“Ide” ou “vinde”?
Proclamar Libertação – Volume 47
Prédica: Mateus 28.16-20
Leituras: Gênesis 1.1-24a e 2 Coríntios 13.11-13
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 1° Domingo após Pentecostes (Trindade)
Data da Pregação: 04/06/2023
1. Introdução
A Bíblia não contém ainda uma doutrina da Trindade. O que há são formulações que prenunciam o que mais tarde vai constituir o dogma. De tais passagens fazem parte os textos que acompanham a prédica. No primeiro capítulo do livro de Gênesis, chama atenção a menção do Espírito de Deus que pairava sobre as águas dos inícios. O Espírito, pois, participa já da criação. Deus é sempre o mesmo, seja como criador, seja como mantenedor ou redentor. Justaposição semelhante encontra-se no voto com que o apóstolo Paulo se despede da comunidade de Corinto em sua segunda carta a essa comunidade. Ele fala da graça do Senhor Jesus Cristo, do amor de Deus e da comunhão do Espírito Santo. Embora ainda faltasse o dogma, ou seja, a definição da relação entre as manifestações de Deus, a proclamação cristã jamais deixou de relacionar as obras divinas em sentido trinitário. Existem outras passagens relevantes para o assunto, como 1 Coríntios 12.4-6 e Efésios 4.4-6. É o que vai estar em pauta também na prédica neste domingo especialmente dedicado à comemoração da Santíssima Trindade.
2. Observações exegéticas
O texto em pauta constitui o que se chama “a grande comissão”. Ele fala da aparição de Jesus a seus discípulos na Galileia e do envio desses a todos os povos da terra. Ainda estamos na época da Páscoa. Interessante é a observação que entre as testemunhas havia quem duvidasse. A ressurreição de Jesus foi acontecimento de tal modo espetacular, que não deixou de levantar suspeitas. Será verdade que o crucificado venceu a morte e se apresentou como vivo? Fé na ressurreição existe somente como incredulidade vencida. Mas o impacto foi mais poderoso do que a dúvida. Ele teve a força para inaugurar a missão universal da igreja.
Pois este é o primeiro eixo desse texto. A ressurreição de Jesus significou sua entronização como senhor universal. Toda autoridade me foi dada no céu e na terra. São essas as suas palavras. Elas sintonizam com o que diz o “hino cristológico” da carta do apóstolo Paulo aos filipenses, no segundo capítulo (2.5-11). Esse celebra a exaltação de Cristo, ante cujo nome irá dobrar-se todo joelho no céu, na terra e debaixo da terra. Desde a Páscoa, Jesus Cristo é o “senhor”, ou seja, o plenipotenciário de Deus em todo o mundo.
Segue o envio dos discípulos. Este é o segundo eixo do texto. A missão cristã tem em Jesus Cristo seu “mandante”, sua origem, seu autor. Sua finalidade é o discipulado de todas as nações. Não se trata de converter algumas pessoas, nem mesmo o maior número possível, e, sim, os povos em sua totalidade. Isso sem discriminação de raças, nacionalidade ou gênero. Assim como é universal a autoridade de Jesus, assim o é o alcance da missão. Trata-se de um projeto ambicioso. Sabe-se que a inclusão dos gentios na comunhão cristã provocou alguma polêmica na primeira cristandade. Isso apesar de que a ideia da evangelização global de todas as nações está em perfeita sintonia com a práxis de Jesus. O amor de Deus não exclui ninguém. Verdade é que a participação no povo de Deus já não se estriba no cumprimento da lei, e, sim, na fé em Jesus Cristo. Mas esse princípio demorou a se impor, apesar de que saísse vitorioso. O senhorio de Jesus Cristo não ficou restrito ao âmbito do cristianismo judaico. Adquiriu dimensões universais.
Discipulado se concretiza, entre outras coisas, no batismo. Eis o terceiro eixo do texto. O envio de Jesus implica o batismo em nome de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo. Foi essa a praxe geral na primeira cristandade. Não sabemos onde se originou, visto que Jesus não submeteu seus seguidores a esse rito. Trata-se aparentemente de uma herança de João Batista. De acordo com uma observação do evangelista João (4.2), foram os discípulos de Jesus, não ele mesmo, que a praticaram. De qualquer maneira, pessoa cristã é pessoa batizada. E isso em nome do trino Deus. Assim também o lemos num dos primeiros catecismos cristãos, chamado Didaquê (capítulo 7). Eis outra incógnita: quais eram os grupos cristãos que pela primeira vez falaram desse jeito? A formulação segue uma lógica interna do discurso cristão. Ela compila o que a partir da experiência da fé com Jesus Cristo se deve dizer sobre Deus. Isso significa que a comunidade cristã aprendeu a invocar Deus como Pai, que se compadece da criatura; que se revela em Jesus de Nazaré, seu Filho; que agradece por um novo Espírito orientador da conduta. Assim é Deus. O batismo acontece “em nome” desse trino Deus, sendo o “nome” nada mais do que a própria presença das pessoas invocadas.
