Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 5.1-12
Leituras: Miqueias 6.1-8 e 1 Coríntios 1.18-31
Autora: Ana Isa dos Reis
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 02/02/2014
1. Introdução
A celebração de Epifania convida-nos a dar continuidade ao testemunho dos sábios do Oriente – também conhecidos, tradicionalmente, como Reis Magos – de que Jesus é o Senhor e Salvador do mundo inteiro, também meu e para dentro de minha vida.
O tempo após Epifania também é conhecido como “pequeno” Tempo Comum, que perfaz os domingos depois de 6 de janeiro até a Quarta-feira de Cinzas. Nesse breve Tempo Comum encontraremos os festejos do Batismo de Jesus e de sua Transfiguração.
O evangelho – e texto para a pregação – fala sobre as bem-aventuranças. “Felizes” são aqueles, segundo aponta Jesus, que seguem a lógica de Deus. O texto de 1 Coríntios 1.18-31 apresenta essa lógica como “loucura da cruz”. O Antigo Testamento ajuda-nos a enxergar o rosto de um Deus que não está preocupado com as aparências ou com o mero ritualismo ou cumprimento vazio de leis, mas o rosto de um Deus que anseia para que seu povo assuma sua lógica: da justiça, da misericórdia, da sinceridade profunda. Na lógica do mundo, as pessoas que se tornam bem-aventuradas e promovem as bem-aventuranças não são bem-vistas, podem até ser tachadas de “bobas”, “ingênuas”, “loucas”, “que atrapalham”. Mas justamente essas são escolhidas por Deus, a elas é prometida a salvação, a força de transformação. Pois essas são as que promovem e vivem a lógica de Deus.
2. Exegese
2.1 – Fonte
Mateus e Lucas assumem as bem-aventuranças da fonte Q. Ainda assim, Mateus completa-as com mais cinco outras bem-aventuranças.
2.2 – Estrutura do Evangelho de Mateus
– Mt 1.1-4.11: narrativas iniciais e preparação
– Mt 4.12-18.35: a atuação de Jesus na Galileia
– Mt 19.1-20.34: a caminho de Jerusalém
– Mt 21.1-25.46: a atuação de Jesus em Jerusalém
– Mt 26.1-28.20: paixão, morte e ressurreição de Jesus.
2.3 – As bem-aventuranças
Desde os primeiros séculos até hoje, não há um consenso quanto à interpretação das bem-aventuranças. Há pesquisas que afirmam que são “promessas feitas aos discípulos fiéis do reino dos céus (…), que, por sua vez, devem aprender a apegar-se a Cristo, a confiar nele e em suas palavras explicitamente. As bem-aventuranças mostram como seremos abençoados se fizermos disso a regra de nossas vidas” (Champlin).
Por outro lado, há pesquisas que interpretam as bem-aventuranças não como sentimentos espiritualizantes/espiritualizados das pessoas, mas apontam para a forma das bem-aventuranças. Por que Mateus, que chega a modificar algumas bem-aventuranças em relação a Lucas, não poderia estar colocando-as em seu contexto histórico? O Evangelho de Mateus foi escrito por volta do ano 90 d.C. em Antioquia da Síria para judeu-cristãos. No ano 70 d.C., o templo de Jerusalém fora destruído. Isso pode ajudar a entender a mudança que ocorre em Mateus, que substitui, por exemplo, o “chorar”, de Lucas, pelo termo “prantear”, estar de luto. A comunidade, na época em que o Evangelho de Mateus foi escrito, passava por situações de conflito com os romanos, o povo sofria com a destruição do templo, com perseguição e discriminação. A comunidade precisava reinventar-se diante dessa nova realidade.
As bem-aventuranças dispensam os verbos. São beatitudes ou interjeições. A partir das diferentes pesquisas, pode-se dizer que a palavra grega makarioi remete-nos a duas ações: a) refere-se a bem-aventuranças como felicidade, alegria e gozo; b) como palavra de ação (ordenanças) que remete às ações proativas. Ao enfatizarmos essa segunda opção, concluímos que a comunidade não está isolada ou inerte no mundo, mas age dentro dele com ações de transformação. No entanto, essas bem-aventuranças também precisam operar transformação dentro de cada pessoa e, assim, levá-la ao mundo com a lógica de Deus.
