Adubando a esperança para a fé frutificar
Proclamar Libertação – Volume 41
Prédica: Mateus 3.1-12
Leituras: Isaías 11.1-10 e Romanos 15.4-13
Autoria: Samuel Gausmann
Data Litúrgica: 2º Domingo de Advento
Data da Pregação: 04/12/2016
1. Introdução
Isaías fala da expectativa pelo rebento do tronco de Jessé: brota a esperança em meio a um presente árido e sofrido. O discurso de João fala do machado posto à raiz da árvore. São a esperança, a fé e o amor que devem frutificar e crescer. Tudo aquilo que não for desse fruto e dessa raiz será cortado. A poda, mesmo sendo um ato agressivo, é necessária para o saudável crescimento da planta. Muitas coisas na vida de fé deverão ser podadas e outras cultivadas. É preciso escolher o que cortar e o que adubar e regar. Também é complexo saber até que ponto a poda fortalece e quando mata. A fé dá o discernimento. Advento é tempo de discernimento. A Quaresma poda o pecado, e o Advento aduba a esperança. A perícope de Romanos também sinaliza para a esperança, principalmente o v. 4, que destaca que o ensino que as Escrituras fornecem tem o objetivo de criar esperança e mantê-la viva através da paciência e da coragem. A esperança cristã não é ilusão, mas algo baseado nas promessas de Deus. Mesmo que não seja algo palpável e demonstrável diante dos olhos, é algo que se pode sentir e que fornece a serenidade para enfrentar qualquer desafio. Também o v. 13 destaca a dimensão da esperança, adjetivando Deus como Deus da esperança e no pedido do apóstolo para que seus leitores sejam ricos de esperança no poder do Espírito Santo. Nisso se aproximam os três textos: a esperança cristã comove o coração e move os passos numa caminhada solidária e engajada. É algo que o mundo desconhece, pois provém da ação de Deus em nosso favor e concretiza-se através do comprometimento de cada qual.
2. Exegese
Diferentemente do texto paralelo de Lucas, que detalha o momento histórico de João Batista (Lc 3.1-2), Mateus parece pressupor que seus leitores sabem que dias são aqueles a serem descritos. João pregava no deserto e batizava no rio Jordão, movimento que remete à dinâmica do arrependimento: o ouvir no deserto simboliza a interiorização e o reconhecimento da culpa; a volta à civilização no batismo no rio Jordão simboliza o compromisso de uma nova ética na interação com o meio social.
“Metanoeite, ēggiken gar hē basileia tōn uranōn”, ou seja: “Mudem de mente (ou de ideias ou de comportamento) porque chegou o reino dos céus”, ou numa tradução mais livre: “Arrependam-se, porque já chegou o reino dos céus”. Foi esse o incômodo grito de João Batista. Incômodo como o martelar do monge Martim Lutero pregando suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, cuja primeira era: “Quando nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo diz: Arrependei-vos (Mt 4.17), ele queria que a vida inteira dos crentes fosse arrependimento”. Nesse sentido, o Batismo não pode ser apenas uma formalidade, mas precisa permanecer uma afirmação de entrada na nova vida e de compromisso com essa nova vida.
“Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas” (3.2). Aqui é relevante olhar para o texto de Isaías (40.3). Tanto Mateus como os demais sinóticos usam as expressões do profeta, mas não seu significado original. Isaías fala do retorno do povo de Israel do exílio e da preparação que essa esperança deveria provocar nas pessoas. Os evangelistas associam essa preparação com a conversão diante da promessa de Deus encarnada: Jesus Cristo. Nesse mesmo sentido pode ser interpretado o texto paralelo de Isaías 11. O tronco indica a casa real de Davi, que então está “cortada” pelas consequências da desobediência a Deus. O profeta não fala sobre Davi, e sim sobre Jessé (o pai de Davi) para indicar que a família real de Judá não tem mais aquela glória e grandeza ligadas ao nome e ao governo de Davi. O profeta quer dizer que Deus vai começar de novo: Ele suscitará um novo Davi, assim como fez um novo começo com Davi na época de Saul. Daí a analogia que do humilde Jessé (associado no NT a José) sairá um grande rei como Davi (associado no NT a Jesus). Esse grande rei do futuro será espetacular, porque “repousará sobre ele o Espírito do Senhor” (v. 2). Seu reinado será de paz, mas de uma paz nunca antes vista, como é descrito na convivência harmoniosa entre animais de posições opostas na cadeia alimentar. Isso tudo fez surgir a analogia com o reinado de Jesus, com o reino da paz que Ele veio instaurar quando afirma que a paz que Ele traz não é a paz que o mundo conhece (Jo 14.27). João Batista também prega sobre algo novo, um novo tempo que requer preparação.
Nos dias de João Batista, o povo israelita havia perdido sua liberdade política para o Império Romano e não havia nenhuma perspectiva de recuperá-la a curto prazo. Internamente, o povo estava dividido em diversos grupos. É para esse contexto de crise que João Batista fala. E a palavra com a qual ele anuncia a chegada de Deus é arrependimento. As pessoas que se sentiam tocadas por esse chamado deixavam-se batizar.
