Mateus e o discipulado precioso: adoração, dúvida e ortopráxis
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: Mateus 28.16-20
Leituras: Salmo 93 e Atos 1.1-11
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 05/05/2016
1. Introdução
A crise que vivemos na igreja cristã dos nossos dias vem de longe. Talvez, sendo honestos conosco mesmos e com a história cristã, crise na igreja de Cristo é uma experiência permanente, contínua, não nos deixa sossegar, não nos permite cochilar ou “entrar em férias”. E isso porque não somos o que queremos e dizemos ser. Vivemos divididos entre uma vida fiel e de adoração ao Jesus que é nosso Mestre e Senhor e a traição ao seguimento, a dúvida atroz que nos tenta atrás de cada desculpa para nos isentar do discipulado, da caminhada missionária que nos poderia levar aos vizinhos, aos mais empobrecidos dos nossos semelhantes ou até aos confins da terra. Uma igreja cristã que se imagina pronta, bem-sucedida e farta de bens e frutos provavelmente já começou a negar o caminho de Jesus e a prática da justiça ao evitar a cruz e o arrependimento diário e libertador, a volta ao primeiro amor, quer dizer, a busca pelo reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33), já aqui neste mundo pleno de possibilidades, mas também carregado de injustiças, frustrações, ilusões, fragilidades, violência e morte anunciadas e, muitas vezes, negadas.
Nesse contexto difícil e desafiador, é muito oportuno que a série de perícopes para a pregação nos brinde outra vez com a chance de retomar esse verdadeiro “testamento de Jesus” que o evangelista Mateus deu-nos a conhecer de uma forma extraordinária e única. A oportunidade também pode ajudar a desfazer certas interpretações equivocadas dessa perícope – eminentemente missionária – e a procurar por novas interpretações mais justas para com o autor e desafiadoras para a comunidade que se dispõe a ouvir essas palavras e pô-las em prática.
Esta perícope já foi trabalhada anteriormente por vários colegas. No PL 10 (1984), pelo colega P. Günter A. Wolff; no PL 30, texto do P. em. Wilfrid Buchweitz; no PL 34, pela colega Pa. Scheila dos Santos Dreher; e no PL 35, quem escreve é o colega P. Antonio Carlos Ribeiro. A quem puder, sugiro que consulte esses textos, cada qual com uma perspectiva própria de interpretação, que aponta para dimensões particulares do texto.
2. Detalhes exegéticos
David J. Bosch, teólogo reformado da África do Sul, legou-nos um livro que vem se tornando clássico no estudo da missão da igreja na perspectiva da missão de Deus. Trata-se de Missão transformadora, traduzido e publicado pela Editora Sinodal em 2002, já com várias reedições. Uma das contribuições mais importantes de Bosch é sua fundamentação bíblica. Ele escreve 200 páginas para nos aproximar da caminhada missionária de Jesus, que dá origem à missão cristã. Ele reconstrói alguns dos modelos neotestamentários de missão e apresenta três paradigmas que remontam à igreja do primeiro século: Mateus, Lucas (evangelho e Atos) e Paulo. Aqui vou me valer especificamente de sua acurada releitura da teologia missionária de Mateus e, especialmente, de sua instigante interpretação do texto que vamos estudar e cuja mensagem queremos anunciar ao povo das comunidades.
Para começar, sugiro que não se fale aquele subtítulo que praticamente encontramos em todas as diferentes traduções da Bíblia, isto é, a “Grande comissão”. Justamente pela importância desse trecho final do Evangelho de Mateus, é triste como na história da missão cristã, pelo menos no âmbito do protestantismo, se utilizaram mal essas palavras de Jesus, isolando-as do seu contexto maior, que é o próprio evangelho do qual elas são como que um clímax, um verdadeiro resumo. É um equívoco ler esse texto e interpretá-lo como se fosse uma “teoria da missão” com passos claros e insofismáveis de como “fazer missão” e angariar novos membros para a nossa igreja.
