Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: Mateus 5.21-37
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e 1 Coríntios 3.1-9
Autor: Cledes Markus
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 16/02/2014
1. Introdução
É tempo de Epifania. Tempo de revelação. Deus, em seu grande amor, aproxima-se da humanidade e revela sua boa e agradável vontade em relação a seu povo, qual seja, vida em abundância. Sua vontade é revelada como um grande bem da salvação, que traz implicações para a vida e as relações entre as pessoas. Ela também aponta para os sinais do reino de Deus.
As leituras bíblicas indicadas promovem essa reflexão sobre a vontade de Deus, especialmente no que se refere às relações e interações nas diferentes instâncias da vida. O texto de Deuteronômio 30.15-20 pressupõe a aliança e a comunhão estabelecidas entre Deus e seu povo. Dessa forma, a sua vontade é revelada nos mandamentos do bem viver, no amor e na justiça. O fim último são a vida, o bem e a bênção de seu povo. Fora da comunhão com Deus, existem outras possibilidades que conduzem ao mal e à morte. Por isso o texto propõe que o povo dê atenção a Deus, apegando-se a ele, cumprindo seus mandamentos, optando pelo amor e pela justiça. Assim estará escolhendo a vida, o bem e a bênção.
No texto de 1 Coríntios 3.1-9, o apóstolo Paulo lembra as pessoas da comunidade de Corinto de que a vontade de Deus é que sejam cooperadoras de Deus no serviço, na edificação da comunidade e no testemunho do evangelho. Por isso Paulo adverte sobre os perigos das disputas e contendas na comunidade, pois elas comprometem a vivência do evangelho da paz e da reconciliação.
O texto de Mateus 5.21-37 faz parte do Sermão da Montanha, que reúne palavras de Jesus sobre o reino de Deus. No trecho indicado, ele retoma a lei de Moisés como ponto de partida para os ensinamentos sobre a vontade de Deus. De uma forma radical, ele aponta para uma nova possibilidade de relacionamentos e interações a partir da realidade do reino de Deus.
2. Exegese
O texto de Mateus 5. 21-37 faz parte do Sermão da Montanha, que abrange os capítulos 5 a 7 e reúne palavras de Jesus num longo discurso com finalidade educativa.
O foco do ensino é a boa-nova do reino de Deus. O sermão, porém, não quer ser um manual com preceitos abrangentes. Ao invés disso, ele oferece uma série de ilustrações da vida condizentes com o reino de Deus. Nesse sentido, o sermão é um indicador de direção. Os subsequentes discursos e ações de Jesus elaboram essa visão da vida no Reino.
O sermão é proferido a uma sociedade inquietante, dominada pela opressão, por estruturas hierárquicas injustas, pelo acúmulo de riquezas e governada por elites que têm interesse em manter essa ordem. Além disso, circula uma prática de leitura das Escrituras que ignora suas implicações para aspectos mais amplos da vida (cf. Mt 23.23 – a justiça, a misericórdia e a fé) e que deixa intacto o status quo da dominação.
O Sermão da Montanha apresenta um mundo alternativo, marcado por relacionamentos sociais e familiares reestruturados e por recursos acessíveis e redistribuídos. Ele ressocializa as pessoas num mundo de justiça e incentiva-as a práticas que sejam condignas com a presença justa do reino de Deus.
Nessa perspectiva, Mateus 5.20 afirma: “Se vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”. Com isso Jesus anuncia que a justiça é pressuposto da vontade salvífica de Deus.
A perícope proposta inicia no v. 21; no entanto, o versículo anterior, citado acima, é uma chave importante para a leitura e interpretação do texto.
A redação do texto lembra o estilo rabínico, próprio do Evangelho de Mateus, sem, no entanto, apresentar uma rigidez. Ele se desenrola com um esquema em que, em primeiro lugar, se cita a Lei, supondo seu conhecimento e sua interpretação: “Ouvistes o que foi dito”. Segue com a proposição de Jesus sobre o assunto citado: “Porém eu vos digo” e conclui com uma ilustração do assunto.
A relação entre a frase “ouvistes o que foi dito” e “porém eu vos digo” por muitos é considerada uma antítese. No entanto, ela não deveria ser entendida como uma inversão do proposto, mas como progressão dentro da mesma linha de pensamento. Jesus utiliza a Lei, as Escrituras, como ponto de partida para o ensinamento sobre a vontade de Deus.
Assim, Jesus retoma a lei de Moisés e, com ousadia e autoridade, radicaliza-a. Sem desmerecer ou desrespeitar a lei do Antigo Israel, Jesus aponta para uma nova possibilidade a partir da realidade do reino de Deus.
Para a nova possibilidade apontada Jesus oferece exemplos. As proibições do assassinato, do adultério, do divórcio e do juramento não estão abolidas, mas ampliadas e radicalizadas. Essa proibição naquele contexto já não é suficiente. É preciso lembrar que a vontade de Deus quer tocar o ser humano em seu mais íntimo e não somente em sua ação externa.