João era um homem que vivia sua mensagem. Três aspectos marcavam a realidade de seu protesto: 1. O lugar onde vivia: deserto; 2. Suas roupas: Elias tinha usado roupa semelhante (2Rs 1.8); 3. Sua alimentação: gafanhotos e mel silvestre (esse exótico cardápio é alvo de diferentes interpretações na pesquisa bíblica, mas é consenso que significa uma dieta simples). Tirar as sandálias do caminhante era um trabalho que correspondia ao escravo. João não se considerava digno de servir ao Mestre, nem mesmo na qualidade de escravo (v. 11), entendendo-se como apenas um canal de ligação com o Filho de Deus.
“Produzi frutos dignos” (v. 8). Trata-se, portanto, de produzir, e não de encontrar frutos prontos. A produção de frutos inicia com a semeadura. Por semente vamos entender a vida mental que elegemos, é a elaboração de novos componentes germinativos, saber selecionar a proposta, aprender a cultivar e ser coerente e perseverante na proposta. A qualidade do fruto está diretamente relacionada à qualidade do que é lançado. Se quisermos melhorar a colheita, melhoremos a semeadura!
João compara as pessoas com árvores. E o que se espera de uma árvore? Que seja útil. O foco aqui está na produção de frutos. Os machados eram feitos de ferro puro, e na Bíblia ferro é símbolo da justiça de Deus. João expressa que a justiça de Deus já foi aplicada às raízes das árvores que não produziam bons frutos. O Salmo 1.3 descreve a respeito do ser fiel: “Pois será como a árvore plantada junto a ribeiros de águas, a qual dá o seu fruto na estação própria”. Jesus fala figurativamente a respeito da árvore, representando a vida de uma pessoa quando diz: “Pelo fruto se conhece a árvore” (Mt 12.33).
Outra palavra contundente de João está no v. 9: ainda que ser judeu inclua os privilégios externos da aliança, os verdadeiros filhos de Deus somente o são em virtude de ação divina. No paralelo de Lucas são exemplificadas algumas atitudes coerentes com o arrependimento, quando publicanos e soldados questionaram João sobre o que deveriam fazer (Lc 3.10-14).
3. Meditação
A ênfase da pregação de João Batista era a necessidade de cada pessoa experimentar o arrependimento para poder participar do reino de Deus. Para sentir a direção e condução de Cristo, é preciso retificar a estrada em que se tem vivido. Caminho seguro é por meio daquele que veio trazer vida em abundância a nós. Para nossa felicidade, não existe caminho diferente daquele que Jesus nos traçou com sua própria vida. E o roteiro continua sendo o da manjedoura ao calvário. O resto é atalho perigoso, beco sem saída. Preparar o caminho (v. 3) significa trabalhar o terreno do coração do ser humano no qual Deus deseja entrar, removendo os obstáculos à sua presença, mas também olhar para o contexto onde se vive e pensar: quais são as pedras no caminho das pessoas? A partir do autoexame, agir com disciplina, e a partir da análise do contexto, agir coletiva e solidariamente.
João Batista é apresentado como aquele que tem um cinto de couro em volta dos rins e alimenta-se de gafanhotos e mel. Cinto é o acessório que dá firmeza à vestimenta e propicia segurança (sem cinto minhas calças jeans caem!). E não são justamente segurança e firmeza o que as pessoas mais procuram? Pois bem, cinto nos rins! A simbologia dos rins remete-nos à capacidade seletiva, ao processo de filtragem e de seleção de valores para uma vida com propósitos, assim como os rins filtram as impurezas do sangue no organismo. Ninguém chegará a seu objetivo captando todos os valores e padrões de forma indiscriminada. As pessoas cristãs selecionam seus valores, testam suas escolhas, depuram seus sentimentos e intenções a partir da fé em Cristo através da Bíblia. A dieta à base de gafanhotos e mel remete-nos à humildade e à simplicidade, em que menos é mais! Assim, deparamo-nos com dois personagens conflitantes no Advento: o comedido e famigerado João Batista diante do exagerado e rechonchudo Papai Noel! Roupa de pelos de camelo conectam-nos mais com o humilde presépio do que com as árvores de Natal abarrotadas de enfeites e os papais-noéis do comércio em geral. Mas todo esse processo de seleção tem que ser com a doçura do mel. A seleção de valores não precisa ser amarga, mas comedida, disciplinada e comprometida, sem excessos e inconstância.