Bosch alerta para o que segue. Várias pesquisadores e teólogas que estudaram Mateus são unânimes em alguns reconhecimentos: a perícope de Mateus 28.16ss seria algo como o “manifesto”, o “sumário” ou a “culminação” que coroa o evangelho. Mas isso não signifi ca que se utilize a “grande comissão” como base bíblica – por vezes exclusiva – para a missão cristã, como mero slogan de uma teologia de missão que já está pronta, antes mesmo de reler e compreender o Evangelho de Mateus.
Mateus é membro de uma comunidade cristã possivelmente situada na Síria (4.24), de tradição judaica, mas que vive uma forte crise entre a fidelidade à tradição judaica da Lei e a abertura para os gentios aos quais o evangelho foi anunciado e que o receberam “no poder do Espírito”. Seguramente o evangelho foi escrito no final da década de 80 d.C, pois algumas passagens só se entendem considerando que Jerusalém já foi destruída pelos romanos (em 70 d.C) e os fariseus já assumiram a direção da sinagoga e endureceram sua rejeição aos seguidores e seguidoras de Jesus. É uma comunidade que vive uma crise de identidade: pode ela continuar como um movimento dentro do judaísmo e apegar-se à Lei? Pode desistir de encarar Jesus como mais do que um profeta, quer dizer, reafirmar que, além de Mestre, ele é o Senhor? Pode desistir da missão aos demais judeus? E de uma missão que vai adiante e se estende ao mundo e “às nações”? Mateus é o mais judaico dos evangelhos (Mateus 15.24), mas bem aí se revela também como quem desafia a superar esses particularismos, quando faz o elogio à fé da mulher cananeia (15.24). Jesus é para os judeus, sim, mas também para as nações. Por isso Jesus em Mateus faz outros elogios à fé dos gentios, começando com os magos do Oriente que visitam o menino recém-nascido, o centurião romano e os soldados na crucificação e a inversão que encontramos no discurso escatológico de Mateus 25. Ocorre, porém, que o Jesus terreno só se torna Senhor para a humanidade depois da morte na cruz, não antes. E isso está bem presente nessa perícope. A autoridade que Jesus recebe e da qual está revestido é a autoridade do crucificado. Chama a atenção que é o mesmo Jesus conhecido e amado que aparece aos discípulos e discípulas no monte (o outro lado da tentação que lemos no cap. 4) na “Galileia dos gentios”, portanto fora do lugar do poder judaico e romano. Chamo a atenção que o envio aqui se dá baseado nessa autoridade, que não se assemelha à autoridade dos “que governam este mundo”. “Não é assim entre vós” (20.26). A autoridade de Jesus é a de quem serve e dá a vida pelos seus. E essa autoridade só é reconhecida quando se caminha com o Jesus que está presente entre os seus amigos e amigas que se dispõem a batizar, ensinar e guardar os seus ensinamentos, “tudo aquilo que vos tenho ordenado” (28.20). É interessante observar que em Mateus não encontramos o relato da ascensão nem a descida do Espírito, tampouco a ordem de perdoar pecados. Por quê? Parece claro que para Mateus todas essas questões estão implícitas na abertura da comunidade para seguir adiante (aliás, como afirmam os varões na leitura de Atos 1). É na caminhada missionária que a comunidade experimentará a força que vem do Jesus que está presente – para sempre – com aquelas e aqueles que o ouvem e seguem sem medo ou dúvida. E, mesmo assim, na comunidade há quem duvide e se sinta inseguro e com pequena fé (28.17).
Considerando a realidade comunitária, em que dois grupos vivem em conflito de interpretações, é importante que Mateus inclua entre os crentes os que duvidam e fraquejam. Também esses fazem parte e são admoestados a engajar-se na missão. E possivelmente será no encontro com os diferentes que a fé se reanimará, quando os frutos da justiça começarem a iluminar o caminho.
