Ascensão da ressurreição no cotidiano da vida
Proclamar Libertação – Volume: XLVI
Prédica: Mateus 28.16-20
Leituras: 2 Reis 2.9-18 e Apocalipse 1.4-8
Autoria: Júlio Cézar Adam
Data Litúrgica: Ascensão do Senhor
Data da Pregação: 26/05/2022
1. Introdução
A festa da Ascensão faz parte do tempo pascal no calendário litúrgico da igreja. Ela é uma das festas mais antigas da igreja, tendo seu início documentado no séc. IV. A Ascensão é celebrada 40 dias após a Páscoa, realçando o caráter simbólico da unidade temporal 40, presente em toda a Bíblia. 40 dias ou anos é na tradição bíblica o tempo oportuno para que algo importante amadureça e culmine. Não é diferente com a Ascensão. Mais do que um relato extraordinário da subida de Cristo aos céus, a Ascensão quer marcar a experiência da ressurreição na vida da comunidade e dizer que o Cristo ressuscitado continua presente na vida das pessoas e das comunidades até o fim do tempo. Então Ascensão é uma forma de realçar, de criar aderência da mensagem da ressurreição.
Nos textos paralelos, temos relatos que irão reforçar a mensagem. Em 2 Reis 2.9-18 é relatada a elevação de Elias ao céu e a transferência dos poderes de seu espírito a Eliseu. Eliseu vê a ascensão de Elias e recebe, por isso, o espírito de Elias para seguir como profeta. Aqui, da mesma forma que na ascensão de Cristo, a atenção não precisa estar no evento extraordinário da elevação, mas na transferência do espírito. A ressurreição de Cristo exalta e põe em evidência toda a sua obra. E a ascensão é a transferência dessa experiência para a comunidade, para que ela possa seguir no espírito da ressurreição.
Apocalipse 1.4-8, por sua vez, é uma dedicatória às sete igrejas da Ásia. De forma doxológica, fala da volta de Cristo nas nuvens do céu, quando todo olho o verá. Esse texto aponta para a volta de Cristo, promessa que deve sempre de novo ser reavivada na vida de fé da igreja. Também aqui o foco principal não precisam ser os detalhes da volta de Cristo, mas muito mais o tempo que permanece, ou seja, a vida da igreja na esperança da volta de Cristo. Essa esperança é um esperançar, um viver a ressurreição, viver do evangelho e da fé, como presença real de Cristo, até que ele venha.
Importante é contextualizar essa mensagem da ascensão para nossos dias. O que significa ascensão em tempos pandêmicos? O que significa viver a mensagem da ressurreição em tempos de ódio nas redes sociais e na mídia? O que significa viver o Evangelho vivo de Cristo em tempos de polarizações, radicalismo, fake news? O que significa ascensão diante dos milhares de mortos pela Covid-19, mas também as milhares de vítimas da violência diária, da contaminação do planeta, dos excessos de consumo, da falta de compaixão e de misericórdia dos nossos dias? O que significa viver em Cristo e de Cristo quando falta esperança, sentido e o amor se tornou uma falácia?
2. Um pouco de exegese
A perícope final de Mateus traz um dito de Jesus. Depois de uma ampla introdução de localização e determinação dos destinatários, os 11 discípulos, temos o dito do Ressuscitado, composto de três partes: 1. sentença de autoridade (v. 18b); 2) mandato de missão (v. 19b-20a); promessa (v. 20b).
O texto representa a culminação do relato da Páscoa de Mateus. Em seus detalhes, a passagem está em relação com todo o evangelho.
Olhemos detalhadamente cada um dos versículos, segundo a tradução de Sandro Gallazzi:
V. 16 – E os onze discípulos foram para a Galileia, ao monte onde lhes tinha ordenado Jesus. Temos aqui no mínimo três informações importantes. Os 11 discípulos, aqueles que conviveram intensamente e de forma prática a boa notícia, são os convocados para a continuidade da obra. O local para esse novo início é a Galileia, onde tudo começara. Temos aqui um claro novo começo. O monte remonta aos montes do Evangelho de Mateus, onde Jesus Cristo foi revelando a si e seu evangelho. O monte, com artigo definido, tem relação com outros montes presentes no livro. O monte da tentação (4.8), o monte do seu primeiro sermão (5.1 ss), o da segunda multiplicação dos pães (15.29), o da transfiguração (17.19). Temos aqui um claro elemento da antropologia da religião, que identifica as manifestações divinas nos lugares altos e elevados.
V. 17 – E, ao vê-lo, prostraram-se; eles, porém, duvidaram. O texto apresenta uma certa tensão diante da manifestação do Cristo ressuscitado. Prostrar-se e duvidar estão relacionados a outras reações dos discípulos, como a admiração dos discípulos e a dúvida de Pedro quando da aparição sobre as águas (14.31-33). Ou seja, há aqui resquícios de uma tensão na comunidade de Mateus, uma provável relação com a fé e a descrença.
