. A ordem é ir já e verificar Jesus longe do túmulo.
V. 8 – E saíram já do túmulo, com medo e grande alegria, e foram correndo para anunciá-lo aos discípulos. A ordem de ir já é sucedida pelo saíram já do túmulo. A missão é assumida imediatamente, como que não havendo espaço para dúvidas e perguntas. Não se nega, porém, a existência do que poderia ser visto como oposição: a simultânea existência do medo e da alegria. Pode-se entendê-lo como reflexo da situação anterior do empalidecer e do resplandecer. Também podemos considerar a proximidade da alegria com a graça. A χαρᾶς μεγάλης (charas megalēs = grande alegria) é quem torna a missão possível no contexto do φόβου (fóbu = medo).
V. 9 – E eis que Jesus veio ao encontro delas e disse: Graça a vocês! E elas foram a ele, abaixaram-se até o chão, abraçaram seus pés e o adoraram. Assumida pelas mulheres a missão de verificar o Cristo longe do túmulo, nessa inversão fabulosa de direção, a realidade ele não está aqui também se inverteu e Jesus passa a estar aqui. Elas agora podem cair a seus pés e adorá-lo.
V. 10 – Então Jesus disse a elas: Não tenham medo! Vão e digam aos meus irmãos para eles irem até a Galileia, lá eles me verão. A graça agora vence definitivamente o medo. As mulheres passam a fazer com os irmãos de Jesus o que o anjo fez com elas. Assim, a fé na ressurreição é portadora do evangelho até os confins da terra (At 1.8).
3. Meditação
A ressurreição é um tema da fé cristã. O bom período estabelecido pela igreja para celebrar, proclamar e ensinar esse tema mostra sua centralidade. Os cinquenta dias que seguem a Páscoa formavam, para a igreja dos primeiros séculos, um período propício para arraigar no coração dos neófitos e das neófitas a verdade da ressurreição. O fato de se tratar de um assunto de fé não permite, porém, um descuido com a boa articulação racional do tema. Mateus 28.1-10 é prova disso.
A aurora de um novo tempo inicia com o raiar de um novo dia, ligado diretamente, sem o intervalo da noite escura, ao fim do sétimo dia de descanso. “O sol fulgente, resplandecente, com luz brilhante e confortante nos revigora, nos dá seu calor”, diz o hino 271 do HPD 1. A ressurreição é como o sol que vem. Não dá para parar. É proclamação, não conjetura.
A causa perdida (assim), o Senhor morto, continua com um protagonismo às avessas. As mulheres vêm ao túmulo com seu gesto sem sentido (assim) de verificação do que já está verificado. Lá no túmulo, aliás, aqui no túmulo, dá-se o discernimento entre o que verdadeiramente é morte e vida. A poderosa força destruidora representada pelos guardas fica com cara de cera, empalidecida como a morte, diante do resplendor daquilo que era para ser o fim fúnebre. Como o próprio Jesus, dormindo no travesseiro, na popa do barco que afundava, o anjo senta na pedra irremovível agora removida após a tempestade do grande tremor.
Como Jesus lá no barco, o anjo aqui reordena o caos. “Ele não está aqui” substitui “ele tinha sido colocado aqui”. Como contraposição ao “estar deitado”, o anúncio é: “Ele levantou!” Decorrentes disso são os imperativos: “venham ver”, “vão já”, “anunciem”.
4. Imagens para a prédica
– I –
Passamos aquela noite em claro. Fizemos a fogueira às 20h e dali em dian- te, a cada hora par, reunimo-nos para a oração, às 22h, 24h, 02h, 04h e 06h. Às 07h, recepcionamos a comunidade para a Alvorada Pascal. A grande mesa na frente do altar foi sendo posta com comes e bebes que as pessoas iam trazendo para o café da manhã na igreja. Iniciado o culto com a comunidade, cantando diversos refrões de Aleluia, o grupo de jovens apresentou cenas da ressurreição de nosso Senhor.
A tentativa de encenar a ressurreição inclui o desafio de representar o que é extraordinário, como tremor de terra, relâmpagos, aparições de anjo e do próprio Jesus ressurreto. Essa manifestação do surpreendente provoca manifestações no mundo ordinário, causando desmaios, medo, dúvida e alegria. Diferentemente dos “teatros de Natal”, que incluem quase sempre grandes textos a serem recitados de cor, resolvemos fazer o “teatro de Páscoa” com palavras próprias, como se estivéssemos contando trechos que nos chamaram a atenção na leitura das quatro histórias de ressurreição que lemos nos evangelhos.
Valquíria e Viviani resolveram criar uma cena a partir do perfume: andavam pela rua conversando sobre o que lhes restava daquela amizade vivida com Jesus. Concluíram que nada mais podiam fazer a não ser comprar óleos e perfumes e embalsamar o corpo do amigo que estava posto lá no túmulo. Em nossa encenação, a porta da sacristia tinha sido transformada em entrada de túmulo. Com esse intento vinha agora a preocupação com a grande pedra fechando a entrada do túmulo, e as meninas dirigiram-se para lá. Moisés, um rapaz que não gosta de falar em público, dispôs-se a representar a grande pedra na entrada do túmulo. Ele segurava um enorme quadro encapado com papel pardo, escondendo-se atrás dele. Os fortões Marco Antônio e Lázaro resolveram representar os guardas que desmaiam, e a Camila, como no Natal, vestiu sua roupa de anjo novamente. Mateus e Josué resolveram representar os discípulos que receberam a notícia do túmulo vazio, notícia trazida pelas apavoradas Valquíria e Viviani. É claro, os homens não acreditaram na conversa das mulheres e foram conferir para eles mesmos constatarem a verdade. Finalmente, todos se reuniram para falar da novidade diante do altar, quando aparece Rafael, representando o ressurreto e dizendo: “Como vocês custam a acreditar no que dizem as Escrituras, que o Filho do Homem seria morto e ressuscitaria”. Todos gritam “Cristo vive!” e, de mãos dadas, desejam “Feliz Páscoa!” à comunidade, que rompe em palmas.
– II –
Mostrar e falar a partir de uma cruz com o crucificado e uma outra cruz vazia.
5. Subsídios litúrgicos
HPD 1 – 271.
Bibliografia
GORGULHO, Frei Gilberto; ANDERSEN, Ana Flora. A Justiça dos Pobres, Mateus. São Paulo: Paulinas, 1981. 259 p.
SCHIRLITZ-EGER. Griech.-Deutsch Wörterbuch zum Neuen Testament. 6. Aufl. Giessen: Emil Roth.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).