Com o batismo se vincula quase organicamente a catequese. Este o quarto eixo deste texto. Aquele que ressuscitou dos mortos manda seus discípulos ensinar […] a guardar todas as coisas que tenho ordenado vocês. O batismo deve estar acompanhado da consciência do discipulado cristão, o que exige um mínimo de conhecimento doutrinal. Jesus Cristo permanece sendo o “mestre”, cujas palavras e cujos gestos permanecem tendo validade vinculante para a comunidade. A catequese cristã, pois, necessita do olhar retrospectivo. Ela precisa conscientizar-se da história de Jesus, respectivamente lembrar o que ele fez e disse para permanecer fiel ao evangelho. Nesse afã ela pode contar com a presença permanente do ressuscitado. Esse promete não abandonar a comunidade, assistindo-a todos os dias até o fim dos tempos.
3. Pensamentos meditativos
A missão cristã está em crise. Isso vale com particular pertinência para a IECLB. Ela costuma se contentar com o atendimento de seus membros, sem tentar penetrar no miolo da sociedade brasileira. Para tanto é responsável, uma vez, sua herança histórica. Os primeiros evangélicos de confissão luterana vieram como imigrantes, não como missionários. A germanidade era mais importante do que a confessionalidade. Aliás, por imposição da poderosa igreja católica, a essa gente até mesmo se proibiu a divulgação de seu credo. Não podiam fazer missão. E mesmo depois de declarada a liberdade religiosa no Brasil, a inibição missionária permaneceu. Na IECLB continua prevalecendo a convicção de que o jeito luterano de ser igreja se destina predominantemente a descendentes alemães. É claro que nessas condições a IECLB não cresce. Ela estagna, perde membros. Ide a todos os povos, diz Jesus, ensinando-lhes a viver o discipulado.
Junta-se a isso o preconceito. Missão passou a ser atividade suspeita. Associa-se com ela a ideia da violência cultural, do autoritarismo, do colonialismo. Será verdade que o evangelho reprime expressões autóctones dos povos e os priva de sua identidade? Os primeiros cristãos não tinham tais escrúpulos. É claro que o evangelho necessita de enculturação, ou seja, da adaptação às respectivas tradições culturais. Mas isso não era problema nos primeiros tempos. Por que o seria hoje? O evangelho é por demais precioso para ser enterrado como tesouro em campo. Precisa ser proclamado de viva voz entre os povos. É o que a IECLB é chamada a aprender. Ela tem clara consciência disso. Mas os progressos são poucos.
Para tanto falta uma cultura do “ide”. Estamos por demais presos a uma cultura do “vinde”. Hoje já não basta esperar as pessoas chegar. Elas precisam ser buscadas, para o que a internet oferece valiosa ajuda. Eu sonho com uma IECLB mais agressiva no mercado religioso brasileiro. Creio não haver em absoluto motivos de vergonha de pertencer a essa igreja. Ela é modesta, sim. Mas é igreja “evangélica” no bom sentido da palavra. Proponho estudar mais intensivamente sua proposta. E veremos o quanto há para dela se orgulhar. Ter uma imagem positiva da igreja, à qual a gente pertence, é o pré-requisito fundamental da missão. Então: “Ide a todos os povos e fazei propaganda da IECLB”.
Ela proclama o trino Deus. Somente esse é o Deus verdadeiro. Quem fala de Deus sem falar de Jesus Cristo corre o risco de propagar um Deus abstrato, fictício, propenso a atitudes até mesmo violentas. O Deus de Jesus Cristo é misericordioso, que perdoa o pecado e ama a criatura. Quem fala de Jesus de Nazaré sem falar de Deus vai reverenciá-lo como nobre exemplo de conduta, mas não poderá enxergar nele a ação de Deus. Quem fala do Espírito Santo sem falar de Jesus, ficará confuso diante da quantidade de espíritos. Já não terá como identificá-lo como Deus, ao qual nos dirigimos como “Pai nosso”. Isso significa que a Trindade estabelece critérios de autenticidade para a “teologia”. Para tanto um só exemplo: ela não legitima racismo de qualquer espécie. Pois multiformidade é a marca do Deus criador. E qual seria a sorte dos incrédulos? Será verdade que serão condenados à perdição eterna? Ora, o trino Deus não legitima tal crueldade.
Aliás, o Espírito Santo se identifica não tanto em demonstrações carismáticas, e, sim, em obras de caridade. Em nossos dias, o “fenômeno pentecostal” fascina muita gente. O falar em línguas, por exemplo, não deixa de impressionar. Mas ele será autêntico somente caso for expressão do trino Deus. A Trindade coloca o arcabouço para todo falar autêntico de Deus. Pois também Deus é termo polivalente, ambíguo, suscetível de abuso. Existem muitas imagens de um ser divino, muitas delas altamente conflitantes. Não existe em absoluto unanimidade no que diz respeito ao discurso sobre Deus, nem entre as religiões nem mesmo numa só igreja. Já o apóstolo Paulo julgou necessário disciplinar o carismatismo em Corinto (cf. 1Co 14).