2.4 – Observações exegéticas
V. 3 – Este versículo é traduzido de duas formas: “pobres de espírito” ou “humildes de espírito”. Na tradição judaica e veterotestamentária, espírito era entendido no contexto da pessoa como um todo e não como uma parte dela. As afirmações divergem quanto a quem Jesus estaria se dirigindo. Pesquisas dizem que não estaria se referindo a todos os pobres, porque nem sempre esses estão identificados com a causa do Reino. Outras pesquisas apontam para uma humildade de espírito, que não teria identificação com a situação econômico-social. Poderíamos, no entanto, entender essas duas situações não em oposição. A situação de pobreza, gerada pela má distribuição dos recursos e pelo acúmulo de alguns contra outros, traz sofrimento, privações, negação de acesso à saúde e educação dignas, por exemplo. Também a comunidade de Mateus experimentava isso em muitas situações, diante do escárnio em que viviam os cristãos e da situação de conflito com os romanos. No entanto, não é só pelo fato de ser pobre que esse grupo é considerado bem-aventurado. Isso transformaria a situação de pobreza em acomodação (ou, como se diz, em “carma”). A pobreza a que se refere o texto tem a ver com uma postura crítica frente ao mundo e aos pobres que são espoliados, humilhados, roubados até em sua dignidade. A humildade aqui poderia ser vista dentro desse contexto de não conformidade com a situação de desigualdade (que não foi criada por Deus; afinal, Deus deseja o shalom a todas as pessoas e projetou um mundo digno para todas) e uma postura de solidariedade que envolve a totalidade humana, também no que tange à situação econômico-social e mesmo espiritual, envolvendo a liberdade de culto, de manifestação da fé em Cristo (especialmente m um mundo onde isso era proibido). Ser humilde é também um ato de desprendimento, em que se procura viver bem com o essencial, com a simplicidade, afastando o supérfluo que nos faz prisioneiros e tem destruído nossa casa. Tanto nessa primeira como na oitava bem-aventurança se usa o presente, afirmando que o Reino já está aqui e agora. As demais usam o futuro escatológico.
V. 4 – Aqui (como já foi mencionado), Mateus refere-se ao pranto do povo, que perdeu o templo, que enfrenta discriminação, que sofre. Esse pranto tem a ver com a inconformidade em relação a essa situação de sofrimento. Ele expressa dor, mexe com as entranhas, aperta a boca do estômago, faz perder o sono, arranca da inércia, traz o desejo de mudar a realidade.
V. 5 – Este versículo fala de mansos, que são aquelas pessoas identificadas com a “não violência ativa” de não se entregar à ira e às suas consequências. Em um mundo onde a mansidão perdeu o sentido, esse chamado é um desafio para viver a amabilidade e resistir às formas de maldade. Essa bem-aventurança pode estar alicerçada no Salmo 37.11.
V. 6 – Quem sente fome ou sede sente dor. O desejo físico pelo alimento impele o indivíduo a buscar comida, quase sem considerar o sacrifício que dele pode surgir. Esse é o sentimento que se deve ter em relação à justiça. Não dá para ficar indiferente frente às situações de injustiça. Deus espera de seu povo a prática de justiça. O profeta Miqueias fala que uma das coisas que Deus quer é a justiça (Mq 6.8).
V. 7 – Misericórdia: ter o coração voltado àqueles que sofrem, colocar o coração junto deles. Deus mostra sua misericórdia, sem merecimento da parte de quem a recebe. Mas, ao recebê-la, o coração transborda e quer estar junto especialmente daqueles que sofrem. No texto antes citado, o profeta Miqueias também aponta para um Deus que quer a prática da misericórdia como fruto da ação do povo.
V. 8 – Para a piedade judaico-cristã, ter coração puro ou estar limpo de coração significava estar em total obediência a Deus. O coração era entendido como o centro da vontade e das decisões humanas. Assim, esse puro/limpo abrange todos os sentidos e relações da vida tanto na dimensão cúltica como na dos relacionamentos humanos, no sentido de não agirmos com maldade, com segundas ou más intenções. Essa bem-aventurança também aparece em Miqueias 6.8 como desejo de Deus para com seu povo.
V. 9 – Pacificadores são “não somente os dotados de natureza pacífica nem os que aceitam a paz sem protesto ou que preferem a paz ao desacordo, nem os que têm a paz na alma, com Deus e nem os que amam a paz, mas aqueles que promovem ativamente a paz e procuram estabelecer a harmonia entre inimigos” (Champlin). Pacificadoras são aquelas pessoas que fazem paz, seja ela pequena ou grande, em nível pessoal ou comunitário, local ou internacional. Em um mundo marcado pela violência, pelo “toma lá dá cá”, pela guerra, ser pessoa pacificadora é estar no revés da moda. Só a força da paz “junta todos outra vez”. Essas são os filhos e filhas de Deus. Deus é paz, é amor. Dele vem a fonte para a nossa atitude de paz, de amor.
V. 10 – Segundo algumas pesquisas, essa é a última bem-aventurança, porque o v. 11 seria continuação da mesma ideia. Diante de um mundo injusto, violento e mau, a ação/práxis dos cristãos – que buscam a promoção da justiça, do amor, da paz, da misericórdia – entra em choque com o poder vigente.
V. 11 e 12 – Estes versículos mudam a forma de discurso das bem-aventuranças ao usar aqui a 2ª pessoal do plural (vós). O tema central continua sendo a perseguição (assim como no v. 10), enfatizando algo que os ouvintes conheciam muito bem, porque estariam experimentando “na pele”. A perseguição aos cristãos, seja física ou psíquica, encerrou com Constantino (313 d.C.), mesmo que o imperador Galério (311 d.C.) já tivesse decretado liberdade de culto aos cristãos. Quando da redação do Evangelho de Mateus, Domiciano era imperador (81 a 96 d.C.) e perseguição, calúnia e injúria eram realidade dos cristãos. Essa perseguição, no entanto, não é só de agora. Também os profetas foram perseguidos, assim como Jesus. Mesmo perseguidos, é possível haver alegria, porque as ações são sinais de “novos céus e nova terra”, estabelecendo relações de justiça e misericórdia.