V. 21-26 – Sobre o homicídio: O primeiro exemplo toma o seu ponto de partida no quinto mandamento do Decálogo, que proíbe matar. A introdução “ouviste o que foi dito aos antigos” supõe o conhecimento da audiência. A contribuição de Jesus começa com a expressão “Eu, porém, vos digo”. Jesus não contradiz o mandamento; pelo contrário, aprofunda-o, radicalizando-o, retomando a vontade original de Deus do amor ao próximo. Jesus reelabora o mandamento, mostrando que a ira contra o próximo é um pecado igualado ao assassinato, porque destrói relacionamentos e pessoas. Ele mostra o impacto destrutivo da ira, incluindo os insultos, as ofensas, as difamações e as discórdias, que também ofendem e rompem relacionamentos.
Seguindo o texto, Jesus aponta para a importância da reconciliação. A boa vontade e a ação de reconciliar-se com o próximo são tão importantes, que devem preceder o culto a Deus. A oferta a Deus deve ser entregue somente após restabelecidas as boas relações com as pessoas.
V. 27-32 – Sobre o adultério e o divórcio: A relação entre homem e mulher é o tema abordado na segunda e terceira ilustrações. Trata-se da proibição do adultério e do divórcio.
Para entender a amplitude desse preceito, é necessário considerar o que acontecia na época com as relações entre homens e mulheres, com relações familiares e com os matrimônios. A linguagem androcêntrica reflete uma sociedade que conhecia um ilimitado poder masculino e assumia a inferioridade das mulheres. Os interesses do homem (marido, pai, senhor) dominavam, e a mulher tinha que se adaptar a seus desejos. Nessa sociedade sócio-histórico-cultural patriarcal, o matrimônio também era patriarcal.
Nesse contexto, o ato de desejar a mulher do próximo é condenado por Jesus. Dessa forma, o poder masculino é restringido, e a integridade da mulher é afirmada. Protege-se a dignidade da mulher, pois ela é ofendida com o olhar adúltero. A restrição do poder masculino indica mais reciprocidade nas relações entre homem e mulher.
O terceiro exemplo continua o tema das relações domésticas e do poder masculino. O foco é a prática do divórcio iniciada pelo homem. No Antigo Testamento, em Deuteronômio 24, reconhece-se que um homem poderia repudiar sua mulher se encontrasse nela “algo censurável”. Essa expressão foi interpretada de formas diferentes no decorrer da história. No primeiro século, a escola de Schammai restringia-a a algo moralmente desonroso, como o adultério. A posição dominante, no entanto, sustentada pela escola de Hillel, interpretava-a de forma mais ampla, referindo-se a qualquer coisa que desagradasse o marido. Isso incluía um prato mal cozinhado, queimar uma comida, não ser considerada bonita, entre outros motivos. Essa posição evidencia o poder ilimitado que o marido exercia sobre sua mulher e a possibilidade de repudiá-la de modo fácil por qualquer coisa, expondo-a a dificuldades econômicas e restrições pessoais.
A resposta de Jesus “Eu, porém, vos digo” restringe o poder destrutivo do homem sobre a mulher. Com essa restrição Jesus afirma uma compreensão mais igualitária do matrimônio. Os compromissos mútuos dos cônjuges devem ser considerados e levados a sério por ambos. Sob esse aspecto, Jesus reafirma mais reciprocidade nas relações entre homens e mulheres como sendo da vontade de Deus.
V. 33-37 – Sobre o juramento: O terceiro tema abordado trata da prática dos juramentos. Jurar era um ato público de comprometer-se em dizer a verdade ou de agir da forma anunciada. A lei do Antigo Testamento previa não jurar falsamente, conforme o segundo mandamento do Decálogo (Êx 20.7 e Dt 5.11). Aqui Jesus proíbe qualquer forma de juramento. Devem ser sufi cientes apenas a palavra e a sinceridade que a própria pessoa transmite.
Nessa abordagem transparece a problemática das relações e instituições falidas e corrompidas da época. Elas buscavam no juramento e na invocação a Deus uma forma de dar credibilidade a suas palavras e ações. A começar pelas próprias autoridades, doutores da lei e fariseus, que estabeleciam que sua palavra pública e política se sustentava no poder de Deus.
A prática do juramento incluía a lealdade a uma cidade, a cargos públicos, no sistema judicial, nos contratos comerciais, nas atividades religiosas e nas situações do cotidiano. Fazer juramentos era amplamente praticado para exprimir compromisso com Deus ou com outra pessoa. Ironicamente, eram minados por causa de usos ambíguos ou simulados, o que tornava a comunicação incerta, criando desconfianças.