A mesma necessidade se verifica hoje. Uma religião do oba-oba não faz jus ao Deus que apregoa o Jesus crucificado como revelação de Deus. Portanto, Pai, Filho e Espírito Santo descrevem as manifestações do mesmo Deus. Importante é que elas constituem somente em conjunto a plenitude do que se pode e deve dizer de Deus. Isso não significa, em absoluto, o abandono do monoteísmo. Deus permanece sendo um só. Acusar a Trindade como sendo abominável “triteísmo” é sinal de um grosseiro mal-entendido. É o que o credo cristão sempre afirmou. Ele não dilui a “monarquia” de Deus. Afirma, isto sim, três expressões básicas da mesma. Deus se revela num tríplice falar e agir do mesmo Deus.
Seja admitido ser difícil explicar esse mistério. Como entender que três é um e um é três? Ora, existem o que se chamam “vestígios” da Trindade. São sinais que ilustram o mistério. Um deles é o triângulo, formado por três lados. Faltando um não há triângulo. Outro, e este é o mais significativo, é a “tridimensionalidade” dos corpos. Todos os corpos têm três dimensões, a saber comprimento, largura e profundidade. Somente o conjunto é o que constitui o todo. Assim é Deus. Ele tem três “dimensões”, a saber, a paternidade de Deus, sua expressão histórica em Jesus Cristo e a manifestação dinâmica no Espírito Santo. Portanto ele se revela como Pai, Filho e Espírito Santo. É esse o mistério em pauta neste domingo.
4. Imagens para a prédica
Proponho para a prédica a imagem de um cubo. Pois ele ilustra muito bem as três dimensões que o constituem. Na verdade, todo e qualquer corpo serve para a finalidade. Pois a tridimensionalidade é fundamental para tudo o que ocupa espaço. E, no entanto, o cubo é exemplo particularmente instrutivo. Assim é a Trindade. Também ela é “tridimensional, revelando-se como Pai, Filho e Espírito Santo. Com isso ela não deixa de se referir ao mesmo e único Deus. Pois o credo cristão é enfático: […] para nós não há senão um só Deus (cf. 1Co 8.4s). Esse atua tanto na criação quanto na salvação, bem como na nova criação a ter lugar no futuro. Em tudo deixa as suas marcas. O mesmo vale para o batismo, bem como, aliás, para os cultos realizados em nome de Deus Pai, do Filho e do Espírito Santo. Então: Ide e proclamai as obras do trino Deus a todo o mundo.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão dos pecados: Senhor, queiras perdoar-nos as falsas ideias que a respeito de ti propagamos. Abusamos do teu nome para justificar interesses particulares e causas injustas. Não há como legitimar guerra nem lucro excessivo em teu nome. Tu queres a paz, tu queres a justiça, tu queres o bem-estar de todos. Os conflitos neste nosso mundo ofendem teu nome. Ajuda-nos a cumprir a tua vontade. Tem compaixão de nós!
Oração de coleta: Senhor, nós te agradecemos por tua palavra que neste domingo lembra com especial insistência a Santíssima Trindade. Tu queres ser reverenciado como Pai que se compadece de seus filhos e suas filhas perdidos. Tu queres ser reconhecido em Jesus Cristo que veio como luz a este mundo e sacrificou sua vida por nós. Tu queres renovar nossa sociedade através da força de teu Espírito. Nós te pedimos: queiras fazer com que as pessoas ouçam a tua voz e se convertam em fiéis discípulos e discípulas de Jesus Cristo. Dá-nos coragem para uma nova caminhada e juízo para fazer o certo com o fim de aumentar o bem em nossa sociedade. Ajuda-nos, Senhor!
Intercessão: Senhor, nós te rogamos pelo fim das guerras e das atrocidades que elas causam. Nós te rogamos pelo fim da violência em nosso próprio país, com especial atenção para a violência contra as mulheres. Mas também crianças e desempregados são vítimas da marginalidade e do ódio. Este nosso mundo sofre sob aguda falta de paz. Ouve o clamor das pessoas que sofrem. Entre essas nos lembramos das pessoas doentes e das que se encontram à beira da morte. Sê-lhes amparo e dá-lhes força para resistir. Desperta em nós a disposição para socorrer quem precisa. Fortalece em especial a tua igreja para que siga os passos de Jesus Cristo e contribua para aumentar o bem-estar entre as pessoas. Ansiamos por uma sociedade mais justa e harmônica, na qual todos os membros tenham garantido o seu lugar. Não procuramos nossa própria glória, mas a do teu reino. Amém!
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. O mistério da Trindade. In: Sabedorias da fé. São Leopoldo: Sinodal, 2014. p. 33-46.
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. Das Neue Testament Deutsch. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1973.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).