V. 18 – E, aproximando-se, Jesus falou-lhes, dizendo: “Foi me dado todo o poder no céu e sobre a terra. Mesmo a tensão entre prostrar-se e duvidar, Jesus se aproxima. Jesus vem ao encontro e fala de que todo o poder pertence a ele. Esse poder vem da ressurreição. Diante dela, mesmo com dúvidas, emana um poder. Nada pode impedir a mensagem do evangelho, nem mesmo a morte. Esse é o novo poder, a ressurreição, e é a partir dela que Cristo encaminha a continuidade do evangelho por meio de pessoas comuns, os discípulos.
V. 19 – Indo, então, fazei discípulas todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. A comunidade, na configuração do grupo de discípulos, é lembrada da sua missão. A missão é muito mais do que converter pessoas, como algo mecânico e quantitativo, mas, sim, uma forma de tornar viva a experiência do Cristo ressuscitado em meio ao cotidiano da vida. O verbo no gerúndio – indo – dá uma ideia de processo, mais do que o mandato da tradução no imperativo – ide. Em vez de fazer discípulos individuais, as nações são sujeitas da mensagem do evangelho. Tornar-se nação discípula da boa notícia de Cristo se dá por meio do batismo, rito de passagem e de iniciação à vida de fé, em nome do Pai, do Filho e do Espírito. Jesus é o amor de Deus derramado pelo Espírito Santo. Ou seja, o processo de comunicar o evangelho às nações é feito em nome do Deus Trino, como forma de atualização permanente da obra do Criador, do Redentor e da Ruah Santa.
V. 20 – ensinando-os a guardar todas as coisas que eu vos tenho mandado; e eis: eu estou convosco todos os dias, até a consumação do tempo”. E a instrução missional não se restringe em apenas tornar nações seguidoras do evangelho por meio do batismo trinitário, mas implica o ensino, como processo, de guardar toda a mensagem evangélica. Batismo não é ponto de chegada, mas ponto de partida. Nada fácil de ser feito! Por isso é fundamental crer que o mesmo Cristo que esteve 40 dias ressuscitado entre seu povo permanecerá presente ao lado das pessoas discipuladoras e pedagogas até o fim. O próprio Cristo promete estar presente até o fim. Apesar da dúvida, do medo, da insegurança e do sofrimento na caminhada, ele promete estar presente.
3. Uma possível meditação
A mensagem do texto bíblico previsto para a pregação não é relatar a ascensão de Cristo, pelo menos não é a mensagem que podemos enfocar na nossa leitura e interpretação. Diante da situação de grande crise que vivemos na atualidade, a mensagem do texto está muito mais voltada para a missão dos discípulos como um mandato após a partida de Jesus aos céus, que um relato sobre sua partida em si.
A volta para a Galileia, no monte específico, o comissionamento dirigido especificamente aos 11 discípulos, mais que uma finalização, está re-iniciando o ministério de Cristo, agora sob a responsabilidade dos discípulos e da igreja. É como se a ascensão estivesse recapitulando toda a obra evangélica de Jesus de Nazaré, o Cristo, que culminou na ressurreição. É como se a ressurreição transbordasse agora para a vida missional dos discípulos, como continuidade da obra de Cristo, a instauração do Reino, afirmada pela ressurreição. O Reino não culmina com a ressurreição, mas começa com ela e precisa se espalhar em meio à vida.
Então, o centro aqui não é a ascensão como evento extraordinário, nem mesmo a ressurreição em si, não é uma doutrina fechada, mas, sim, as consequências da ressurreição na vida dos 11 discípulos, agora responsáveis por reverberar o Evangelho de Cristo a todas as nações do mundo. O espírito da ressurreição é transferido a nós, comunidade, para viver profeticamente, até que ele venha. “Este é o percurso da missão: renovar o batismo de Jesus, do Filho reconhecido pelo Pai, repleto do Espírito Santo, renovar o anúncio do Reino, renovar o convite a ser discípulo. Até o fim do tempo” (GALLAZZI, 2012, p. 582).
Como reverberar o Evangelho de Jesus Cristo na vida da comunidade e da sociedade de hoje?
Quando escrevo este auxílio homilético, estamos no tempo do aparente início do fim da pandemia de Covid-19. A pandemia no Brasil realçou para muitas pessoas o essencial, como a saúde, o cuidado pela vida, as relações e as pessoas que amamos, e, ao mesmo tempo, escancarou nossas maldades e mazelas humanas, sociais e estruturais. Escancarou a sobrecarga de trabalho e tarefas enfrentadas pelas mulheres, a violência doméstica, o abuso contra crianças, o excesso de trabalho, o trabalho invadindo a vida privada e doméstica etc.