João chamou seus conterrâneos fariseus e saduceus de “raça de víboras”. Como ele chamaria os luteranos hoje? Penso que nos chamaria de “traças de Bíblia”. (As traças de livros – Thysanura –, ao contrário das traças de roupas, não apresentam asas e já saem dos ovos com a mesma forma da traça adulta. Elas têm coloração prateada, não gostam de umidade nem de luz.) A acusação de sermos “traças de Bíblia” justifica-se porque conhecemos a Bíblia, orgulhamo-nos de ser a “igreja da Palavra”, mas só roemos a Bíblia e não a praticamos. Somos muito mais ruminantes do que praticantes da Palavra! Essa característica de traça pode ser atribuída também aos evangélicos de nosso país, que decoram (roem) as partes da Bíblia que lhes convêm e fazem de seus feitos intervenções do próprio Deus, como se pudessem roer do sagrado o que lhes é “de direito”. Eles seriam traças com síndrome de abelha, que julgam ser os únicos a polinizar o mundo com o evangelho, ferroam todos os que não são e agem como eles e voam em enxames que “dão medo” pelo número que reúnem e pelo barulho que fazem.
Estamos a caminho de celebrar os 500 anos da Reforma Protestante. João Batista lembra os israelitas de que o fato de ser da linhagem de Abraão não significa salvação. Da mesma forma, ser herdeiro da Reforma não significa que continuamos na linha de pensamento e ação do reformador Martim Lutero. A Reforma precisa de sucessores e não de herdeiros, porque é uma causa de fé! O meio evangélico no Brasil é um grande denominador comum que mais confunde do que explica. Como a IECLB apresenta sua identidade? Evangélica? De confissão luterana? Protestante? Igreja dos alemães?
Escrevo num momento político-econômico conturbado no Brasil: denúncias de corrupção, Operação Lava-Jato, votação no Congresso em que políticos usam e abusam do nome de Deus, impeachment. Assim como Israel passava por uma crise de identidade em que o povo estava dividido em partidos e seitas que reivindicavam cada qual para si o verdadeiro Israel, a sociedade brasileira também atravessa um período de crise: está dividida em classes, polarizada em seu discurso político, desarticulada em sua cidadania, alienada de informação, carente de cuidado. Não consigo imaginar como será o desfecho dessa situação até o final do ano, até este segundo domingo de Advento. Mas rogo, com esperança, que a crise ensine o povo e que a sua memória não adormeça na hora do voto.
4. Imagens para a prédica
Esse texto desestabiliza-nos da alegria do Natal e transporta-nos para a apreensão da Quaresma, tal como um portal no Calendário Litúrgico. Deus teve que vir e intervir diretamente na história da humanidade. Jesus veio para amar e levar-nos para perto de Deus, mas o pecado é tão terrível, que levou Jesus para a cruz e colocou-nos na encruzilhada para decidir: qual é a minha posição? O segundo domingo de Advento tem ares “quaresmais” por conscientizar-nos de que o nascimento de Cristo requer de nós não somente alegria e gratidão, mas comprometimento com a causa de fé, que é, sim, questão de vida ou morte. Com o nascimento de um filho são despertados nos pais sentimentos de alegria e gratidão, mas chega um momento em que “cai a ficha” e sobrevêm os sentimentos de insegurança e até de angústia: “E agora? Vou dar conta do recado?”. Em meio aos preparativos do Natal, tudo colorido e alegre à espera do Papai Noel, gordo, bonzinho e cheio de presentes para dar, vem ao nosso encontro o rude e maltrapilho João Batista, que nos tira toda a maquiagem e perscruta-nos como espelho incômodo, nada colorido, tudo “preto no branco”, um azedume em meio aos chocolates.
Pode-se comparar o pinheiro de Natal a uma árvore frutífera: o pinheiro só tem beleza e não tem frutos. O pinheiro, uma vez cortado, por mais bem decorado que esteja, vai murchar e morrer. A árvore frutífera, estando plantada e tendo água, luminosidade e adubo em proporções adequadas, vai frutificar e pode durar muitos anos e, mesmo sendo podada, renova-se e frutifica novamente. Natal não pode ser somente beleza e encantamento, mas deve trazer sentido para um comprometimento.
Se já houver árvore de Natal montada na igreja, colocar embaixo dela ou apontada para ela um machado ou dois que formem uma cruz para destacar que Deus não quer beleza; ele quer frutos dignos. Enfatizar que a sombra da cruz já incide sobre a manjedoura.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
(Mostrar um machado) Árvore que não produz nada vira lenha; só serve para queimar e vira cinza na fogueira.
Anúncio da graça
(Mostrar um cesto de frutos) A graça de Deus capacita-nos a frutificar pela fé. Cada estação do ano tem seus frutos, mas gente cristã é desafiada a produzir bons frutos sempre, todo dia. A pessoa que aprofunda suas raízes na Palavra frutifica, porque a graça de Deus é tal como sol a iluminar e chuva a irrigar; ela “é como árvore plantada junto à corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ela faz será bem-sucedido” (Sl 1.3).
Se houver Santa Ceia, que tal usar pães asmos para destacar os ares “quaresmais” do texto bíblico?
Bibliografia
GARDNER, Paul (ed.). Quem é quem na Bíblia Sagrada. São Paulo: Editora Vida, 2005. p. 10-16.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1990. p. 368ss.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).