A prática de jurar geralmente envolvia a invocação de Deus como testemunha, mesmo que seu nome não fosse dito explicitamente. É o caso de jurar pelo céu, trono de Deus, e pela terra, estrado de seus pés. Essa forma de invocação tem seu fundamento no judaísmo tardio, que evitava pronunciar o nome de Deus (Êx 20.7; Dt 5.11).
O parecer de Jesus sobre essa prática é proibir totalmente os juramentos. Eles são inapropriados pela presunção de que podem forçar Deus a agir de determinada forma (v. 34 e 35) e também pela presunção de que as pessoas podem forçar ações, ignorando as limitações humanas (v. 36).
A prática alternativa proposta por Jesus é o discurso franco, sincero e confiável, que constrói relações honestas e fi dedignas, que derivam da integridade das pessoas: “Seja, porém, a tua palavra: sim, sim; não, não”.
A comunicação sincera com Deus e as pessoas faz parte da boa vontade. É uma marca do reino de Deus. Relações de confiança e integridade são necessárias para sustentar as relações entre as pessoas e na comunidade cristã.
3. Meditação
O ensino de Jesus tem a ver com a boa-nova do reino de Deus. Com a vinda do Reino prevalece uma nova realidade, e proclama-se a vontade de Deus mais uma vez de modo decisivo.
Nesse sentido, von Rad lembra que, no Antigo Testamento, a vontade de Deus está ligada à aliança e à comunhão estabelecidas com seu povo. O fim último da vontade de Deus são a vida, o bem e a bênção de seu povo. Essa também é a intenção de Jesus nesse texto: anunciar que a boa e agradável vontade de Deus diz respeito à vida plena e abundante. Jesus utiliza a Lei, as Escrituras, como ponto de partida para os seus ensinamentos.
O texto não quer ser um manual com preceitos abrangentes. Ao invés disso, ele oferece ilustrações da vida condizente com o reino de Deus. Jesus lembra a comunidade de que as interações com Deus, de um com o outro e com a sociedade envolvente são aspectos importantes de sua existência, que abrange toda a vida presente e futura. O amor, a reciprocidade, a integridade e a justiça devem definir os relacionamentos.
A justiça também é uma chave importante para ler o texto indicado. Mateus, inclusive, é conhecido como o Evangelho da Justiça. Ele plantou bem fundo no coração de sua comunidade que não há boa-nova que não passe pela justiça, conforme Mateus 5.20.
A justiça deve passar pela motivação mais profunda das práticas e das relações humanas. Por isso é necessário pôr uma nova luz sobre todas as palavras, ações e relações. Isto é, o que Jesus fez ao retomar exemplos da lei para mostrar que o senso de justiça não se apega a algumas regras, ao contrário, a luz do evangelho identifica que todas as motivações, atos e relações precisam estar ancoradas no bem e na justiça.
4. Imagem para a prédica
Ao pensar numa imagem para a pregação, vieram à memória algumas perguntas ouvidas certa vez num estudo em grupo sobre esse texto: O que nos move no mais profundo de nosso coração? Com que motivações seguimos pela vida e no dia a dia? Que valores e atitudes perpassam as relações e interações que mantemos em nosso cotidiano? Na ocasião, essas perguntas foram impactantes e desencadearam reflexões importantes sobre as motivações da vida e sobre as relações a partir da perspectiva do Reino e da justiça de Deus.
Como esse texto faz parte de um discurso com intenções educativas e como hoje se considera pedagogicamente adequado ensinar a partir de perguntas, propomos lidar com esse recurso. As perguntas acima e mais outras poderiam aguçar a sensibilidade em relação à perspectiva do reino de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos: Nos cancioneiros da IECLB, encontramos diversos hinos com mensagens preciosas, que podem ser incluídas na liturgia em forma de oração ou confissão. Aqui, dois hinos podem contribuir para a temática desse culto: “Canção da Caminhada” – hino 432 do HPD 2 e “Buscai primeiro o Reino”, hino 197 do HPD 1.
A oração de Martim Lutero “A serviço de Deus” pode ser adequada: Cristo, querido Senhor e Mestre, revelaste a nós o correto significado de tua palavra. Permite que a entendamos sempre melhor. Fortalece-nos através de tua palavra e ajuda para que também vivamos e atuemos de acordo. A ti louvor e gratidão com o Pai e o Espírito Santo para sempre. Amém.
Bibliografia
CARTER, Warren. O Evangelho de Mateus: comentário sociopolítico e religioso a partir das margens. Trad. Walter Lisboa. São Paulo: Paulus, 2002.
NOVO COMENTÁRIO BÍBLICO SÃO JERÔNIMO. Novo Testamento e artigos sistemáticos. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2011.
OESSELMANN, Dirk. 6º Domingo após Epifania. In: Proclamar Libertação XVIII. São Leopoldo: Sinodal, 1992.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).