Uma possível tradução do verbo ir no v. 19 poderia ser na forma do gerúndio: Em indo no caminho, então, “fazei discípulos de todas as nações”, batizando “em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo”, ensinando “a guardar todas as cousas que vos tenho ordenado”. Esse envio ou mandato não é uma simples ordem marcial que se deve obedecer cegamente e quase militarmente. Com Jesus, esse mandato ganha outra cor e realidade. Ele agora, como Ressurreto, dirige-se não mais exclusivamente “às ovelhas perdidas da casa de Israel”, mas a toda a humanidade. É uma mensagem inclusiva e que transcende as barreiras étnicas, de classe, de sexo ou religião. Aliás, o chamamento não é para seguir uma nova religião, mas para caminhar em direção ao reino de Deus e sua justiça (6.33). Trata-se, para Mateus, de uma compreensão vivencial, pastoral e missionária da fé em Jesus. Essa fé atualiza-se na vida do dia a dia, na caminhada que convida, que desafia, que congrega, que assume compromissos com a vida da outra pessoa, do outro povo, pelo qual também Jesus morreu e ressuscitou. Bosch chama a atenção para um detalhe: em Mateus, Jesus “proclama” para os de fora, para as multidões quando lhes anuncia “o evangelho do reino”. Mas junto a seu grupo de discípulas e discípulos ele sempre “ensina”. E seu ensino não é como o dos escribas e fariseus. Pois ele o faz com “autoridade”, no sentido acima esboçado. Sua autoridade está baseada em suas obras: Jesus cura, perdoa, salva, liberta. E isso o diferencia em última instância. Mais ainda: faz parte desse ensino o envio. Jesus confia nas pessoas que chama e congrega em torno de seu evangelho (de sua Palavra). Por isso a missão será sempre missão de Deus, pois é pela presença atual de Jesus entre nós, como o Emanuel (1.23), como aquele que “está conosco todos os dias”, que saberemos levar adiante a sua mensagem e a sua missão.
O tema do discipulado é central em Mateus. Nessa perícope, ele ganha toda relevância outra vez e definitivamente. Fazer discípulos como tarefa da comunidade crente, dos seguidores e seguidoras de Jesus, é dar continuidade à obra dele. A “igreja” é a continuação da caminhada de Jesus. Essa é a sua glória e a sua cruz. E igreja aqui não deveria ser simplesmente compreendida nos termos de nossas instituições e denominações atuais, mas como aquela comunidade que ouve a palavra de Jesus, coloca-a em prática e aprende – a cada momento – o que seja viver da fé e do amor, da fé que crê e do amor que põe em prática a justiça que liberta e a misericórdia que cura e restaura vida, corpo e alma.
3. Meditando rumo à pregação
Numa comunidade que vive crise de identidade, o Evangelho de Mateus abre novas possibilidades para rever a caminhada, para reconhecer os pecados, as resistências, a dureza do coração, de tal modo que as pessoas de fé reaprendam o que significa tornar-se, na caminhada, gente bem-aventurada (Mateus 5). A bem–aventurança não é para deleite pessoal, mas se dá justamente no sofrimento, na humildade, na luta e sede por justiça e paz. Não por último, também na calúnia e na perseguição. É a esses e essas que o reino de Deus é oferecido. São essas pessoas que o integram, que o vivenciam e desfrutam, não como troféu, mas antes como sinal de que o reino de Deus vem e já está chegando para transformar o mundo e a vida mesquinha em que nos enredamos.
Envolver-se na missão de Jesus é algo extraordinário e desafiador. Renova a vida de qualquer comunidade e faz dela uma casa de acolhimento, um povo disposto a servir e a comunicar o “ensino que liberta”. Um povo que aprende a caminhar junto e ao mesmo tempo chamar outras e outros. Essa experiência é como sentir-se partícipe de um evento escatológico, um aperitivo daquele banquete para o qual Deus convida todas as pessoas, especialmente as que mais sofrem, as mais pobres e vulneráveis, as mais injustiçadas. O que sustenta a caminhada é a presença do Jesus ressurreto entre seus missionários e missionárias. E esse Jesus não é um monarca celestial, mas aquele mesmo que viveu “entre aldeias e cidades”, de carne e osso, que morreu por nossos pecados e ressuscitou e vai adiante de nós nas Galileias deste mundo e que agora – pelo seu Espírito – habita em meio a seu povo como força, poder e garantia dos “novos céus e nova terra”.