No âmbito social, a pandemia denunciou muito da nossa insensibilidade humana. Quase num clima de salve-se quem puder. Legitimada politicamente, a pandemia mostrou nossa falta de solidariedade e empatia diante do sofrimento da outra pessoa. Durante esses intermináveis meses, as redes sociais e as mídias em geral rechearam nossa indiferença humana com discursos de ódio, mentiras e negacionismos os mais variados. Fomos capazes de zombar do sofrimento de pessoas e acusar quem ousasse defender a vida. Tornamo-nos indiferentes com a montanha de mais de meio milhão de mortos. A pandemia refinou algo que já estava lá, pulsante e intenso. Todo esse cenário repercutiu intensamente dentro das igrejas, o que não poderia ser diferente, uma vez que a igreja é parte desse mesmo e único contexto.
A mensagem da ascensão acontece para dentro desse cenário. Ela não é um evento isolado do passado, mas é evento presente e real. O próprio Cristo nos convoca e ordena como pessoas responsáveis por reverberar o evangelho da ressurreição, começando pelo começo, pela Galileia, no monte do novo, último e mesmo ensinamento. A partir dessa base somos chamados a ir indo pelo meio da vida, reverberando o evangelho em atos simples e concretos, revivendo o Batismo, ensinando e aprendendo a guardar o essencial e contando com a presença ativa e viva de Cristo, por meio da fé. Ou seja, não é viver o evangelho dentro apenas da igreja, mas na vida cotidiana, no trabalho, nas relações, na internet, no cuidado consigo, com o outro, com a vida.
Qual é essa mensagem do evangelho? Voltemos para Jesus Cristo, o que ele fez, disse e ensinou. Voltemos para o seu amor inclusivo. Voltemos para a justiça e o direito a todo ser que vive! Voltemos para a convivência respeitosa, curadora, restauradora. Voltemos para o perdão de todo mal! Assim vamos indo e fazendo discípulas todas as nações.
4. Imagens para a prédica
Viver a ascensão é viver a ressurreição de Jesus Cristo no cotidiano da vida. Viver a ressurreição de Cristo, por sua vez, é viver concretamente os passos de Jesus Cristo. Que passos são esses? Tudo que ele fez e que está relatado nos evangelhos, o amor incondicional. Jesus é o amor que anda!
Concretamente percebemos a presença de Cristo em três lugares: na Santa Ceia, na comunidade onde a Palavra é pregada e nas pessoas pequeninas. A Santa Ceia e a comunidade são realidades conhecidas pela comunidade. Em tempos pandêmicos, sugiro sair das abstrações do amor e, concretamente, abordar Mateus 25.31ss. Viver o evangelho da ressurreição é nada mais e nada menos do que estar ao lado das pequeninas e dos pequeninos, as pessoas que têm fome, sede, as forasteiras, as nuas e as presas.
Quem são essas pessoas nestes tempos pandêmicos? As que morreram por causa da pandemia, as que perderam pessoas amadas, as odiadas por serem diferentes, as discriminadas por sua classe, etnia, gênero, idade, escolaridade. No Brasil elas têm rostos bem concretos: são as mulheres, as pessoas negras, as indígenas, as crianças, as pessoas pobres e miseráveis, as pessoas homoafetivas, as pessoas que pensam diferente do senso comum, as imigrantes, as vítimas da Covid, as pessoas que estão nas sinaleiras pedindo ajuda para viver.
Viver a ascensão é começar por essas pequeninas. Ali, no rosto delas, encontramos o Cristo ressuscitado e seu evangelho e na solidariedade amorosa e incondicional vivemos o evangelho da ressurreição.
5. Subsídio litúrgico
Lugares à margem
1. Fortalece a presença da tua igreja
Nos lugares criados à margem dos lugares:
À margem das estradas,
À margem das cidades,
À margem dos impérios,
À margem da História.
2. Tu conheces, ó Deus, muito bem estes lugares.
Na pessoa de teu Filho, tu mesmo os visitaste:
Abraçaste as crianças,
Acolheste as mulheres,
Deste ouvido ao clamor dos cegos,
Tocaste o corpo dos leprosos.
Agora envia o teu Espírito,
Encoraja a tua igreja a ir
Aos lugares onde tu já estás
E aí te servir.
(Rodolfo Gaede Neto, 2020)
Bibliografia
GALLAZZI, Sandro. O Evangelho de Mateus: uma leitura a partir dos pequeninos. São Paulo: Fonte Editorial, 2012.
PAGOLA, José Antonio. O caminho aberto por Jesus: Mateus. Petrópolis: Vozes, 2013.
Proclamar libertação (PL) é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).