3. Meditação
As bem-aventuranças precisam começar dentro de mim. Se assim não for, elas são apenas ações desprovidas de meu coração, que a mim não dizem nada. No entanto, elas não podem ficar apenas dentro de mim, porque, se assim for, elas passam a ser desprovidas de seu sentido profundo e transformador.
As bem-aventuranças iniciam o discurso de Jesus conhecido como Sermão do Monte, um conjunto de ditos dirigidos aos discípulos com a finalidade de ensiná-los. Hoje também são dirigidos a nós, discípulos de Cristo.
A lógica do mundo de hoje continua sendo muito diferente da lógica de Deus. Na história, Deus sempre agiu como revolucionário, subversivo – até poderíamos dizer, porque sua lógica coloca outros padrões como principais. Deus escolheu as coisas loucas deste mundo, transformou a fraqueza da cruz de morte na força da cruz que traz a ressurreição.
Ao olharmos as bem-aventuranças, precisamos perguntar-nos se temos nos empenhado em ser esses “felizes” de quem Mateus fala. Estamos sendo aqueles que vivem comprometidos com as bem-aventuranças? Estamos promovendo as bem-aventuranças no dia a dia da vida? E como igreja, estamos sendo protagonistas dessas beatitudes?
O Brasil é considerado um dos países mais cristãos do mundo. Se assim é, como explicar o alto índice de violência? E a corrupção? E os crimes impunes? Talvez alguns pretensos cristãos não entenderam que fé tem a ver com atitude, que fé cristã tem a ver com viver e promover bem-aventuranças sob a ótica da lógica de Deus.
“Uma bem-aventurança não é um mero desejo piedoso, mas se localiza entre o ato da bênção e a esperança em receber bênção; é norma e evangelho, é indicativo e imperativo” (Ivoni Richter Reimer).
4. Imagens para a prédica
A fim de destacar as bem-aventuranças, essas poderiam estar penduradas ou coladas em uma cruz. É a lógica de Deus, revelada na cruz de Cristo, que se choca com a lógica do mundo.
A comunidade poderia sair com um desafio concreto: cada pessoa poderia esmerar-se em viver e promover de forma visível uma das bem-aventuranças.
5. Subsídios litúrgicos
Recepção: uma equipe deve estar à porta recebendo as pessoas que chegam para a celebração.
Confissão de pecados:
Misericordioso Deus, confessamos que somos pessoas pecadoras e que carecemos de tua graça e de teu perdão. Temos falhado na tarefa de ser teus discípulos fiéis. Invertemos a tua lógica, seguimos a lógica do mundo, esquecemos a loucura da cruz de Cristo, que nos trouxe nova vida. Não temos nos esmerado em ser bem-aventurados e nem temos promovido bem-aventuranças no mundo. Perdoa nossa falta de comprometimento, nosso descaso com a luta por um mundo melhor, por vida digna para todas as pessoas. Perdoa-nos quando não somos humildes nem pobres de espírito e nem mansos. Perdoa-nos quando somos injustos ou nos calamos diante das injustiças. Perdoa nossa falta de misericórdia, nossa desobediência a ti, nossa maldade. Perdoa-nos quando não nos empenhamos em fazer a paz. Que teu perdão, Senhor, nos transforme. Que teu perdão nos anime a ser e promover beatitudes. Por Jesus Cristo. Amém.
Anúncio da graça:
Bem-aventuradas as pessoas que confessam seus pecados, arrependem-se deles e desejam viver nova vida. Que o perdão de Deus te alcance e te transforme em bem-aventurado. Por Jesus Cristo. Amém.
Oração do dia:
Deus, que te manifestas nas coisas loucas e te revelas na fragilidade, envolve-nos com tua misericórdia e justiça. Ensina-nos a te servir com a totalidade de nosso ser. Ajuda-nos a ser bem-aventurados e a traduzir as bem-aventuranças na ação de cada dia. Compromete-nos, Senhor, com a causa de teu Reino. Inspira-nos com o evangelho de Jesus Cristo e dá-nos coragem de testemunhar e viver. Por Jesus Cristo, nosso Salvador, que vive e reina contigo e com o Espírito Santo hoje e sempre. Amém.
Sugestão de hinos:
HPD 400 (Bem-aventurados); HPD 442 (A canção do Senhor); OPC 158 (Jesus Cristo, vida do mundo); OPC 142 (Tempo Presente); OPC 146 (Baião das comunidades); OPC 248 (Convite ao compromisso); OPC 224 (Pai-nosso dos mártires).
Bibliografia
CHAMPLIN, R. N. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1986.
KANITZ, Ildemar; da SILVA, Walfrido. Mt 5.1-10. In: Proclamar Libertação XXXII. São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007. p. 307-310.
REIMER, Ivoni Richter. Mt 5.1-12. In: Proclamar Libertação XVIII. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1992. p. 64-68.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).