Vivemos essa fé e esse chamamento entre contradições e renovação, entre adoração e dúvida. A práxis do amor e do perdão, a ortopráxis da justiça, da compaixão e da misericórdia são alento e desafio para cada pessoa e para a comunidade dos amigos e amigas de Jesus, daqueles e daquelas que experimentaram a força da oração de Jesus: “Pai nosso …”.
Dois pensamentos para concluir. O primeiro vem de David J. Bosch. Ele escreveu que, a partir da leitura desse evangelho, as pessoas cristãs encontram sua verdadeira identidade quando se envolvem na missão, em comunicar a outros um novo modelo de vida, uma nova interpretação da realidade de Deus e em comprometer-se com a libertação e salvação de outras. Uma comunidade missionária é aquela que se entende como sendo diferente de seu ambiente e, ao mesmo tempo, como estando comprometida com ele; ela existe dentro de seu contexto de uma maneira que é tanto cativante quanto contestadora (p. 112).
Sobre a compreensão do que venha a ser “igreja cristã”, vale recordar o que escreveu Vítor Westhelle sobre a imbricação íntima entre missão e igreja. Igreja, afirma ele, não é nem o sujeito e nem o objeto da missão, mas é o seu meio, o espaço libertado em que se celebra a presença de Deus ao lado inverso do mundo. Não é o lugar em que nasce, mas apenas aquele em que ressoa o anúncio. Nesse sentido, poder-se-ia dizer também que é na experiência missionária que nos fortalecemos, tornando-nos para nós mesmos e para outras pessoas e grupos uma “parteira da esperança”, uma comunidade que acolhe, aponta caminhos, experimenta um poder transformador, que significa algo diferente e novo neste mundo sempre mais competitivo, desigual, injusto e cruel para com os retardatários, as pessoas que sofrem com alguma deficiência e que, precisamente por isso, mereceriam maior atenção, cuidado, numa palavra: amor.
4. Sobre as leituras
Salmo 93
Trata-se de um louvor à majestade e ao poder criador do Senhor que fez o céu e a terra. Ele firmou o mundo desde o início, e por isso o universo não vacila. O salmista percebe essa majestade na força da natureza, mas também na fidelidade eterna de Deus para com seu povo. É essa fidelidade que se proclama santa, que revela o que vem a ser santidade, para além de conceitos morais ou éticos, simplesmente.
Atos 1.1-11
Texto conhecido e que compõe bem com o texto do Evangelho de Mateus o desafio para a ação missionária. Trata-se de falar das coisas referentes “ao reino de Deus”, ó Teófilo, como escreve Lucas. Na missão cristã, a comunidade que vive, celebra e divulga a sua fé fá-lo como serviço ao “reino de Deus”. É para isso que existe igreja, comunidade de crentes. E esse ministério – em grego, diaconia – só se consegue exercer sob o batismo do Espírito Santo, graça a nós concedida quando somos batizados e incorporados na comunidade de fé, graça que se renova a cada dia, quando, como escreveu Lutero, afogamos a nossa velha natureza e nos revestimos da nova que temos em Cristo, no Espírito de Cristo. E o Espírito nos é dado para que sejamos “testemunhas” aqui e em todos os lugares, se possível até “aos confins da terra”. Não fiquemos olhando para o céu, onde Jesus fica envolto no mistério divino, mas fixemos nosso olhar para esta humanidade com quem vivemos e sofremos e a quem somos enviados como rostos de Cristo, como colaboradores e colaboradoras do Pai.
Sugestão de hinos
HPD 2 – 336; OPC – 264; OPC – 252; HPD 1 – 158 (credo atualizado).
Bibliografia
BOSCH, David J. Missão transformadora. Mudanças de paradigma na teologia da missão. Trad. Geraldo Korndörfer e Luís Marcos Sander. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2002.
GORGULHO, Gilberto E.; ANDERSON, Ana Flora. A justiça dos pobres. Mateus. São Paulo: Paulinas, 1981.
WESTHELLE, Vítor. Missão e poder. O Deus abscôndito e os poderes insurgentes. Estudos Teológicos, ano 31, n. 2, p. 181-192, 1991.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).